A Terra Indígena (TI) Cachoeira Seca foi a mais desmatada no Brasil e também a mais degradada no Estado do Pará em 2016. Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), foram desmatados 680 hectares e degradados 1.773 hectares, até setembro deste ano. A TI tem 788.633 hectares. O desmatamento ocorre quando há supressão completa da vegetação. Já a degradação acontece com o corte seletivo de árvores.
Localizada na zona de influência da hidrelétrica de Belo Monte, a área é sistematicamente saqueada por madeireiros e grileiros, entre outros invasores. Só neste ano, de lá foi retirado o equivalente a mais de 1,2 mil caminhões de madeira (veja vídeo abaixo e galeria de fotos ao final da reportagem).
“A situação está cada dia pior. Tem muita saída de madeira, muitas pessoas diferentes entrando na nossa área. Já apresentamos o problema e nada foi feito. Enquanto isso essas invasões só aumentam”, alerta Mobo-Odo, cacique do povo Arara, que habita a TI. A comunidade relata que é possível ouvir o barulho das máquinas dos madeireiros e com isso deixou de utilizar áreas para a abertura de roças e coleta de produtos da floresta, como a castanha e o babaçu. Em três anos, um grupo de invasores avançou 65 km na floresta e agora está a apenas 12 km da aldeia mais próxima.
A TI faz parte de um mosaico de áreas protegidas da região conhecida como Terra do Meio, entre os rios Iriri e Xingu, no centro-sul do Pará, e é alvo de conflitos desde a década de 1970 (saiba mais no box no final da reportagem). O mosaico resguarda uma das maiores biodiversidades da Amazônia, além de ser um muro de contenção à expansão do desmatamento que se alastra do Mato Grosso ao Amazonas em direção ao centro da Floresta Amazônica.
Publicada em abril, a homologação da TI é uma das mais importantes condicionantes do licenciamento de Belo Monte e deveria ter sido efetivada antes do início das obras, seis anos atrás.
Mobo-Odo comemora mais essa etapa no processo de demarcação, mas denuncia que, mesmo após a homologação, a situação na TI continua crítica. “Na prática, a nossa situação de segurança territorial pouco mudou. Continuam, por toda área, roubo de madeira, invasões, grilagem de terras, desmatamento florestal, abertura de estradas e ramais, pesca e caça ilegal e entrada contínua de pessoas na TI”, alerta. A denúncia foi reforçada numa cartados Arara entregue ao Ministério Público Federal (MPF), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) e Fundação Nacional do Índio (Funai).
Segundo estudo realizado pelo ISA, entre 2014 e 2015 o desmatamento na Cachoeira Seca aumentou 73% e a extensão das estradas de madeireiros ilegais, 48%, contabilizando mais de 43 mil hectares desmatados e 333 quilômetros de estradas. Desde 2011, foram abertos mais de 1,3 mil km de estradas, 258 km só em 2016, para escoar milhares de toneladas de madeira. Calcula-se que, apenas no ano de 2014, foram movimentados R$ 200 milhões em vendas ilegais de madeira da área (saiba mais na publicação Rotas do Saque).
Os Arara utilizam grandes porções de seu território para coleta de castanha, babaçu, caça, e outros insumos essenciais para sua subsistência. A exploração madeireira, além de promover intensa degradação ambiental, impede que a comunidade percorra a TI para exercer essas atividades. Uma das frentes madeireiras, na região do Igarapé Dois Irmãos, incide sobre áreas utilizadas pelos indígenas para a coleta de castanha (saiba mais).
“Além de extrair toda a riqueza da floresta, o dano também se dá nestes termos: de tirar a condição de uma atividade extrativa não impactante, própria do modo de vida dos Arara. Eles [madeireiros] restringem, de forma ilegal criminosa, a mobilidade que é a condição de uma exploração sustentável do território”, atenta Márnio Teixeira Pinto, antropólogo que trabalha com os Arara desde a década de 1980.
Ipê é alvo principal
A árvore mais procurada pelas máfias madeireiras na TI Cachoeira Seca é o Ipê. A beleza da sua floração facilita sua identificação e exploração ilegal. Uma vez localizada, os madeireiros cortam a mata em busca dessa e de outras espécies, deixando um rastro de degradação. O alto valor agregado do ipê, cujo metro cúbico está acima de US$ 2 mil, viabiliza a sua exploração a grandes distâncias dentro de áreas protegidas, colocando em risco a floresta e as pessoas que ali vivem. A regeneração da espécie exige muito mais tempo do que o previsto nos ciclos de manejo florestal e a fragilização das suas matrizes genéticas poderá levar a limitar sua ocorrência (leia mais). O ISA defende uma moratória na exploração predatória que torne ilegal a compra dessa madeira.
Ações de fiscalização
O Ibama realiza ações de fiscalização para proteger a TI Cachoeira Seca em duas linhas de trabalho. A primeira é voltada a combater o desmatamento, a exploração florestal e o uso de créditos florestais ilegais. Em 2015, foram realizadas 210 autuações por infrações que totalizam R$ 179,3 milhões em multas. Em 2016, até o momento, foram realizadas 79 autuações, totalizando R$ 116,6 milhões em multas.
Para o Ibama, a grande quantidade de créditos florestais gerados por Planos de Manejo Florestal Sustentável (PMFS) no entorno da TI facilita a exploração ilegal de madeira na área e demais danos ambientais associados. De acordo com Luciano Evaristo, diretor de Proteção Ambiental do Ibama, o PMFS sem acompanhamento gera um crédito que é usado para ‘esquentar’ a madeira ilegal. “Os créditos estão sendo usados para ‘brocar’ [degradar] áreas da União. Amanhã essas áreas vão se tornar um grande grilo, sendo que poderia ter sido evitado se esse crédito não tivesse entrado no mercado”, alerta.
A segunda linha de trabalho é voltada para as infrações no interior da TI praticadas por invasores. Nos últimos seis anos, o Ibama aplicou 16 multas que totalizam R$ 638,5 mil. Nos últimos 12 meses, foram apreendidos 8 tratores, 4 caminhões e 2 carros no interior da TI.
“A última operação foi terrivelmente ruim. Eu não consegui chegar no madeireiro porque ele já sabia que o Ibama estava chegando e colocou toras na estrada para dificultar o nosso acesso. Eles [madeireiros] têm um sistema de inteligência muito bem articulado e dominam totalmente o território. Tem que atacar o centro do problema, se não a gente vai ficar enxugando gelo”, ressalta Evaristo.
Diante o avanço do desmatamento e da abertura de estradas ilegais, a Funai promete intensificar as articulações para que ações de fiscalização ambiental sejam realizadas na TI.
Desintrusão
De acordo com a Funai, foram identificadas 1.085 ocupações de não indígenas no interior da área, sendo 72% de pequenas propriedades. O órgão indigenista pretende agora encaminhar a saída gradativa e o reassentamento dos ocupantes, em sua maioria posseiros de boa fé. Entre eles, também há ribeirinhos que, assim como os Arara, depende dos recursos da floresta e para os quais será necessária uma relocação diferenciada para garantir seus direitos. A retirada e a relocação das famílias não indígenas que vivem na TI Cachoeira Seca também é uma das condicionantes de Belo Monte que deveria ter sido cumprida antes do início das obras.
A implantação de postos de vigilância nas TIs afetadas pela hidrelétrica – dois deles na TI Cachoeira Seca – é outra condicionante não cumprida pela Norte Energia, empresa concessionária de Belo Monte. Segundo os Arara, a construção do posto prevista para começar, em 2012, foi impedida com violência por ocupantes não indígenas, que bloquearam a passagem dos materiais e da equipe de construção na época. Depois disso, a empresa não tomou mais providências.
30 anos de luta
Em 1972, a construção de um trecho da rodovia Transamazônica cortou ao meio o território dos Arara, que até então viviam em isolamento voluntário, fazendo com que a região fosse invadida por colonos, garimpeiros e madeireiros ilegais. Além de ter suas terras drasticamente reduzidas, os Arara sofreram com conflitos, mortes, desagregação social e desestabilização da sua vida produtiva. O caso foi registrado como grave violação de direito humano pelo Relatório da Comissão Nacional da Verdade, em 2014 (leia a íntegra do documento).
Uma frente de atração foi instituída ainda nos anos 1970 pelo governo e os primeiros grupos foram contatados quase uma década depois, entre 1981 e 1984. Apenas em 1987, a comunidade que hoje vive na TI Cachoeira Seca foi oficialmente contatada. Nesse meio tempo, os estudos de identificação das áreas foram avançando, ainda que lentamente por causa dos conflitos na região.
A TI Cachoeira Seca foi interditada para estudos em 1985 e homologada mais de 30 anos depois, tornando esse processo de demarcação um dos mais longos da história. Essa é a única TI cuja regularização fundiária foi iniciada antes da promulgação da Constituição de 1988 e ainda não tinha sido homologada.
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Fonte: ISA.