Por Luara Wandelli e Vitor Shimomura, do Maruim.
Mãe Mari toca para todos os santos no Terreiro de umbanda Caboclo Rompe-Mato, o único da Favela do Siri.
Sobre as ondas brancas de areia, aos poucos, o vento seco beija com paciência as dunas que circundam a Vila do Arvoredo, no bairro Ingleses, e carrega, infindamente, milhares de pequenos grãos até a fachada dos casebres que formam a comunidade, também conhecida como Favela do Siri. Abaixo das dunas e da mata rasteira, a típica restinga, as casas de madeira mambembe e telhado de zinco surgem como uma miragem no meio do deserto, onde dezenas de famílias pobres lutam, diariamente, por uma vida digna e tranquila. Descalça, enquanto cuida os passos da filha de criação caçula, Mãe Mari, 51 anos, dona do único terreiro da favela, caminha e deixa a marca de suas pegadas na densa areia de primavera, castigada por longos 40 dias de chuva. Regidas pelo El Niño, ou por Iansã, a rainha dos ventos e tempestades, e Orixá da cabeça de Mãe Mari, as nuvens carregadas resolveram desaguar incessantemente no último mês, formando no seio da comunidade um imenso lago verde, que logo alcançou o terreno da casa da Mãe de Santo: “Quero que vocês façam uma reportagem sobre as minhas galinhas. Olha só, as coitadas perderam tudo”, troçou, apontando para o galinheiro inundado.
“Se tiver feijão e arroz, têm para mais um. Se eu tiver que comer só arroz e ovo, vamos comer arroz e ovo juntos”.
Não faz muito tempo que Mari, Alcionei, os filhos de criação e de santo chegaram à Favela do Siri, carregando os móveis e joias da Exu Mulher, a Pomba Gira Maria Padilha por cima das dunas. Há um ano e meio, a Ialorixá ganhou a casa de uma filha de santo, agradecida pela amarração de um homem desejado, e saiu do aluguel no Sítio de Baixo, não muito longe dali, para viver na nova moradia. Sempre lhe rondando, os filhos de santo que escolheu lhe dão orgulho, mas são muito exigidos: não podem beber, não podem trair, e até para cortar o cabelo pedem a permissão da autoridade. “É, eu sou antiga”, explica, com um ar irônico. Para ela, em seu peito, sempre caberá mais um: “Se tiver feijão e arroz, têm para mais um. Se eu tiver que comer só arroz e ovo, vamos comer arroz e ovo juntos”.
Seu humor também é um dom. Um de seus filhos de santo, que hoje mora com ela, chegou do Rio de Janeiro e foi parar na sua porta por acaso: “Vou construir minha casa aqui não. Vai ser no Vale dos Orixás”. Mari retruca: “Tu vai morrer, é?”. Mas quem recebe as ordens mais firmes da feiticeira é o marido. “Nunca imaginei que ia permanecer casada 24 anos”, resume a mulher que coleciona bonecas de bruxa e as pendura por toda a casa. “Às vezes, até me arrependo. Tudo eu tenho que mandar. Se eu não mando, nem no banheiro ele vai. Minha filha, és casada? Quando casar, seja assim que nem eu com teu marido”. No entanto, Alcionei também é autoridade no terreiro. É ele que faz o atabaque ecoar até o céu estrelado; é ele que conhece os pontos de todos os Orixás, cantos quase infinitos, mas se molesta com a falta de memória dos filhos de santo, que muitas vezes o deixam cantando sozinho.
“Não acredito nessa gente que aprende a religião em livro, isso não existe”
O terreiro Caboclo Rompe-Mato costuma encher em dia de festa, principalmente de Exu, porque afinal, Mari incorpora a Exu mulher, a Maria Padilha ou Pomba Gira. As mulheres a procuram perguntando sobre o futuro de seus amores ou desamores, implorando feitiços para corações. No entanto, a sacerdotisa diz que apenas se incomoda quando só a procuram em tempos de crise. “Muitos só querem pagar e ver os resultados num piscar de olhos”, desabafa. Mari virou Ialorixá no Candomblé, aprendeu perguntando e diz ter superado sua professora. “Não acredito nessa gente que aprende a religião em livro, isso não existe”, a Mãe de Santo não parece se sentir menos sábia por mal saber assinar o nome. “Sair do ponto neutro e escolher o caminho certo”, para fazer o certo é necessário escolher um caminho, nessa escolha, são os Orixás que guiam. Houve um momento em que o povo de terreiro teve que fazer com que Exu fosse considerado o mal, para que ele combatesse a verdadeira maldade, o chicote, a senzala, a escravidão. Eles tiveram que fazer com que os brancos temessem os feitiços de Exu. Naquela época, Exu virou o mal para fazer o bem, ou seja, o mal para quem fazia o verdadeiro mal. A Ialorixá lembra de como os terreiros eram perseguidos quando era mais moça: o povo santo tinha que se fechar para fazer as giras, se escutassem qualquer barulho, os vizinhos apedrejavam o terreiro e, quando a polícia invadia, batia em Mãe de Santo e jogava spray de pimenta na cara até das entidades que ainda estavam ali. Mari acredita que as agressões já não são tantas e afirma que na comunidade onde mora não há tanto preconceito. Muita gente de outras religiões a procura para buscar outros caminhos.
Quando nasceu, Mãe Mari foi registrada no cartório como Mário Miranda, filho de evangélicos: uma índia do Maciço do Morro da Cruz e um policial militar. Aos dois anos, a criança adoeceu e foi internada. Mas uma Mãe de Santo avisou os pais que, se eles não deixassem o Candomblé intervir, o bebê iria morrer. O casal aceitou que a Preta Velha fizesse o trabalho e a criança sobreviveu. Aos sete anos, ela já sabia quem era: muito mulher. Aos 15 anos começou sua feitura no Candomblé, religião que deixou pela Umbanda. Mari pouco fala sobre esta passagem. Começava a contar a história, mas interrompia para tentar controlar a pequena Micaela, de dois anos, a única que não consegue domar: “essa tem uma personalidade forte, deve ser filha daquele lá… Ogum”.
Além de Micaela, Mãe Mari tem outros tesouros: da caixa escondida acima do armário, a mulher tira joias, colares e brincos de bronze, prata, ouro e até um escaravelho para ser usado como um exuberante anel. São presentes que ganhou dos filhos de santo, de ouro e prata, porque a Maria Padilha não gosta de bijuteria. Sobre a cama do casal, ela espalha as joias e mostra cada um com suas longas unhas pintadas de branco. “Uma vez o Alcionei disse pra eu vender, de brincadeira. Eu fiquei semanas de cama. Elas são muito importantes para a Padilha”. Em um instante, o fotógrafo sai do quarto. Ela se veste, põe uma infinidade de anáguas, uma delas é a da Padilha, a única negra, e pede ajuda para fechar o sutiã. Da sua voz rouca, ecoada no genuíno sotaque manezinho, a feiticeira conta que o Terreiro de Umbanda Caboclo Rompe-Mato foi erguido com esforço de sua família e filhos de Santo, que levantaram a construção primeiro de bambu e depois de madeira. Como forma de dar adeus à construção frágil, que tinha sido consumida por constantes tempestades de areia, a Ialorixá organizou uma grande festa. Mas, justamente quando seu esposo, Alcionei, e os filhos de santo tinham acabado de erguer e pregar as últimas tábuas da construção, uma vizinha denunciou o feito da família e a Fundação Municipal do Meio Ambiente (FLORAM) tratou de intervir e multar a dona da casa, alegando que a construção terreiro era irregular. Obstinada, a Mãe de Santo argumentou que a casinha não era para morar, era para religião.
Com o aquecimento do ramo da construção civil e da especulação imobiliária na região, desde os anos 1980, muitos trabalhadores e trabalhadoras migrantes optaram por comprar terrenos de famílias nativas nas chamadas Áreas de Preservação Permanente (APP), assim como grande parte das residências dos Ingleses. E com o tempo, na virada do século, a Favela do Siri começou a se encorpar, chegando a cerca de 210 famílias, aproximadamente 791 pessoas, segundo levantamento feito por agentes de saúde do município, mas ela ainda está em expansão. Em 1991, na mesma reserva ambiental, onde estão as casas de madeira, foi construído um grande resort: o Costão do Santinho Resort. Ao longo das últimas duas décadas, não foram poucas as acusações que os moradores da Vila do Arvoredo receberam, até o falecido ex-governador Luís Henrique da Silveira colocou na conta dos moradores a responsabilidade pela poluição na praia dos Ingleses, enquanto saudava o ramo hoteleiro e seu luxo sobre costões.
E a tarde ensolarada, regada a muito cigarro paraguaio, vai caindo, enquanto as crianças do vilarejo brincam em um pequeno lago que se formou do outro lado da favela, no meio dos montes de areia. Dentro do terreiro, chega a hora de Mãe Mari sentar no trono de madeira, coberto por adornos e panos coloridos. Ao redor, nas bordas do salão, todos os filhos vestem roupas brancas, que antes secavam ao vento no varal. Rezaram o Pai Nosso e bateram cabeça para pedir licença para os Orixás. “Para que quero fumar um cigarro. E, Simone, vista tua roupa de Pomba Gira!”. Logo depois, a prima Simone retorna vestida como uma cigana. Padilha, de corpete vermelho e negro, passa a garrafa de cachaça e, como se o líquido branco fosse limpar as impurezas do corpo, cada um esfrega a umidade no cangote e ombros.
No vermelho e preto do vestido, com joias e colares ofertados ao corpo, chapéu e cachimbo, Exu Mulher dança em rodopio. Na gira, o som do atabaque dita o ritmo da sessão, sendo interferido por sussurros e falas bêbadas. “O que achas de minha face?”, pergunta Exu, com boca na fumaça e um olhar escondido, misterioso e desviado. Na mão desgastada de unhas brancas prolongadas, como as de uma bruxa dos contos de Franklin Cascaes, segura uma reluzente taça de prata, onde bebe champagne e água ardente. Da repetição de seus gestos, saem coisas não ditas, enganações e sedução de sobra a todos que adentram o terreiro. E no embalo, os discípulos seguem o ritual, cada um com sua singularidade. Sensíveis, rodopiam incessantemente, tremem, caem e descansam aos pés de Exu e de todos os santos. No banco grudado à parede de entrada, convidados da comunidade observam, batem palma e escutam a sessão diligentes, enquanto a pequena Micaela brinca com o primo, em meio ao arrebatamento do terreiro. Sem se deter por conta das broncas da mãe ou avó (chama Mari pelos dois nomes), a pequena demonstra a tendência de ultrapassar os limites, e assim como Ogum, se irrita com facilidade?—?é teimosa, orgulhosa, intempestiva e sincera. Logo mais, Mãe Mari aponta para a criança que bate palma e canta junto: “visse a menina?!”.
E a sessão continua. Entre um gole e outro, um trago no cigarro, um canto e um rodopio, a noite segue na força do axé. Os pés descalços, com a barra da calça dobrada, vibram junto com o chão de madeira oca. “Exu dá boa noite! gostas de cerveja, é?” seduz Exu. E quando o silêncio chega no terreiro, do lado de fora, uma imensa orquestra de sapos e pererecas soltam o seu ecoar, como se o agrado dos santos naquela noite, fizesse valer para a comunidade inteira.
Foto: Reprodução/ Maruim
Fonte: Maruim