Por Elissandro Santana, para Desacato. info.
Nos 20 dias que antecederam o primeiro turno das eleições, reli obras como Sociedade da decepção, Historia de la estupidez humana, A era do vazio, Ensaio sobre a cegueira e Ensaio sobre a lucidez, na esperança de tentar entender, se é que é possível, parte do funcionamento da arquitetura mental do irmão brasileiro que se deixou levar pelo ódio e permitirá a entrada do fascismo e de tudo que ele comporta pela porta da frente a partir do voto, logo por esse meio que foi conquistado a duras penas.
Para esta semana, esbocei novas releituras, pois para a análise da conjuntura brasileira de fascismo, de sectarismos e de reacionarismos em alta faz-se imprescindível uma reflexão a partir da complexidade das multirreferencialidades.O fascismo surge pela força do ódio e para compreendê-lo, da forma como se instalou na mente e no coração de muitos, tive que cotejar o meu presente com a minha infância indo às memórias de minha vida na igreja, dos cultos aos domingos e, também, aos sábados. Foram dias regados a discursos de Cristo salva, ame a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. E ao viajar no e pelo túnel do tempo, por ser de família evangélica, tentei resgatar alguma mensagem que pudesse ter escutado nos cultos acerca da Bíblia como arma ou algo assim.
Meu exercício memorial me fez lembrar que ainda pequeno fui apresentado por religiosos a um Cristo da partilha e do respeito ao outro, que perdoava e tinha como máxima de vida o amor. Hoje, em uma mistura de maldade e de ignorância, muitos dos que se afirmavam seguidores do filho de Deus falam de arma em vez do Jesus que morreu no madeiro, crucificado, que se entregou sem relutar, que até o último fôlego jamais pensou em se armar para atacar aqueles que o apregoavam no madeiro.
O Cristo com o qual mantive uma parceria de aprendizagem na infância recebia os mais fracos e jamais seria contra bolsa família, perdoava as prostitutas e até aceitava um lava pés por uma mulher considerada impura à época. O Cristo que conheci expulsou os vendilhões e espertalhões do templo e era um socialista de mão cheia ao regar a igualdade e a justiça social.
Minhas lembranças acerca desse Cristo me levam, obrigatoriamente, a um cotejo entre os discursos daqueles que apoiam o fascismo ou reacionarismo de Bolsonaro com a palavra de amor daqueles que por mais que tenham críticas ao PT optaram pelo lado do amor, por saberem que a chegada de um despreparado e preconceituoso ao poder representa uma ameaça simbólico-concreta a todas as minorias sofridas deste país – a mulher, o povo negro, a população homoafetiva, as/os transgêneros, as pessoas com deficiência, as nações indígenas, os quilombolas, os sem-terra, os sem-teto, os sem-trabalho, os obesos, as empregadas domésticas, enfim, uma gama gigante de oprimidos por este sistema colonial em pleno século XXI.
Do cotejo acima, chego, necessariamente, à percepção de que entramos, de fato, em tempos insanos, de inversões semânticas e de semióticas da bala e do fogo como solução para tudo, pois o fanatismo ensandeceu a sociedade alienando-a e malogrando até mesmo parcela daqueles que se diziam e se dizem seguidores do Filho de Deus.
Presos pelo fundamentalismo, diversos religiosos se esqueceram de um dos maiores ensinamentos do Divino, o amar ao próximo. O púlpito converteu-se em palanque de ódio em vários lugares Brasil afora. Há anos o fundamentalismo religioso tem se alimentado e servido de alimento para o ódio; ódio este que nos impede da empatia para com o outro e que inviabiliza a capacidade de nos colocarmos no lugar de nossos semelhantes. Nesse caldeirão de fragilidades, os políticos, na ânsia pelo poder, valem-se desses pontos nevrálgicos com vistas à exploração da ignorância e dos medos.
Estamos também no tempo da tacanhice, em que a classe média, segundo o grande e astuto intelectual Jessé Souza, é intermediária entre a elite do dinheiro, de quem é uma espécie de capataz moderno, e as classes populares a quem explora para se autolegitimar para cima e para baixo. Nesses tempos medonhos de extremismos, em que a elite do dinheiro, conforme afirma Jessé Souza, soube muito bem aproveitar as necessidades de justificação e de autojustificação dos setores médios e comprou uma inteligência para formular uma teoria liberal moralista, feita com precisão de alfaiate para as necessidades do público que queria arregimentar e controlar, a tomada de partido nos mostra que é tempo de corações partidos, de que as pessoas pouco se importam com as minorias, com aqueles marginalizados pelo sistema. Não pensam no futuro das mulheres, dos indígenas, das crianças, dos adolescentes, dos negros e das negras, dos homoafetivos e de tantas outras categorias sociais oprimidas historicamente.
Entramos em tempos de corações partidos entre os desejos umbilicais sem pensar nos demais. Tempos em que o ódio funciona como o motor da vida e que se danem as minorias. Tempos em que muitos apoiam o ódio e o preconceito materializados em racismo, machismo, misoginia, homofobia e em tantas outras formas de opressão porque não se veem na condição de afetados caso um ser odioso chegue ao poder. Para os soldados a serviço do ódio, o que importa é que o PT não chegue ao poder. Os ingênuos, manipulados, seguem pensando que a corrupção nasceu no Partido dos Trabalhadores tão odiado e a elite colonial, de longe, assiste a tudo com espanto e alegria, com gozo, sem dúvida, em orgasmos. O projeto de maldade com apoio do Legislativo, do Drácula no Executivo, do Judiciário e da Mídia Tradicional se concretizou e os capatazes fizeram tudo sem que a elitezinha precisasse se mexer fisicamente; os alienados foram às ruas e gritaram Fora PT, Fora Dilma… E o PT, em meio a tudo, ingenuamente ou maliciosamente, não fez autocrítica e, em parte, de fato, é responsável por nossa situação de desespero atual.
Todo o quadro no qual estamos me causa medo e ojeriza, mas, no fundo, no fundo, não culpo os alienados. A minha repulsa é pelos alienadores, esses seres malditos vampirescos que historicamente nos negaram tudo e que com a chegada do PT ao poder se assombraram com a possibilidade do discurso de distribuição, digo discurso, pois, na prática, o PT não fez muita coisa, apesar de ter feito bem mais pelos pobres do que todos os outros partidos que chegaram ao poder após a democratização e redemocratização, se é que a democracia já existiu alguma vez nessa terra. Aliás, a elite nunca se beneficiou tanto quanto na época dos governos de Lula. O pobre, coitado, na era Lula, passou a ter acesso à universidade, ao trabalho e ao consumo, mas tudo em doses. Os ricos, esses sim, se enriqueceram ainda mais e é isso que ainda hoje me deixa atordoado ao tentar entender os motivos do ódio em relação ao Partido dos Trabalhadores.
Tudo isso me leva a compreender que é chegado, de fato, o tempo do egoísmo escancarado e da tomada de partido pela desesperança, conjuntura em que o amor parece sucumbir em meio ao desespero. No desespero, tentam criar um herói e satanizarem outro ou outros.
Diante do quadro, no Brasil que se vendia como acolhedor e fraterno, de repente, ou não tão de repente assim, o ódio tornou-se o grande e terrível personagem central, aquele que mudará os rumos de nossa história que sempre foi escrita pelo opressor, mas que, nos últimos anos parecia redesenhar-se e que, por isso mesmo, incomodou a classe média que, em seu egoísmo, diz não aos miseráveis e se abre toda para as elites do atraso, esperançosa de que em algum momento chegará ao topo da pirâmide. Essa sandice a impede de compreender, por exemplo, que capitalista é aquele que é dono do capital e ela se incomoda até mesmo quando alguém a mostra como dona apenas da força do trabalho, quer ganhe um salário mínimo ou bem mais que isso.
Os pequenos rabiscos na história em decorrência de políticas de inclusão e de distribuição de renda, ainda que ínfimas, abalaram o orgulho da classe média, aquela que sempre odiou bolsa família por conta do público ao qual se destinava e se destina, mas que nunca se incomodou, ou, pelo menos, não como deveria, com o auxílio moradia aos juízes, bolsa das madames dos senhores do Legislativo, do Executivo e do Judiciário.
Quase à guisa de conclusão, vejo que são tempos bizarros esses em que ateus tentam mostrar Cristo àqueles que se dizem seus seguidores, em que muitos não religiosos evidenciam que o caminho do amor não é o da arma, em que diversas igrejas, em vários pontos do país, se tornaram palcos de simbologias do ódio a partir da semiótica gestual da metralhadora, em que ativistas a serviço do meio ambiente e, consequentemente, em favor da vida, são rotulados de extremistas, em que indígenas são massacrados, em que candidatos declaradamente racistas, machistas, misóginos e homofóbicos recebem apoio em massa dos seres que lotam os templos aos domingos para falarem de amor ou os lares que arrotarem fé nos almoços de domingo nos milhões de famílias tradicionais pelas territorialidades do vazio e da decepção, em que homossexuais são atacados por uma questão de identidade ou, como muitos rotulam, de orientação sexual, em que pessoas morrem nas ruas, de fome ou de outras mazelas, e a galera cheia do discurso de “Deus” transfigurado em tantas formas e faces passa e já não sente nada.
Tempos medonhos esses em que Chomsky – o pai da teoria gerativa no campo da Linguística Moderna e um dos maiores pensadores e críticos da política na contemporaneidade, Castells – importante intelectual que discute há décadas a era da informação a partir da economia, da sociedade e da cultura e, nesse bojo, o poder da identidade, Chauí – renomada socióloga brasileira respeitada internacionalmente, Boff – um dos intelectuais da razão sensível, Boaventura Santos – um dos mais ativos pesquisadores internacionais da Epistemologia do Sul que nos ajuda a entender a nossa mentalidade colonial e tantos outros seres geniais da humanidade, indivíduos à frente do tempo, falam sobre as artimanhas da mídia tradicional e acerca das tramoias das elites coloniais do atraso, mas os brasileiros não os escutam e muito menos os respeitam. Pior de tudo, são preteridos por aqueles que os renegam, mas dão ouvidos aos Alexandres Frotas – reis das pornografias e defensor da família, do cidadão de bem e dos bons costumes, aos Malafaias – líderes religiosos que se esqueceram do Cristo bíblico da partilha, do amor e do perdão, aos Felicianos – fiéis a serviço do controle dos prazeres e sabores alheios e a tantos outros seres que pararam no tempo, humanos cristalizados do ponto de vista das ideias e até mesmo da sintaxe da existência.
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Elissandro Santana é professor da Faculdade Nossa Senhora de Lourdes e do Evolução Centro Educacional, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, membro do Conselho Editorial da Revista Letrando, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.