Por Daniel Giovanaz, do Brasil de Fato.
“A gente ouve o presidente Bolsonaro dizer que os indígenas estão tocando fogo na Amazônia. O nosso povo não faz isso. Os invasores é que tocam fogo para limpar a estrada e poderem entrar com mais facilidade. Só que falta apoio do governo para fiscalizar. A gente fica pensando: O que eles querem? Será que querem tomar [a terra] de nós, pouco a pouco?”
O relato é de Natanael Karajá, cacique da aldeia Lariwana, na Ilha do Bananal. A Terra Indígena (TI) Parque do Araguaia, onde ele vive, registrou 1358 focos de queimada em 2021.
O número coloca a área no topo do ranking do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com quase 18% de todos os focos de queimada registrados em terras indígenas este ano.
Os dados foram extraídos da plataforma BDQueimadas e abrangem o período entre 1º de janeiro e 30 de setembro de 2021.
Em abril, o governo Jair Bolsonaro (sem partido) aprovou um corte de 24% no orçamento do Meio Ambiente para este ano. Do total previsto inicialmente, as ações de controle e fiscalização ambiental perderam R$ 11,6 milhões, enquanto prevenção e controle de incêndios florestais tiveram redução de R$ 6 milhões.
Com 1.359 hectares, a TI Parque do Araguaia tem 3502 habitantes de quatro povos: karajá, javaé, tapirapé e avá-canoeiro. Além do arrendamento de gado, autorizado pelos órgãos competentes, os moradores convivem com madeireiros e pescadores ilegais.
Os maiores incêndios se concentram em uma região conhecida como Mata do Mamão, onde vivem indígenas isolados. Trata-se do maior maciço florestal da Ilha do Bananal, com cerca de 110 mil hectares.
Em conversa com o Brasil de Fato, moradores da TI expressam preocupação com o avanço da pecuária e com a presença de invasores.
Os entrevistados também questionam o desmonte dos órgãos de fiscalização do Ministério do Meio Ambiente (MMA), como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
O crescimento dos focos de queimada na TI este ano é de 31,3% sobre o mesmo período de 2020.
A Ilha do Bananal é a maior ilha fluvial do mundo, com 1,9 milhões de hectares. Ela é cercada pelos rios Araguaia e Javaés, fica na tríplice divisa entre Tocantins, Mato Grosso e Pará, e faz parte da Amazônia Legal.
Além da TI Parque do Araguaia, a Ilha abriga a TI Inawebohona e o Parque Nacional do Araguaia.
“Até cinco anos atrás, o Ibama trabalhava com a ideia de desmatamento zero. De lá para cá, a gente passou a empregar uma técnica chamada Manejo Integral do Fogo, baseada em queimas antecipadas, prescritas ou controladas, para diminuir o material combustível e evitar grandes incêndios na época das queimadas”, explica o indígena Vantuires Javaé, que vive na porção leste da Ilha.
Nos últimos dois anos, ele relata que o trabalho de manejo foi atrapalhado pela pandemia. Por isso, os incêndios teriam aumentado.
“O Inpe acusa os focos de calor, sem diferenciar o que é incêndio e o que é queima controlada. Podemos identificar pela época. De julho a setembro, pode saber que é incêndio mesmo.”
Julho foi o pior mês de 2021, segundo a plataforma do Inpe, com 676 focos – mais que o dobro do registrado no mesmo período do ano anterior.
Porteira aberta
O clima do médio Araguaia, caracterizado por inundações periódicas, cria naturalmente áreas propícias para pastagem, chamadas de “varjão”.
Os primeiros relatos de pecuária bovina na Ilha do Bananal remetem à década de 1920. A atividade se intensificou na segunda metade do século, com a instalação de fazendas às margens dos rios Araguaia e Javaés.
Em 1969, a Fundação Nacional do Índio (Funai) decidiu cobrar taxas pelo uso das pastagens. Em vez de inibir a atividade, a medida legalizou a permanência de pecuaristas na Ilha.
Vinte anos depois, indígenas Javaé denunciaram à Procuradoria-Geral da República (PGR) a invasão de suas terras por posseiros. Por decisão judicial, a Funai passou a suspender arrendamentos irregulares e retirou os invasores.
Após uma série de decisões contraditórias sobre o tema, a criação de gado dentro da TI Parque do Araguaia foi novamente permitida em 2009. A autorização é fruto de um acordo firmado entre indígenas e o Ministério Público Federal (MPF) no Tocantins.
Hoje, há cerca de 120 mil cabeças de gado na Ilha do Bananal. Há pouco mais de 30 anos, o número estimado era de 300 mil.
“Existe um projeto aqui na Ilha onde o não-índio coloca o gado e paga pelo uso das pastagens”, afirma Vantuíres Javaé, em referência ao arrendamento legal.
“Talvez a pecuária não funcione como deveria e precise de mais regulação, mas os indígenas têm consciência e permitem essa atividade.”
Relatos obtidos pelo Brasil de Fato em condição de anonimato apontam a pecuária como principal causa das queimadas.
O cacique Natanael Karajá vive às margens do rio Araguaia diz que a falta de fiscalização dificulta a identificação dos responsáveis pelo fogo.
“Eu nasci e cresci aqui. Estou na casa dos 40 e converso sempre com os mais velhos. Eles dizem que na época deles não tinha tanto incêndio quanto hoje”, lembra.
“A gente sempre ouve reclamação de que os fazendeiros [pecuaristas] estão tocando fogo, mas eles dizem que fazem isso na época certa [queima controlada]. Então, a gente fica sem saber se o incêndio é culpa dos fazendeiros ou dos pescadores ilegais, que entram na Ilha do Bananal.”
Os invasores
Natanael diz que a presença de madeireiros e pescadores é cada vez mais frequente na TI, e os indígenas não têm ferramentas para monitorar e barrar essas atividades ilegais.
“A Ilha do Bananal é muito rica em peixe. O mais procurado é o pirarucu, mas eles também vêm atrás do tucunaré, do pintado e da tartaruga. A carne dela é muito gostosa é muito cara. Eles tiram e levam congelada, principalmente para o Pará”, conta o cacique.
Kamutaja Silva Ãwa pertence ao povo ãwa, conhecido na literatura como avá-canoeiro e regionalmente como cara preta. Ela afirma que a presença de invasores já impacta na subsistência de seus familiares, que aguardam a conclusão do processo de demarcação da terra.
“Minha família vive da caça. A gente recebe uma ajuda de custos até a nossa terra indígena sair [concluir a demarcação]. O que se compra é apenas arroz, feijão, essas coisas. O complemento vem com caça e pesca. E as queimadas matam o bioma e os animais que estão lá”, relata.
Entre os animais mais caçados pelos avá-canoeiro estão o veado, a anta e o catitu, também conhecido como porco-do-mato.
“Tem diminuído bastante os peixes que tinha antes – peixes grandes, que geralmente há em locais preservados. Na região da aldeia Boto Velho [da etnia Javaé], que tem havido muita pesca ilegal para venda de peixe e tartaruga”, reforça a indígena.
A mãe, os irmãos e os sobrinhos de Kamutaja vivem “de favor” – nas palavras dela – em uma aldeia do povo jê (javaé e karajá) enquanto esperam a demarcação. Ao todo, são 32 nessa condição.
Kamutaja é a única que deixou a Ilha do Bananal, em razão das condições de vida a que seu povo está submetido. Aos 18 anos, ela mudou-se para Palmas (TO) com o esposo, e hoje estuda Pedagogia.
“Este ano, madeireiras entraram na Ilha do Bananal para derrubar árvores que tinham mais de cem anos. Madeira nativa”, lamenta a indígena.
Na época, equipes da Polícia Ambiental e da Funai confirmaram que ao menos um jatobá centenário foi derrubado por madeireiros ilegais.
O local mais crítico
Vantuires Javaé participou, por mais de 30 dias, de uma operação para conter o avanço do fogo na Mata do Mamão, considerado o local de incêndios mais crítico da Ilha.
A operação, liderada pelo Ibama e pelo Instituto Chico Mendes de Conservação Ambiental (ICMBio), começou em 19 de julho e é classificada como nível 3 – quando exige um monitoramento mais sofisticado e requer a convocação de brigadas de outros estados.
“Lá tem um histórico de incêndios muito grande. Quem faz a gestão da área é o ICMBio, que não tem corpo suficiente para atender essa demanda. Então, a gente busca pessoas de fora para ajudar nas operações”, relata o indígena.
“Como a região já queimou em anos anteriores, tem muita área de regeneração, e então nascem gramíneas, que têm muito potencial para incêndio nos meses mais secos. É onde surgem os grandes incêndios. Fica difícil controlar.”
Segundo o Ibama, atuaram diretamente na operação 142 pessoas, entre servidores, brigadistas do Ibama e do ICMBio e um servidor da Funai, equipados com 17 viaturas tracionadas, um caminhão, um helicóptero, um quadriciclo, três viaturas adaptadas, entre outros veículos.
Kamutaja Silva Ãwa lembra que a Mata do Mamão é um dos últimos refúgios de indígenas avá-canoeiro em isolamento voluntário.
“Meu avô, sobrevivente do contato forçado do ano de 1973, conta que havia mais de nós na Mata do Mamão, sem contato com a sociedade não-indígena. Durante os meus 27 anos, tenho ouvido falar sobre esses parentes na mata”, lembra.
“No ano de 2019, queimou 80% da mata. Este ano, também. Não sei a porcentagem, mas houve descontrole do fogo na Mata do Mamão. E esse fogo não estava sendo noticiado, porque o foco estava todo na votação do marco temporal.”
O cacique Natanael Karajá ressalta que, sem apoio dos órgãos competentes, não há como proteger a Ilha do Bananal do fogo e dos invasores.
“Como liderança da região, a gente fica preocupado. A natureza, cada vez mais, está mudando. Não é a Ilha do Bananal que era antigamente”, diz.
“A exploração de madeira está acontecendo a uns 18 km da minha aldeia. Entram pessoas sem autorização, fazem pesca ilegal, retiram madeira. Este ano, não teve praticamente nenhum incentivo por parte da Funai. Eles falam que tem, mas para nós continua do mesmo jeito: sem fiscalização.”
Preocupada com a família e a mais de 200 km de distância de sua terra, Kamutaja enfatiza o sentimento de impotência diante das invasões.
“A Ilha do Bananal é grande e merece uma atenção espacial da Funai, do pessoal que fiscaliza. Os pontos de entrada são diversos, então a gente não sabem quem entra, nem o que estão fazendo”, diz.
O Brasil de Fato apresentou os questionamentos sobre a fiscalização à Funai, ao MMA e ao Ibama. Não houve retorno até o fechamento da matéria.
Edição: Anelize Moreira