Por Elissandro Santana, Porto Seguro, para Desacato.info.
O problema da mercantilização da água no Chile não é um fenômeno recente, tendo em vista que teve origem em regimes militares, por isso, aqui, a partir de um prisma histórico, analisarei a questão à luz dos fatos passados e contextos atuais.
Para começar a discussão, é oportuno externar que a fotografia que encabeça este artigo/matéria é de 2016, despontando como um registro dos protestos de milhares de pessoas contra o anti-modelo de Águas no/do Chile. De acordo com Mídia Coletiva Org, no dia 23 de abril daquele ano, milhares de pessoas saíram às ruas no país para exigir uma mudança no atual modelo que privatizou a apropriação da água no país. Moradores/as das cidades, camponeses/as e indígenas de diferentes regiões do país se reuniram na cidade de Temuco (ancestral território Mapuche, no sul do país) com o objetivo de confrontarem com um dos pilares mais destrutivos da política neoliberal adotada no Chile desde o final dos anos setenta.
O quadro de privatização de todos os recursos hídricos foi e continua sendo terrível para o povo chileno e, também, para o meio ambiente no país, pois com a concentração das reservas hídricas nas mãos das grandes corporações transnacionais e de outras companhias de capitalização estrangeira, a exploração ambiental ultrapassa a questão hídrica, alcançando a mineração e outras bases extrativistas, setores econômicos tradicionalmente depredadores da terra e, consequentemente, da vida.
Maude Barlow, uma das estudiosas mais instigantes no que se refere à discussão em torno da necessidade da proteção da água potável para o futuro das pessoas e do Planeta, no livro “Água futuro azul”, ancorada em dados da rede ambiental “Chile Sustentable” de 2010, afirma que o Chile foi o país que mais mercantilizou a água, consolidou uma economia de mercado baseada em direitos privados sobre os recursos hídricos, privatizou serviços de água, bem como construiu represas, controlou corporativamente rios para a mineração e outras indústrias extrativistas.
Para fins de historicização e contextualização da problemática, torna-se oportuno recorrer mais uma vez à autora acima, pois ela afirma, categoricamente, que a mercantilização da água no país começou com o Código da Água de 1981 promulgado pelo regime militar de Augusto Pinochet que foi baseado em uma forte tendência pró-negócios. Segundo a pesquisadora em baila, pela primeira vez na história do Chile as terras e água foram separadas para permitir a compra e venda hídrica, sem restrições. Pontuou também que embora a água seja definida como um bem público nacional é um ativo de mercado, permitindo a sua privatização através de concessões gratuitas perpétuas dos direitos a grandes interesses corporativos. Uma vez que os direitos à água tenham sido concedidos, o Estado não teria mais o direito de intervir e, dessa forma, a realocação dos recursos hídricos seria feita por meio da compra e venda nos mercados de água.
Por fim, é importante externar que a questão da privatização da água não é um problema somente Chileno, mas de grande parte da América Latina e, também, de outras nações e continentes. No Brasil, por exemplo, já existem iniciativas nesse âmbito. Outro dado interessante para compreender como a privatização caminha a passos largos é o interesse descomedido da Nestlé pela exploração da água em várias partes do Planeta, desde a América do Sul, às Américas Central e do Norte, à Europa, à África e, até mesmo, à Ásia.
Trago à tona o caso Chileno, pois este país latino-americano, ao longo de sua história, tem tratado a água como um direito privado e tal concepção equivocada tende a se concretizar e cristalizar em uma nação na qual o neoliberalismo tem sido a lógica governamental desde os regimes militares, mas em outras nações do globo esse fenômeno cresce cada vez mais. Ou seja, o problema não é somente chileno.
Valho-me mais uma vez de Maude Barlow para apresentar as consequências da concentração de poder sobre a água em mãos corporativas, pois acerca desta questão a pesquisadora pontua que o domínio sobre a água está, em grande parte, com as transnacionais e que isso levou a um ataque sem precedentes sobre as fontes de água subterrânea e de superfície do país. Que essa concentração causa uma tensão ecológica em muitas áreas e cria disputas entre as comunidades locais e a corporações. Ademais, os agronegócios chilenos usam grandes quantidades de pesticidas, herbicidas e fertilizantes que degradam as bacias hidrográficas que, da mesma maneira, drenam as fontes de água locais para produzir mercadorias de exportação. Ela apresenta que no compromisso chileno com um modelo privado de água, o país privatizou todo seu setor hídrico e de água residual, celebrando contratos com empresas de serviços hídricos transnacionais como a Suez e consórcios de investimentos estrangeiros como o Plano de Pensão dos professores de Ontário.
Outro ponto que deve ser considerado ao se pesquisar sobre a privatização da água no Chile é o fato de que a construção e desenvolvimento de políticas hidroelétricas para a geração de eletricidade por meio de transnacionais ameaça de forma profunda e contundente áreas pertencentes aos povos originários, tradicionais, ou seja, aos indígenas, assim como a terras que deveriam ser protegidas pelo Estado na região sul, onde as reservas hídricas são gigantes.
Torna-se necessário discutir que assim como no Brasil, em que as privatizações durante a gestão do governo FHC, com a venda de estatais e de recursos naturais da Nação, eram vistas como um ótimo negócio para a República Federativa do Brasil, no Chile, para a mercantilização da água também se vendeu essa promessa, mas o que se viu foi uma situação de acirramento de injustiças sociais.
Conforme Maude Barlow, empregos foram perdidos desde a privatização e a desigualdade nas taxas da água foi documentada em diferentes partes do país. Ela também ressalta, para refutar aqueles que dizem que a privatização trouxe o milagre dos serviços hídricos para o Chile, que a privatização não significou uma melhoria na cobertura ou acesso aos recursos hídricos para os chilenos. A porcentagem da população atendida por água potável e serviços de esgoto era quase exatamente a mesma de antes e que a única área na qual ocorreram melhorias foi no tratamento das águas residuais, que é pago pelo consumidor com taxas cada vez mais altas.
É notório que essa visão chilena de exploração mercantilizada de um bem que é direito de todos é um modelo falido, pois viola os diretos dos seres humanos à vida, mas, mesmo assim, várias nações no planeta estão seguindo caminhos bem verossímeis.
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Foto: Mídia Coletiva.