Por Rosana Pinheiro-Machado – A lei antiterrorismo apresentada no Senado é um dos maiores atentados à democracia brasileira dos últimos tempos. A aprovação do Projeto de Lei 499 é defendida por senadores do PT como Jorge Viana (AC) e Paulo Paim (RS) com o objetivo de “conter quem provocar o pânico generalizado”. Qualquer ligação com a necessidade desesperada de mostrar um espetáculo imagético de corpos dóceis durante a Copa do Mundo não é mera coincidência.
Não passará! Estamos a um passo de jogar fora as conquistas democráticas brasileiras, concretizando a paranoia coletiva que legitima a repressão e uma estrutura punitiva, baseada na ação policial violenta, que, neste caso, visa apenas à criminalização dos movimentos sociais de massa, ampliando a zona do terror espalhada pelo Estado brasileiro. Não restam dúvidas que a corda vai romper no lado mais fraco. Os terroristas terão cor, classe e ideologia.
Junho de 2013 foi uma das maiores insurgências populares da história do Brasil. É vulgar a manobra orquestrada – da grande mídia, da direita e do governo – de esvaziamento da luta dos movimentos sociais por meio da criminalização. Não funcionou a criação do personagem do vândalo. Mas a morte estúpida e injustificável do cinegrafista Santiago Ilídio Andrade é o elemento estopim que se precisava para institucionalizar um sistema injusto que, ao invés de avançar para reformas estruturais que a sociedade brasileira carece, regride no autoritarismo punitivo.
A criminalização não é um fato novo na história do Brasil. Ela atualiza estruturas históricas nacionais e globais.
De um lado, representa a continuidade de um modelo ocidental baseado no exercício do biopoder difuso e multifacetado que atinge seu ápice no neoliberalismo do século XXI. A modernidade e o capitalismo reforçaram discursos conservadores sobre a “normalidade”, tendo como consequência a marginalização e a criação de grupos “delinquentes” para os quais só resta a lógica punitiva, como já mostrava Michel Foucault. Isso ganha uma nova roupagem na virada do milênio com o que John e Jean Comaroff chamam de “fetiche pela lei”, que procura exorcizar os fantasmas do Estado, que supostamente detêm a custódia da civilidade contra a desordem.
De outro, temos a nossa modernidade tupiniquim, sentida pelos operadores públicos como eternamente incompleta no simulacro dos países desenvolvidos. A história do Brasil é repleta de exemplos sobre a criação do personagem “marginal” – o que fica à parte da modernidade. Capoeiras, ambulantes, pobres, manifestantes. Todos deslocados de nosso sonho que nunca alcançamos: a cidade moderna onde as elites consomem e flanam com tranquilidade. Para com os grupos “marginais”, em uma nação fundada na invasão, no extermínio e no estupro das populações nativas – estas também fora de lugar – aplica-se apenas uma medida: a violência.
Mas o século XXI no mundo como um todo apresenta novas características que apontam para um retrocesso de conquistas democráticas e plurais. Há um aperto conservador que vem ocorrendo em diversos campos. Eventos que parecem, à primeira vista, completamente distintos, na verdade, compõem o amplo corolário neoliberal da virada do milênio, em tempos nos quais os grandes paradigmas que governam o mundo têm sido questionados: a propriedade de ideias, o estado-nação, os sistemas tradicionais de informação, a política, a religião.
A lei antiterrorismo não emerge do vácuo histórico: mas do medo da perda do controle da tão desejada e necessária ordem que, em nome “dos cidadãos de bem”, apenas visa manter as estruturas políticas, econômicas, comunicacionais e religiosas dominantes. Trata-se de uma tentativa desesperada de calar a sociedade civil no ano de Copa do Mundo, que em vez de protestos, deveria mostrar um evento pirotécnico e uma população domesticada, que docilmente senta-se nos estádios ou toma uma cerveja em frente a sua tela plasma conquistada em um pagamento de 12 vezes com juros. Ela deveria chorar de emoção com o gol da seleção enquanto “inglês vê” as maravilhas conquistadas pelo crescimento econômico brasileiro. Malditos vândalos que não entendem que o Brasil está progredindo e que querem atrapalhar a nossa grande festa da modernidade.
Não vai ter espetáculo. Arma-se, ao contrário, um grande circo que aponta para o fracasso das estruturas democráticas brasileiras, em que o governo se vale das mesmas armas sórdidas das quais foi vítima no passado.
O que está por trás da lei antiterrorismo é uma caça às bruxas em nome das “pessoas de bem”. Por isso é bom lembrar o significado das expressões bem e mal. São categorias que se polarizam na história do ocidente e da Igreja Católica, dividindo o céu e o inferno. Os cidadãos de bem, é claro, seguindo fielmente as regras dominantes, assumem o seu lugar no paraíso. Endossado pela grande mídia que vê seu poderio ameaçado, o bem é uma categoria falsa e vaga para manter a velha e boa ordem que conjuga conservadorismo econômico, religioso e político.
O mundo dos movimentos sociais, entretanto, não se pauta pelos valores como o bem e o mal, mas pela ética e a justiça. A ética reside na possibilidade de exercer cidadania, de ir e vir, de reivindicar, de escolher e de circular. Não há critérios éticos nem justos para definir terrorismo. Serão critérios discriminatórios generalizantes que, em nome da paz e do bem, apenas visam espalhar aprisionamento, medo, sangue e tortura entre aqueles que não se enquadram nas regras do espetáculo.
Lei antiterrorismo é fruto do medo que gera ainda mais medo. Medo de que as coisas fujam da “normalidade”. Ao longo da história, em nome do “bem”, muitas vidas inocentes já foram executadas para no fim das contas manter a ordem. E se não barrarmos imediatamente esse absurdo, a zona do terror só tende a se ampliar.
* Rosana Pinheiro-Machado é cientista social, antropóloga e professora de Antropologia do Desenvolvimento da Universidade de Oxford.
Foto: Reprodução/Agência Brasil
Fonte: Carta Capital