Por Douglas F. Kovaleski para Desacato. info.
O setor saúde, apesar de ser insistentemente colocado no campo das ciências biológicas, portanto isentos de aspectos sociais e políticos, possui interfaces com a complexidade da vida no planeta, desde questões ambientais, passando por aspectos sociológicos, políticos, antropológicos e econômicos. Interfaces estas historicamente negadas no ensino das ciências da saúde e na grande mídia, e bastante deficitárias na formação dos profissionais e das profissionais da saúde.
Essa é uma construção política que visa neutralizar um importante campo do saber e vem sendo arquitetada repetidamente por organizações internacionais que representam os interesses do capitalismo. Neste aspecto, há uma extensa bibliografia que aborda a intencionalidade política da Organização Mundial da Saúde, Fundações Privadas, como no passado: Fundação Kellog’s, Fundação Bill e Melinda Gates, por exemplo; atualmente quem faz essa interferência política no modo de pensar a saúde são diretamente as grandes empresas do setor privado da saúde, como planos de saúde, hospitais, seguradoras entre muitos outros.
A epidemia da COVID-19 no Brasil explicita a forte relação que a saúde coletiva estabelece com a sociabilidade. Sociabilidade como abordagem geral que engloba o conjunto de comportamentos, escolhas, imposições que interferem direta ou indiretamente na saúde humana. Nesse contexto, é de extrema importância para a saúde coletiva entender esses fenômenos sociais e as relações que eles estabelecem com a saúde.
Para começar esse desafio esta coluna passa a analisar nas próximas semanas uma questão fundamental: por que a epidemia de COVID-19 tem um comportamento diferenciado no Brasil, com relação a outros países? Aqui o número de casos e de mortes assume características de um platô e não de uma curva, ou seja, o número de casos e mortes após atingir o pico não abaixa rapidamente, mas mantém-se elevado.
Uma primeira hipótese refere-se ao tamanho do país, onde as várias curvas, ao observar estado a estado, alternam-se assumindo o formato de um platô quando calculadas em termos médios no país inteiro. Mesmo com essa aceitável hipótese, há que se considerar certo descaso em termos de medidas preventivas, pois mesmo quando uma região ou estado atinge elevado número de casos e mortes, como foi o caso de São Paulo no início da pandemia no Brasil, as demais regiões não aplicam medidas preventivas adequadas e capazes de reduzir a propagação da epidemia. O “platô brasileiro” também conta com outro aspecto que justifica sua manutenção pelo tempo: a constante reaceleração da curva de casos e mortes em lugares que já atingiram o pico e reduziram a curva.
Nessa perspectiva, há que se trazer à tona de uma vez por todas as dificuldades que o país tem em fazer o chamado isolamento social bem como de implementar uso de máscaras, álcool gel e outras medidas de higiene e cuidado. Mas de onde emergem estas dificuldades? Será um problema de gestão local, gestão nacional, de interesses mercadológicos ou será apenas displicência das pessoas que não adotam de fato estes cuidados? Pouco a pouco irei abordando todos estes aspectos juntamente com teoria social e a conjuntura política que perpassa o ascenso da direita no Brasil com seu formato específico e o concomitante crescimento da ideologia religiosa de cunho evangélico o país.
Seguem algumas pistas do que iremos abordar nessa empreitada:
– a determinação social da COVID-19: onde abordarei as formas com que a condição concreta de vida e trabalho, renda, emprego, moradia, nível de escolaridade, alimentação, transporte e lazer atuam na epidemia;
– como as desigualdades sociais interferem na epidemia: considerando as abissais desigualdades e suas consequências no cotidiano, na possibilidade de escolhas, na subjetividade, no cuidado e no autocuidado;
– como a “colonialidade da morte”, categoria cunhada por Aníbal Quijano, auxilia-nos na compreensão profunda da valorização/desvalorização da vida no Brasil.
– como o plano de poder evangélico atua na epidemia, pois aproveita-se de um momento de vulnerabilidade das pessoas, medo e incapacidade da ciência em dar uma resposta eficaz para o controle da epidemia.
Estes são alguns passos iniciais nesse desafio de compreender a epidemia de COVID-19 além da aparência, visando prover munição para a luta em prol da transformação da sociedade e superação do modo capitalista de produção.
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Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.
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