Os últimos meses têm sido de acirramento das tensões movidas a interesses que rondam a (falta de) demarcação de terras indígenas. Parlamentares da bancada ruralista apresentam projetos que, segundo antropólogos e lideranças indígenas, dificultariam ou inviabilizariam processos de demarcação que vêm sendo protelados há décadas. Um desses projetos é uma Proposta de Emenda Constitucional, a PEC 215.
Apresentada em 2000 pelo deputado Almir Sá (então PPB-RR), transfere para o Legislativo a competência para demarcar territórios de ocupação tradicional no Brasil, indígenas ou quilombolas. Desde a Constituição, essa prerrogativa cabe ao governo federal, em basicamente três fases. A Fundação Nacional do Índio (Funai) realiza estudos que atestam a ancestralidade do território. O Ministério da Justiça assina um documento chamado Portaria Declaratória. E, por último, cabe a homologação da terra pela Presidência.
“Se não tem PEC, dialogamos com o governo. Com a ameaça da PEC, temos de lutar”, afirma Marcos Tupã, 42 anos, coordenador-geral da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), que congrega povos Guarani Mbya e Guarani Nhandeva das regiões Sul e Sudeste. Tupã resume a razão que levou os Guarani a deixar de lado sua vocação negociadora e ir às ruas. “A PEC acaba com qualquer garantia de demarcação de novas terras”, avalia, lembrando que a bancada ruralista possui grande poder de influência no Congresso.
O senador Romero Jucá (PMDB-RO) é autor de outra inciativa – redigida com a participação da Advocacia-Geral da União. Seu projeto estabelece que áreas consideradas como Terras Indígenas (TI) poderão ser excluídas dessa classificação se seus títulos de ocupação não forem “considerados válidos”. Essa manobra legislativa significaria revogar o parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição – que assegura a demarcação da terra à comunidade tradicional – a pretexto de “regulamentá-lo”.
Mas os projetos em andamento não são o único motivo a provocar ações como a dos Guarani, que no último 25 de setembro fecharam a Rodovia dos Bandeirantes, na região metropolitana de São Paulo. A CGY exige que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, autorize a publicação das portarias declaratórias de duas terras indígenas da capital paulista: a Tenondé Porã, na zona sul; e a do Jaraguá, zona noroeste. Ambos os territórios já foram aprovados pela Funai. “Falta apenas a assinatura do ministro”, reivindica Marcos Tupã.
O líder guarani conta que as duas terras abrigam quatro aldeias: duas em cada território. A do Jaraguá é formada pelas aldeias Pyau e Ytu, onde residem cerca de 600 guaranis. Reconhecida na década de 1980, a reserva possui área de apenas 1,7 hectare, o que faz dela a menor TI do país. A de Tenondé Porã, às margens da Represa Billings, também foi reconhecida nos anos 1980.
Os indígenas que fecharam a rodovia querem ainda o fim dos processos judiciais movidos pelo governo do estado de São Paulo contra povos Guarani cujos territórios se sobrepõem aos limites de parques estaduais. É o caso da Terra Indígena Peguoaty, no município de Sete Barras, região do Vale do Ribeira, e da Terra Indígena Paranapuã, em São Vicente, litoral sul. “Temos uma forma de viver tradicionalmente, junto à natureza”, garante Marcos Tupã. “Queremos que o governo retire essas ações judiciais e que possa haver uma gestão compartilhada entre governo do estado, povos indígenas e Funai.”
Tempos de emboscadas
Onde faltam consolidação fundiária e respostas rápidas do poder público, sobram conflitos, em geral produzidos por poderes paralelos que agem à margem da lei. Uma emboscada na calada da noite mudou a rotina dos estudantes da Escola Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro, em Buerarema, sul da Bahia, a 450 quilômetros de Salvador. Em 14 de agosto, uma quarta-feira, o ataque pegou de surpresa alunos que retornavam da aula num caminhão. Dois jovens não indígenas foram feridos. Mas, segundo índios, era o início de uma nova série de investidas contra os tupinambás, que aguardam há nove anos a conclusão do processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. Dois dias depois, moradores atearam fogo em veículos de órgãos públicos e em um ônibus escolar.
A Força de Segurança Nacional está no município para conter a crise. A violência e a tensão na região crescem. No mesmo fim de semana, casas de indígenas na área urbana foram incendiadas por moradores, em apoio aos fazendeiros. “O agronegócio está articulando essas ações criminosas, e vidas correm perigo”, denuncia a líder indígena Yakyuy Tupinambá. Ela afirma ainda estar sob ameaça de morte por parte de fazendeiros, pequenos agricultores e posseiros, supostos proprietários dos territórios em litígio. Os ataques, segundo os índios, estariam se agravando motivados pela decisão da Justiça Federal de Ilhéus de suspender liminares de ações de reintegração de posse em favor de fazendeiros. Com isso, cerca de 500 indígenas ficam autorizados a permanecer nas fazendas ocupadas.
A lentidão dos órgãos públicos desenha o cenário de conflitos. O Ministério da Justiça ainda não assinou a portaria declaratória para que seja concluída a demarcação. O processo teve início em 2004 e o relatório foi aprovado pela Funai em 2009. O documento delimita área de cerca de 47 mil hectares, incluindo terras nos municípios de Buerarema, Ilhéus e Una. Cerca 4.700 tupinambás vivem na região.
Difícil retomada
A relação pouco amistosa entre índios e fazendeiros no sul da Bahia é antiga. Começou com a invasão de não indígenas ao território tupinambá no século 19, período do estabelecimento da cultura do cacau e no qual a região tornou-se a principal fronteira agrícola do estado, segundo a jornalista Daniela Alarcon, mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília e autora da pesquisa “O retorno da terra: as retomadas na aldeia Tupinambá de Serra do Padeiro, Bahia”.
O processo de “retomada”, como é chamado pelos tupinambás, não está fácil. Os índios enfrentam violência de fazendeiros e posseiros, que contam ainda com aparato policial e apoio político em suas investidas contra as aldeias. De acordo com o relato de Daniela, os tupinambás têm sido vítimas de recorrente violência policial, em que se comprovaram a utilização de armamento letal, prisões ilegais de lideranças e tortura (com choques elétricos).
Em carta à Funai datada de 13 de fevereiro de 2008, como relata a jornalista, o cacique Babau denunciou o radialista Rivamar Mesquita, apresentador do programa Novo Amanhecer, da Rádio Jornal, e dois convidados a abordar o caso tupinambá durante aproximadamente 40 minutos, proferindo ameaças de morte e falas discriminatórias. Babau é uma importante liderança da aldeia Serra do Padeiro, onde vivem cerca de mil índios.
Ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público Federal em dezembro de 2012 cobram da União atendimento aos índios que não estejam em áreas demarcadas e o fornecimento de medicamentos. No final de agosto, foi lançada a Campanha Tupinambá, com abaixo-assinado e carta pública que pede urgência na conclusão do processo. Na mesma ocasião, procuradores do MPF em Ilhéus estiveram com lideranças dos índios e representantes da sociedade civil para tratar das recentes manifestações anti-indígenas.
“A conclusão do processo demarcatório é essencial para a pacificação da região, pois trará segurança jurídica para ambas as partes”, afirmou o procurador da República Ovídio Augusto Amoedo Machado.
Não demorou para outro incidente ocorrer. Em 5 de setembro, o professor Edson Kayapó, coordenador da Licenciatura Intercultural Indígena do Instituto Federal da Bahia (IFBA), foi agredido. Ele estava com o antropólogo João Veridiano, a professora de História Indígena Julia Rosa e um motorista. Retornavam de atividades em Olivença quando o carro da IFBA foi interceptado em São José da Vitória por capangas. “Disseram: ‘Tem um índio no carro’, e em seguida fomos violentamente expulsos do carro, que foi levado, incendiado e deixado no meio da BR”, diz Edson Kayapó. Ele pegou táxi para Itabuna e foi novamente parado, em Buerarema, espancado e ameaçado de morte por desconhecidos.
“Ultimamente ninguém está se pintando nem usando adornos”, diz a líder Yakuy Tupinambá. Segundo ela, anda perigoso ter cara de índio. Toda a rotina das aldeias da região foi afetada, prejudicando o atendimento de saúde, a ida das crianças à escola, a venda de artesanato e de produtos agrícolas. “Somos atacados com palavras racistas, estamos perdendo o direito de ir e vir.” Ela reclama que blogueiros locais incitam a violência contra o povo Tupinambá.
Diante do cenário pouco animador, lideranças planejam intensificar ações e tentar audiências com a presidenta Dilma Rousseff e os ministros da Educação, Cultura, Promoção da Igualdade Racial e de Direitos Humanos. “Há muito os caciques do povo Tupinambá de Olivença tentam uma audiência com a presidenta, mas ela não deu nenhuma resposta até agora”, afirma a líder.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Justiça respondeu por meio da assessoria que o ministro Cardozo tem se reunido semanalmente com representantes da Presidência e de diversos ministérios no sentido de agilizar soluções para a questão de disputas de terras, especialmente em conflitos ocorridos nos estados da Bahia, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul. Numa segunda tentativa de contato, informou, por e-mail, que no dia 18 de setembro uma equipe técnica do ministério esteve na Bahia para integrar grupo de discussões sobre a situação local.
“Essa é uma das diretrizes determinadas após reuniões em Brasília. O grupo formado por indígenas, agricultores e agentes da esfera pública tem o objetivo de identificar os possíveis focos de conflito na região. O Ministério da Justiça vai expedir portaria declaratória, reconhecendo-a como território tradicional indígena, após minuciosa análise jurídica da documentação antropológica feita pela Funai.” A nota termina detalhando que a última etapa é a homologação pela Presidência da República e que a Força Nacional de Segurança permanece no local para evitar novos focos de conflito.
A pesquisadora Daniela Alarcon observa, porém, que o processo de demarcação no Brasil, regulamentado por decreto, é claro quando estabelece prazos máximos para cada etapa. “Então tem lá: x dias para que o grupo de trabalho elabore o relatório, x dias para que a Funai faça isso, x dias para que o MJ faça aquilo. Mas a Funai, o MJ, a Presidência da República desrespeitam sistematicamente esses prazos. É gritante. O decreto fala lá em 30, 60 dias para determinadas etapas, que acabam se estendendo por anos.” O MPF propôs ação civil pública que responsabiliza o Estado por omissão e abusiva demora.
Foto: Gabriela Korossy
Fonte: Rede Brasil Atual