Por Murilo Pajolla, Brasil de Fato.
Se dependesse do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a Terra Indígena Yanomami não existiria. Quando era parlamentar, ele atuou para impedir a demarcação do território. Sua justificativa era que os indígenas poderiam se separar do Brasil e fundar um país independente, com ajuda de organizações não governamentais (ONGs). Conforme especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, a ideia não tem lastro na realidade, mas está presente na cultura do Exército brasileiro.
Em 1995, o coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto publicou o livro chamado A farsa Ianomâmi, em que alertava para o suposto perigo do separatismo e chegava a questionar a existência dos Yanomami enquanto povo. Em janeiro deste ano, Bolsonaro usou a expressão “farsa da esquerda” para se referir à crise humanitária em Roraima.
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A escolha das palavras não é coincidência, segundo João Roberto Martins Filho, estudioso da atuação das Forças Armadas na política e professor da Universidade Federal de São Carlos (UFScar).
“Realmente o Bolsonaro colocou essa ideia dos militares no centro dos atos dele. Quando nós vemos hoje a situação dos Yanomami, que vai com certeza render ao Bolsonaro um processo internacional, nós vemos a que ponto chegou essa política de considerar os indígenas como praticamente inimigos. Não há dúvida nenhuma que isso aconteceu no governo Bolsonaro. Ele levou ao extremo essa interpretação das questões Yanomami”, analisa o especialista.
Na década de 1970 a ditadura militar abriu estradas na Amazônia, que provocaram conflitos e epidemias no território Yanomami, ainda não demarcado. As violações foram denunciadas por países da Europa e organizações do terceiro setor. As teorias conspiratórias sobre os Yanomami surgiram em meio a acusações de que o Exército estaria violando gravemente o direito dos indígenas.
O coronel e autor Menna Barreto morreu em 1995. Mas, segundo o pesquisador da UFSCar, a mentalidade anti-indígena segue influenciando os oficiais do Exército.
“Os militares insistem muito nesse ponto de que um dia, por uma campanha internacional, aquela região dos Yanomami pode virar uma região contestada e ser reconhecida como território independente pela ONU [Organização das Nações Unidas]. Coisa que é absolutamente inverídica e fora de propósito. Mas esses são os mitos que vão sendo alimentados, principalmente dentro do Exército”, afirma Martins Filho.
Fake news em plena crise humanitária
O líder Yanomami Dário Kopenawa lamenta ter que rebater notícias falsas enquanto vê seus parentes – crianças e idosos – morrerem de fome e doenças tratáveis. Ele criticou autoridades bolsonaristas, entre elas Hamilton Mourão (Republicanos), ex-presidente do Conselho da Amazônia e senador pelo Rio Grande Sul.
Ao comentar a calamidade na terra indígena Yanomami, o general Mourão disse em entrevista a uma rádio gaúcha que “há trânsito de indígenas da Venezuela”, ecoando um argumento falso utilizado amplamente por bolsonaristas de que as vítimas da crise humanitária não seriam brasileiras.
“Isso é uma mentira. Eles estão mentindo nas redes sociais, estão mentindo na imprensa. Parem de mentir!”, rebateu, irritado, Dário Kopenawa, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato concedida na semana passada.
“Temos Yanomami no Brasil e venezuelanos também. Nossos parentes também estão lá [na Venezuela]. Mas esses parentes [vítimas da crise humanitária] não são venezuelanos. São os do Brasil. Repetindo, são [das comunidades] Surucucu, Homoxi, Kayanau, Parafuri, Kataroa… São brasileiros”, enfatizou o líder Yanomami.
Indígenas ajudaram militares na fronteira
“A presença indígena ora interessa aos militares, ora é invisibilizada”, diz Elaine Moreira, antropóloga que pesquisa a Terra Indígena Yanomami há quase 30 anos. Ela lembra que os indígenas ajudaram os militares a construir os pelotões de fronteira, que ficam dentro da área protegida, na divisa com a Venezuela. A pesquisadora ressalta o papel dos Ye’kuana, povo que divide o território com os Yanomami.
“Muitos se alistaram no Exército. Havia uma grande dependência desses soldados indígenas dentro território. Essa é uma região muito turva do rio Auaris. Quem tinha o conhecimento sobre como navegar eram os indígenas. Os pelotões usam madeira do território. Eles têm uma pequena hidrelétrica para gerar energia. E demorou muitos anos para que os indígenas tivessem acesso à eletricidade”, conta Moreira.
A antropóloga critica ainda a paranoia com as organizações do terceiro setor que atuam em parceria com os indígenas. A atuação das ONGs é vista pelos militares como uma ameaça à soberania nacional. O pensamento contradiz a realidade, já que os Yanomami passaram os últimos quatro anos clamando pela presença do Estado na região. Os apelos por mais saúde e proteção foram ignorados.
“É muito claro isso: os indígenas nunca foram uma ameaça à soberania. O que ameaça são os invasores, a presença de pessoas armadas, pistas clandestinas usadas pelo garimpo. E a usurpação por garimpeiros de estruturas do Estado que deveriam estar sendo usadas pelo serviço de saúde. Isso é que está ferindo a soberania”, critica.
Outro lado
A reportagem não localizou o contato do ex-presidente Jair Bolsonaro, que está nos Estados Unidos. Pelo aplicativo de mensagens Telegram, ele alegou que “os cuidados com a saúde indígena” foram “uma das prioridades do governo federal”. Procurados, Hamilton Mourão e o Exército não responderam.
Edição: Rodrigo Durão Coelho.