Tensão social e eleições em Moçambique

 moçambiquePor Vicente Assane.* 

Depois de 490 anos de exploração imperialista portuguesa, um dos maiores períodos de colonização da África, Moçambique se libertou do julgo português em 1975, através de uma luta armada violenta. Saiu desse conflito com o sonho de uma sociedade unida, pacífica e igualitária, com um sonho socialista. Mas o povo moçambicano não teve descanso. Nem bem acabava sua luta de independência, já no ano seguinte, o povo se viu metido em uma guerra civil fratricida, que jogou o país na instabilidade política, em ruínas social e econômica e numa pobreza ampla e profunda. Esta guerra perdurou por 16 anos, terminando somente em 1992, quando os dois polos do embate, Frelimo e Renamo, em Roma, assinaram o Acordo Geral de Paz. Desde então, tem-se feito esforços no sentido de reduzir a desconfiança e aprofundar a paz através de consultas, diálogo, consenso e políticas de inclusão para reintegrar as partes inimigas. Nesse Acordo Geral de Paz, os dois lados reconheceram a legitimidade mútua.

A Frelimo (Frente de Libertaçao Nacional) nasceu como um movimento anticolonialista, de orientação marxista-leninista e que consolidou os ideais independentistas. Surgiu em 1962, liderado por Eduardo Mondlane, e a partir de 1964 iniciou uma política de guerrilha armada contra o domínio português. Liderou todo o processo de independência como um estado independente, com uma Constituição que permitia apenas um partido: a Frelimo.

E a Renamo (Resistência Nacional Moçambicana) surgiu como oposição à Frelimo. Nasceu como uma organização política anticomunista, apoiada pelos governos da Rodésia (hoje, Zimbábue) e da África do Sul do Apartheid. Surgiu, portanto, como um movimento de guerrilha de direita.

A partir do Acordo Geral de Paz, a Renamo se converteu em um partido político, abandonando sua ideologia anticomunista, mas mantendo-se conservadora. A Frelimo, por sua vez, abandonou o marxismo-leninismo em direção a uma democracia multipartidária de mercado livre, ou seja, assumiu o capitalismo, com tendências neoliberalizantes cada vez mais fortes.

Num segundo momento do Acordo, se estabeleceram, entre outros, os princípios da Lei Eleitoral, na qual ficou acordado que Moçambique adotaria o sistema de representação proporcional, revogando, assim, o sistema de listas majoritárias que rezava a Constituição de 1990.

De lá para cá, foram realizadas quatro eleições presidenciais no país – 1994, 1999, 2004 e 2009 – e três eleições autárquicas -1998, 2003 e 2008. A Renamo concorreu às eleições, tanto para o parlamento – onde é sempre minoria -, como também para as presidenciais, as quais nunca ganhou.

Nas eleições presidenciais de 1994 foi eleito Joaquim Chissano, que já era presidente desde 1986. E a Frelimo ganhou também a maioria dos assentos na Assembleia. A Renamo reclamou, mas por fim aceitou os resultados. Nas eleições de 2004, foi eleito Armando Guebuza, da Frelimo, que ocupou 160 lugares do parlamento, e a Renamo somente 90. Nessa eleição houve confrontos violentos entre simpatizantes dos dois partidos, que resultaram na morte de um guarda armado do líder da Renamo. Também ocorreram confrontos violentos nas eleições autárquicas de 2008.

Em 2009, Armando Guebuza foi reeleito com 75% dos votos válidos. Afonso Dhlakama, da Renamo, ficou com apenas 16%. Na Assembleia da República, a Frelimo elegeu 191 deputados, a Renamo 49, e o Movimento Democrático de Moçambique (MDM) 8.

Quanto às eleições autárquicas, a Renamo e quase a totalidade da oposição boicotaram o pleito de 1998, vindo a concorrer apenas em 2003. Nas eleições de 2008, a Frelimo obteve vitória esmagadora, ganhando em 41 dos 43 municípios.

Agora, Moçambique está a dois meses das eleições autárquicas, marcadas para 20 de novembro de 2013. E, em 2014, ocorrerão as eleições presidenciais. Mas o clima não está bom. Apesar de todo esforço para manter a paz, ainda permanece uma alta falta de confiança entre as duas maiores forças políticas.

Há alguns meses essas duas forças entraram em um processo de diálogo político sobre quatro pontos essenciais: a despartidarização do aparelho do Estado, a questão da segurança e da defesa, o acesso aos recursos naturais e a reforma da Lei Eleitoral.

Neste último ponto entrou-se num impasse: a Renamo quer a reforma da “Lei Eleitoral”, ou seja, daqueles princípios estabelecidos no Acordo de Paz que determinavam o sistema de representação proporcional. A lei tem sido o principal ponto de discórdia, sobretudo no que se refere à composição dos órgãos eleitorais. A Renamo exige paridade: na Comissao Nacional de Eelições (CNE) e no Secretariado Técnico da Administração Eleitoral (STAE); o governo insiste na proporcionalidade.

Atualmente, a CNE é composta por 13 membros, sendo 1 presidente e 12 vogais: 5 da Frelimo, 2 da Renamo, 1 do MDM, 1 juiz, 1 procurador e 3 membros da sociedade civil.

A Renamo propõe que a entidade seja constituída por 17 membros, sendo 7 dela e um número igual a uma coligação entre MDM e Frelimo, uma vez que esta última já tem maioria absoluta no parlamento. E que os três membros restantes sejam da sociedade civil. A Frelimo, no entanto, considera a exigência da Renamo descabida. E já se vão vinte rodadas de negociação sem que se chegue a nenhum resultado. A sociedade acompanha com apreensão esse tenso diálogo político, pois para os moçambicanos é sinal de uma nova instabilidade com todas as possíveis consequências que podem decorrer daí. O país está em suspense. Isso tudo pode comprometer a realização das eleições, a manutenção da paz, e há quem fale em guerra civil.

Com efeito, a Reanamo ameaça inviabilizar as eleições autárquicas, seja por que meios for, caso o governo não responda positivamente às suas exigências.

Para Maria Alice Mabota, presidente da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos, este é um momento difícil na vida dos moçambicanos e paira um espectro de guerra na zona central do país. Para Luís de Brito, diretor do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos (IESE), vive-se uma situação de guerra embrionária.

E de fato estão acontecendo confrontos entre as forças de defesa e segurança moçambicanas com homens armados da Renamo no centro do país, onde se reinstalou Afonso Dhlakama desde o final do ano passado, na região onde antes funcionaram as antigas bases militares da Renamo.

O processo de diálogo segue, com a Frelimo acusando a Renamo de atentar contra o fortalecimento da democracia através de seus homens armados atacando civis e veículos de transporte público, e a Renamo acusando a Frelimo de que a abertura de seu governo é uma camuflagem, além de estar usando a forças governamentais para matar a Dhlakama.

Hoje existem 19 partidos políticos, coligações de grupos de cidadãos em Moçambique. Destes, 17 estão inscritos para as eleições de 2013. A Renamo não se inscreveu. E ainda que queira voltar atrás e participar, não poderá, pois o prazo está encerrado.

Agora, o que se nota, independente do que cada uma dessas forças defenda e faça, é que há um aumento do domínio político por parte da Frelimo. Assim sendo, o multipartidarismo pode vir a ser apenas uma relação entre um partido hegemônico e alguns outros mais pequenos e de pouca força política.

Mas não é a primeira vez que a Renamo boicota as eleições. E se uma lição ela tirou dos seus anteriores boicotes, foi que não basta não participar das eleições, pois a Frelimo segue ganhando com os seus candidatos, e a Renamo fica mais enfraquecida. Por isso, para além do boicote, é necessário uma ação: impedir que as eleições se realizem. E isso só seria possível através de conflitos armados.

Nos parece que um conflito, nos moldes do ocorrido há 16 anos, não caberia na atual conjuntura. Mas, o fato é que a Renamo mantém hoje duas de suas antigas bases em operação: a de Gorongossa (onde Dhlakama se encontra neste momento) e a de Muchungue. Nestas regiões já ocorreram conflitos com mortes, que não são divulgados. E, desde o inicio deste ano, a Renamo vem desenhando exibições militares.

A Renamo, por seu caráter reacionário, não amplia o debate para a sociedade. Ela mantem a negociação dentro dos marcos do Acordo Geral de Paz, exigindo a paridade somente para ela. Outros atores que não participaram da construção do Acordo ficam excluídos.

Não há hoje, na sociedade moçambicana, nenhuma força política e popular que consiga representar os anseios de um setor popular cada vez mais numeroso de indignados, descontentes, que enxergam com um pouco mais de clareza no que se converteu a Frelimo depois de Samora Machel, que liderou a Guerra da Independência. E que gostariam de ter mudanças reais, na vida das pessoas e no regime político.

Neste sentido, a ironia e a piada do povo sempre traz uma boa dose de verdada. Em uma barraca na Baixa, perto da entrada do porto de Maputo, um jovem, ao beber umaFanta, me perguntava: “Você sabe o que Fanta significa?” Claro que eu disse que não, porque não tinha a mínima ideia do que ele estava perguntando. Ele rindo respondeu: “Frelimo Ainda Não Tem Adversário”.

* de Beira, em Moçambique

Fonte: Brasil de Fato

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