Teoria, Ideologia e Repercussões Políticas: abordando a execução de Marielle Franco

Por Pedro Felipe Narciso.

A ideologia não é falsa consciência absoluta, como aponta certo marxismo; mas também não é apenas uma visão de mundo que se apresenta sob diferentes graus de complexidade, desde o folclore (grau mais simples) à filosofia (grau mais sofisticado), como quer Gramsci. O ideológico, tal como Althusser propõe, é uma instância insuperável do real podendo ser definido como a região em que se localizam os sistemas de significações e representações que orientam e organizam as massas humanas dotando-as de conhecimentos (e desconhecimentos) práticos e operativos. Dessa maneira toda formação social em qualquer tempo e lugar tem uma instância ideológica, sendo que nas sociedades de classes o ideológico é dividido por diversas ideologias também de classe, sendo hegemônica a ideologia da classe dominante, a qual submete a processos de colonização, submissão e pressão as outras formações ideológicas.


Além das ideologias, as teorias diversas, que não se confundem com meras ideologias embora seu lócus de existência seja o nível ideológico, também influenciam os elementos e sua disposição nos sistemas de representação (ideologias) na medida em que são incorporadas como senso-comum, como verdade evidente e operativa. Um exemplo que poderíamos citar é a influencia que a teoria materialista da história exerceu sobre a ideologia da classe operária durante certa altura do século XX, organizando o modo como essa classe interagia com o real. Eis aqui a querela do marxismo e das classes populares, o seu divórcio. Tal cisão é o que motiva a escrita do presente texto, pois o fim da hegemonia teórica marxista sobre a ideologia operário-popular tem se revelado desastrosa para tais setores, servindo-lhes como um fator de sua própria desorganização. Como forma de abordar tal problemática e demonstrar a tragédia que isso significa, ilustraremos a questão com um fato concreto: a execução da vereadora Marielle Franco e sua repercussão no seio da esquerda.

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A colonização teórico-ideológica que aqui se abordará é a do historicismo e o princípio da constelação de fatores. A doutrina historicista, com a pretensão de abordar o real na sua complexidade múltipla, defende que esse real só pode ser investigado na sua complexidade concreta, enquanto uma singularidade absoluta, na qual todos os elementos compartilham equitativamente do mesmo potencial explicativo. Eis um dos maiores exemplos dessa colonização ideológica na teoria marxista, E. P. Thompsom:

“Vêem-se, com freqüência, praticantes teóricos, reunidos em aplicados grupos, questionando as categorias. Mas devido aos seus bloqueios empíricos, são incapazes de interrogar o ponto (na sociedade ou na história) em que essas categorias se cruzam. Em lugar de interrogar uma categoria, interrogaremos uma mulher. Será, pelo menos, mais agradável. Vamos supor que essa mulher seja a “esposa” de um homem, a “amante” de outro, a “mãe” de três filhos em idade escolar. Operária numa confecção de roupas e “representante” de seus colegas, é “tesoureira” da seção local do Partido Trabalhista e, nas noites de quinta-feira, é “segundo violino” numa orquestra amadora. De constituição forte (necessariamente) mas sofre de uma disposição depressiva levemente neurótica. É também (quase me esqueço) membro da Igreja Anglicana, e uma “comungante” ocasional.”(p.167) [1]

O que o historiador inglês quer nos dizer com tal parágrafo? Primeiro, que a realidade pode ser apreendida em toda a sua complexidade por meio de um empirismo ingênuo; segundo, que todos esses papeis desempenhados por certo indivíduo determinam de modo equivalente a sua existência e, como se não bastasse, devem ocupar – de modo também equivalente – papel central para uma teoria da história, como se tocar violino e ser tesoureira do Partido Trabalhista tivessem a mesma relevância do ponto de vista do materialismo-histórico. Passemos à crítica.

O materialismo-histórico não é uma sociologia da vida cotidiana, é uma Ciência da História que tem por objeto os processos de transição e reprodução dos modos de produção nas mais diversas formações sociais. Ou seja, não se tem a pretensão de abstrair da realidade todos os seus elementos nos seus detalhes mais mínimos, mas apenas aqueles cujas repercussões são pertinentes à reprodução ou à transformação das formações sociais. Como qualquer ciência, a ciência da história tem categorias e um objeto construídos cognitivamente no intuito de aproximar-se sucessivamente do real sem nunca ter a ilusão de identificar-se com ele, portanto, na perspectiva do materialismo-histórico o empirismo ingênuo aproxima-se mais de uma ilusão ideológica do que de uma teorização científica. No que tange a tese da constelação de fatores cabe salientar que não se nega que o real é real porque é a “unidade do diverso”, a “unidade de múltiplas determinações”. O que, no entanto, se afirma é: o real é determinado por elementos que são complexos na sua própria constituição interna, portanto tais elementos podem e devem ser estudados tanto analiticamente, no sentido de verificar sua estrutura e dinâmica imanente; quanto inseridos numa estrutura e dinâmica global, em que se verifica a sua eficácia e pertinência para o todo. Ou seja, os elementos que compõe o todo tem pertinência distinta e não equivalente. Com isso não quer se afirmar uma pertinência essencial que transcenda todo e qualquer contexto ou objeto de investigação, inclusive se defende o contrário, existe um deslocamento dessas eficácias e pertinências de acordo com o contexto observado e o problema construído. No caso colocado por Thompsom, por exemplo, num estudo sociológico sobre relações familiares cotidianas é provável que a pertinência de ser mulher, esposa, amante e mãe seja maior do que ser operária e tesoureira do Partido Trabalhista. No entanto, não se pode transpor a eficácia e pertinência dos elementos citados para investigar, por exemplo, a mobilização operária contra o desmonte do Welfare State. Mais uma vez, o materialismo-histórico não tem por objeto as trajetórias individuais, mas a história das formações sociais, sua problemática, portanto, é outra.

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Até aqui tratamos de criticar a perspectiva teórica historicista. Agora, tratemos de observar suas repercussões na ideologia das classes populares. Ilustrar-se-á a derivação ideológica da teoria historicista com a leitura hegemônica de determinada esquerda sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco. Antes disso cabe listar os fatos em sentenças simples, tal procedimento tem o intuito de facilitar o consenso intersubjetivo sobre o acontecimento como fato. Depois passemos às derivações especulativas.

  1. a) Marielle Franco era mulher.
  2. b) Marielle Franco era negra.
  3. c) Marielle Franco era lésbica.
  4. d) Marielle Franco elegeu-se vereadora.
  5. e) O Partido de Marielle Franco faz oposição aos governos municipal, estadual e federal.
  6. f) Os governos municipal, estadual e federal apoiam a intervenção das forças armadas na cidade do Rio de Janeiro.
  7. g) O alto comando militar expressou explicitamente sua desaprovação quanto aos acompanhamentos civis das operações.
  8. h) Marielle Franco era contra a intervenção militar no município do Rio de Janeiro.
  9. i) Marielle Franco era relatora da comissão parlamentar do município do Rio de Janeiro para acompanhamento da intervenção militar.
  10. j) Marielle Franco fez denúncias contra o excesso da violência policial na favela do Acari.
  11. k) O carro em que estava Marielle Franco foi alvejado.
  12. l) Marielle Franco e o motorista do carro faleceram.

Aqui estão alguns dos fatos que envolvem o nome da vereadora e o seu assassinato. Cabe ressaltar que qualquer um desses elementos poderiam ser desdobrados quase que infinitamente para caracterizar ou o fato ou a vítima. Acontece, no entanto, que é necessário ao entendimento da realidade um processo de seleção e organização racional dos fatos a fim de estabelecer seus conectivos e desencadeamentos, seus deslocamento de eficácias e pertinências. Antes disso, para o prosseguimento da argumentação, passa-se a leitura hegemônica em certa esquerda política que, por uma série de motivos, ilustrar-se-á por meio de relato de evidência anedótica que segue.

A partir da interação pelas redes sociais e da participação em ato de protesto organizado pelo partido da vereadora assassinada observou-se discursos do seguinte tipo: a) Marielle é mais uma mulher negra que morre. b) Marielle é mais uma vítima do genocídio contra o povo negro; c) o genocídio contra o povo negro acontece em todo o lugar; d) aqui na cidade x, no bairro x, todo dia são mortos jovens negros. e) a esquerda branca quer que falemos de milícia, de golpe, mas isso é mais um capítulo do genocídio contra o povo negro. f) Marielle morreu porque era mulher, negra e homossexual; g) Marielle morreu porque foi uma contradição do sistema, chegou onde os brancos não querem que as mulheres negras cheguem. Enfim, sob diferentes formas a única tese propalada era que Marielle fora mais uma mulher negra vítima do racismo e da misoginia. Discordamos dessa tese e explicitamos nossa argumentação no parágrafo a seguir.

Mais uma vez recorremos a Althusser e suas considerações sobre ideologia, ele diz: “Alusão-ilusão ou reconhecimento-desconhecimento: assim é a ideologia do ponto de vista de sua relação com o real” (p.64)[2]. O que isso quer dizer? Que a ideologia não é uma falsa consciência absoluta, ela opera por meio de alusões ao real no sentido de iludir, ou seja, o “agente” se reconhece no real pela ideologia e opera no real pela ideologia. Nos discursos do parágrafo anterior percebe-se esse processo de alusão ao real, pois, é verdade que Marielle é mais uma mulher negra que morre; é verdade que ela é uma vítima do genocídio contra o povo negro; é verdade que o genocídio contra o povo negro é um fenômeno generalizado; é verdade que jovens negros são assassinados com frequência no bairro x da cidade x; é verdade que Marielle era negra, mulher e homossexual; é verdade que muitos brancos, sobretudo os de posição privilegiada, sentem-se incomodados com o sucesso profissional de uma mulher negra. Verifica-se então nos discursos que emanam a tese que contrariamos uma série de alusões ao real, uma série de verdades. No entanto, tais alusões ao real promovem ilusões, pois não estabelecem um nexo sistemático entre os diferentes elementos nas suas eficácias e pertinências diferenciadas. Os elementos que compõe a realidade aludida são absolutizados sem trato teórico, tal como em Thompsom.

Para reforçar a fragilidade da tese propalada na esquerda recorremos a duas questões. Primeiro, alguém minimamente razoável poderia atribuir o assassinato ocorrido no Pará da missionária Doroty Stang, que era católica, norte-americana, militante da causa camponesa e tantas outras coisas, ao anticlericalismo ou anti-americanismo? Segundo, se o genocídio da população negra e, especialmente da mulher negra, é um elemento cotidiano e estrutural da realidade brasileira, por que motivo a morte de Marielle ganhou tamanha repercussão, gerando mobilizações e discussões que não se verificam em todos os outros casos?

A primeira questão parece um tanto ridícula, mas ela cumpre a função de ilustrar com um caso prático a desigualdade de pertinência e eficácia dos elementos que definem “uma pessoa” para o entendimento de um processo específico, num contexto específico. A resposta à questão, obviamente, é negativa. A missionária Doroty Stang foi executada exclusivamente por ser militante da causa dos camponeses pobres. Quanto à segunda questão, sua resposta é o que enseja nossa tese sobre o caso: Marielle não morreu por ser mulher, não morreu por ser negra, não morreu por ser mãe, não morreu por ser homossexual, ou por qualquer outro elemento que a constituísse como unidade de complexidade que todos são. Marielle foi executada por ser dirigente popular e parlamentar da causa anti-intervenção. Não é mais uma vítima da violência urbana, da violência policial, do racismo, da misoginia, da homofobia, é uma vítima da violência de um Estado em processo de restrição democrática, é uma vítima de um Estado de exceção que caminha para o terrorismo de Estado, que não garante segurança jurídica à livre atuação parlamentar de um político da segunda maior cidade do País. Trata-se de crime político por excelência, execução política no sentido mais estrito do termo. O fato de ser mulher negra de origem pobre tem sua relevância explicativa na constelação de fatores no sentido de elucidar o “como” – os aspectos que dizem respeito à falta de cuidado por parte dos assassinos em tentar dissimular a execução, como forjando a queda de um avião, para dar um exemplo desinteressado; mas ser mulher negra de origem pobre, no caso em questão, não explica o porquê, a motivação fundamental.

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Consideramos que a tese da constelação de fatores rasos ou da transposição não mediada das eficácias e pertinências repercute na ideologia das classes populares cumprindo um papel de auto-desorganização e fragmentação egoístico-passional. Afirma-se isso, pois, as consequências políticas que se derivam das leituras acerca do caso Marielle distinguem-se radicalmente quando se introduz o instrumental do deslocamento das eficácias e pertinências. Demonstremos o argumento.

  1. a) Leitura da transposição não mediada das eficácias e pertinências.

Leitura: Marielle é mais uma vítima da violência generalizada contra a mulher negra que assola o Brasil desde os tempos da escravidão. Orientação política: Afirmar a dignidade da mulher negra na sociedade por meio da afirmação da nossa diferença tal qual vem sendo feito. Consequência: Luta do tipo democrático que opera pela lógica da diferença, multiplicando as arenas políticas e os seus alvos.

  1. b) Leitura do deslocamento das eficácias e pertinências.

Leitura: Marielle é uma vítima de um Estado de exceção que caminha para o terrorismo de Estado. Orientação política: Dada excepcionalidade e gravidade é necessário suspender diferenças e operar por equivalências, mobilizando uma frente ampla pela normalidade democrática contra o terrorismo neoliberal. Consequência: Luta popular que opera pela lógica da equivalência, unificando as diversas arenas políticas numa única arena, contra um único alvo.

Nota-se, que a introdução de um princípio teórico simples altera radicalmente uma concepção ideológica e suas consequências políticas. Reside nisso a importância da luta teórica no seio das ideologias, uma mínima perturbação teórica no senso ideológico tem um eco político imensurável.  A teoria deve perder a ilusão de superar ou eliminar o eliminável, as ideologias, e deve reforçar o seu estatuto no interior daquelas no sentido de transformar seus efeitos políticos. Expurgar da teoria o historicismo empirista e o humanismo doutrinário são tarefas da luta teórica cuja repercussão no âmbito da política tende a ser o enfraquecimento do esquerdismo diversionista e imobilizador. A situação em que se encontra o Brasil é mais do que catastrófica, o Estado já está colecionando suas vítimas. Parece que o senso de responsabilidade e realismo político precisa logo ser acionado sob o custo da multiplicação do terror.


[1] THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1981.

[2] ALTHUSSER, Louis. Teoria, Prática Teórica e Formação Teórica: Ideologia e luta ideológica. In BARISSON, Thiago (org), Teoria Marxista e Análise Concreta: Textos escolhidos de Louis Althusser e Étienne Balibar. São Paulo: Expressão Popular, 2017.

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