Recomeço de vida com Atahualpa.
Por Urda Alice Klueger.
(Trecho do livro “Meu cachorro Atahualpa”, publicado em 2010).
Escrevo isto em setembro de 2010, quando Atahualpa está prestes a completar três anos. Muitas coisas aconteceram e muita água passou debaixo da ponte neste tempo todo, e depois de tantas coisas, até me fica difícil saber o que escrever primeiro.
Talvez deva voltar a novembro de 2008, quando nossa cidade quase dismilinguiu de tanta chuva, enchente, enxurradas e desmoronamentos, numa grande tragédia de águas que mantêm, até hoje, muitas centenas de famílias em abrigos públicos e, conforme ouvi, alterou cerca de 25% da geografia da cidade, isto é, tamanhos foram os desmoronamentos por todos os lados que tiveram que ser feitas novas redes de eletricidade, telefonia, água, etc., em novas rotas, já que as antigas escorreram morros abaixo junto com tantas casas, tantas vidas! Para se ter uma idéia, houve 3.000 pontos de deslizamentos na cidade de Blumenau [1] .
No final daquele novembro trágico, nós que sobrevivêramos, tentávamos dar um novo rumo às nossas vidas. Nossos amigos, nossos parentes, quase todos quanto conhecíamos tinham sido atingidos de uma forma ou de outra pela grande Tragédia, e assim, quando era o tempo de reagir, com medo de voltar ao meu prédio que me amedrontava pelo risco e ao cenário de tão trágicas lembranças, e sem querer criar maiores problemas para algum dos tantos conhecidos que nos ofereciam abrigo, decidi que me mudaria, com Atahualpa, para um lugar sequinho e livre de riscos, que era o depósito de livros de uma editora, à Avenida Brasil 825, bairro Ponta Aguda, Blumenau.
E numa tarde de final de novembro nos mudamos para lá, Atahualpa e eu, vindos da casa da minha sobrinha Anna Paula e do David, onde também havia riscos, e onde ambos já haviam voltado a trabalhar. Eles haviam nos convidado muito para que lá permanecêssemos, mas era tempo de cada um voltar a tomar seu caminho.
Lembro do que descarreguei do carro: uma caixa de papelão com algumas coisas, três cabides com algumas roupas, um colchonete de camping, cobertor e travesseiro, e o CPU do meu computador. Para Atahualpa havia um edredon amarelinho bem fofo para ele dormir e duas ou três peças de louça para água e para a comida. Era só. Saímos para uma caminhada pelo belo bairro da Ponta Aguda, e quando voltamos, havia no céu limpo a fina linha de uma lua nova. Essa é a única referência que tenho de quando foi tal coisa: não sei o dia da semana, nem do mês – talvez um dia me anime a saber quando foi a lua nova de final de novembro de 2008, para saber em que dia estávamos, mas agora paro e me pergunto: para que? Não há por que se saber o dia – basta saber que era um dia em que havia a felicidade de se estar vivo e uma grande perplexidade por se descobrir tal coisa, por se descobrir que a vida iria continuar.
Então, do jeito que deu, começamos a nova vida naquele lugar bastante pequeno, mas onde havia um computador funcionando em tempo integral e um minúsculo banheiro onde se podia tomar banho num balde. Em compensação, não havia fogão, geladeira, ar condicionado ou janela – de dia, o ar e a luz entravam por uma porta aberta e por uma vitrine de vidro – à noite não havia tais coisas, e dependíamos de um ventilador para não sufocarmos de calor. Então, antes de irmos dormir, eu fazia minha caminha no chão, entre pilhas de caixas de livros, e do lado dela fazia uma caminha menor, com o edredon amarelinho dobrado, e como sempre eu dizia:
– Boa noite, meu amor! Dorme bem, sim?
E dormíamos ali, felizes por termos lugar seco e seguro, felizes por não termos de estar em abrigos públicos, como mais de 5.000 pessoas estavam, apesar do calor que o ventilador não dissipava.
No começo, penso que estávamos muito traumatizados para prestarmos atenção a muita coisa – com o tempo, no entanto, fui vendo como o meu cachorro tinha se transformado num guarda. Ao longo dos quase três meses em que ficamos ali aconteceram diversos crimes naquela rua, alguns bem violentos, sendo que uma vez, ao por do sol, antes de fecharmos a nossa porta, tivemos um assaltante dentro do nosso abrigo, que só não nos fez mal porque olhou para a cara de poucos amigos de Atahualpa e resolveu cair fora antes que as coisas piorassem – a polícia esperava por aquele rapaz e logo adiante ele foi preso, depois de diversas estripulias, como tentar se esconder dentro de um bar de arma na mão, etc. Era a primeira vez que eu podia ver que meu cachorrinho era mais do que o meu amor.
Na prática, na prática, aquele lugar ali era muito inseguro: de dia, sempre havia pessoas passando para cá e para lá, e enquanto eu trabalhava no computador, deixava as persianas bem abertas, para que se visse tudo o que ocorria onde estávamos, numa forma de garantir a nossa segurança, mas quando a noite chegava e tudo ficava muito vazio, apenas uma lâmina de vidro nos separava da insegurança lá de fora. Íamos dormir, então, protegidos pelo vidro e por persianas, e mesmo que estivesse ferrado no mais profundo sono, meu cachorrinho despertava ao menor barulhinho e punha-se a latir atroadoramente, com uma voz tão grossa e assustadora que eu nunca imaginara que ele viria a ter. Às vezes, no meio da noite, diante daqueles latidos, eu levantava e ia espiar por entre as lâminas da persiana: lá longe, do outro lado da rua, ia ou vinha uma pessoa a pé, ou passava por ali outro cachorrinho – fosse lá o que fosse, Atahualpa ouvia tudo, prestava atenção em tudo e me avisava de tudo.
Lembro que ele tosara o pêlo, pela primeira vez, bem na véspera da Tragédia das Águas, e que, portanto, não tinha mais a pelagem comprida de inverno, o que o deixava com menos calor, mas tinham-lhe ficado os suntuosos pêlos compridos do rabo, das orelhas e do rosto, e eu diria que o porte dele estava majestoso, mas muita gente achava que ele era um cachorro assustador. Nas minhas contas, não havia cachorro mais querido, bonito e meigo no mundo, mas nem todo o mundo achava a mesma coisa. Bons corações achavam o máximo aquele cachorrinho que andava sem coleira e sem guia nos nossos dois a três passeios diários, mas havia quem levasse um baita susto quando via Atahualpa, tão livre e tão majestoso!
E a nossa vida foi-se arrastando ali no Bairro Ponta Aguda por aquele verão afora, e muitas coisas iam acontecendo ali.
Fotos: Rodolfo Leite.