Por Gabriela Moncau, Brasil de Fato.
A disseminação da prática de fraturar os dedos de pessoas presas constatada em ao menos cinco estados brasileiros, denunciada pela Folha de S. Paulo, é a ponta do iceberg de uma doutrina que integra o treinamento feito por um braço da Força Nacional às Polícias Penais dos estados.
Criada para agir pontualmente em casos de “crise”, a ação da Força Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) – ainda mais conhecida assim do que com sua nova nomenclatura, Força de Cooperação Penitenciária (FOCOPEN) – é muito mais duradoura. Não só porque sua permanência nos estados pode ser prorrogada indefinidamente, mas porque sua atuação inclui o treino das Polícias Penais, que seguem atuando cotidianamente nos presídios com o modus operandi que o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) chama de “doutrina FTIP”.
“Que é essa doutrina baseada em tortura física e psicológica, com o ‘procedimento’ e a quebra dos dedos”, descreve Bárbara Coloniese, perita do MNPCT.
Só neste ano, o ministro da Justiça Flávio Dino autorizou o envio da FOCOPEN para o Rio Grande do Norte (depois dos ataques a prédios e veículos que se espalharam pelas ruas potiguares em março) e para Pernambuco. Um dos objetivos da força-tarefa, diz a portaria que segue em vigor no estado pernambucano, é “promover instrução, adestramento e nivelamento de procedimentos para policiais penais do Estado”.
Desde a sua criação por Alexandre de Moraes em 2017, quando ele ocupava o cargo de ministro da Justiça do governo Temer, a força federal já passou também pelo Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Roraima, Rondônia, Pará, Ceará e Amazonas.
O “procedimento” a que Coloniese se refere faz parte de uma das características da doutrina. A palavra é gritada pelos agentes já de longe. Neste momento, as pessoas presas têm que sentar correndo no chão de costas para a porta – muitas vezes nuas ou só com roupas íntimas – encaixadas uma nas outras e com os dedos entrelaçados atrás da cabeça. É aí que, muitas vezes, a tortura do quebra-dedos é aplicada, com golpes que visam o ossinho metacarpo e que, por consequência, também atingem a cabeça.
“Se as pessoas não se colocam no procedimento, são muito machucadas. Por exemplo, no Rio Grande do Norte, que tinha um senhor surdo, já de idade avançada, numa cela. E quando gritaram procedimento o senhor por óbvio não escutou, os colegas parece que não avisaram e ele foi alvejado por balas de borracha e spray de pimenta”, relata a perita.
Na inspeção de que participou na Penitenciária Estadual de Alcaçuz (RN) em março deste ano, Bárbara relata ter encontrado “várias pessoas com a pele extremamente queimada por terem ficado muitas horas em ‘procedimento’ sob o sol”.
Foi neste presídio, palco de um massacre que vitimou 27 pessoas em 2017, que a FTIP estreou sua atuação, um dia depois de ser criada. Até então, governos estaduais podiam pedir excepcionalmente o envio da Força Nacional, que atuava só na parte externa das cadeias. Em 2019, Sergio Moro, então ministro de Justiça do governo Bolsonaro, amplia as atribuições da FTIP, incluindo serviços de inteligência e treinamento das Polícias Penais.
Força tarefa sai, sistema de tortura fica
Luciano*, aos 35 anos, “já viu, viveu, mais que muito homem de hoje”, como cantam os Racionais. Estava encarcerado no complexo prisional de Manaus (AM) quando, em maio de 2019, sobreviveu ao massacre que tirou a vida de 57 pessoas. Viveu a chegada da FTIP. Sentiu na pele o legado incorporado da força-tarefa federal pelo Grupo de Intervenção Penitenciária (GIP) do estado amazonense.
Durante o massacre prisional de 2019 – tragédia já anunciada diante de um racha da facção Família do Norte e sobre a qual o Estado lavou as mãos, deixando as pessoas sob a sua custódia a mercê de uma carnificina – um motim começou no Centro de Detenção Provisória de Manaus (CDPM 1), onde Luciano estava. “Dos que sobreviveram, ninguém sabia quem ia morrer, quem ia viver, então aconteceu uma rebelião para tentar salvar cada um a sua vida. Que ninguém sabia mais quem era quem, entendeu?”, conta.
A reação estatal deixou sua cela cheia de sangue. “Já entraram metendo bala. De verdade mesmo, não foi de chumbinho, de borracha não. Foi muita bala. Metralhadora, pistola .40”, diz Luciano. Ele se jogou no chão do banheiro. Três companheiros foram alvejados.
Para manejar a crise, a FTIP foi aos presídios amazonenses. “A federal chega lá, o primeiro dia é bomba, batendo. Por qualquer desavença, no outro dia a gente ficava sem comer. Muita opressão”, resume Luciano. Um dia, os agentes disseram que era para os presos escolherem dois “para apanhar”. Todo mundo se calou. Ameaçados, dois deram um passo à frente. “Agora afasta esses dois que ‘foram homem'”, Luciano imita a voz do agente: “o resto, todo mundo vai apanhar”.
Meire* é familiar de uma pessoa que estava presa durante o massacre em Manaus. No desespero do lado de fora dos muros, começou desde aquele ano a coletar denúncias de violações. “Quando a FTIP entrava na galeria, colocavam uma música de terror nos alto-falantes”, descreve. “A gente também pegou o relato de um interno que foi obrigado por eles a se depilar com o barbeador de uma pessoa que era soropositivo. Hoje ele também é”, acusa Meire.
A FTIP ficou no Amazonas por três meses. Quando se retirou, o então secretário de Administração Penitenciária, Vinícius Almeida, comentou a parceria e declarou: “crescemos o efetivo do GIP, fizemos adaptações e mudamos a forma de atuação do grupo”. Para Meire, foi a forma de dar continuidade às torturas.
“Hoje são os agentes do GIP que fecham e abrem as celas. São extremamente agressivos”, diz. Segundo contou, ela recebeu a denúncia de que, no Natal, os presos foram obrigados a cantar “jingle bell”. Quem errasse a música, apanhava com chuteira society na cara.
“Depois que a intervenção federal foi embora, deixou os agentes treinados sobre como iam agir com a gente. O GIP, minha amiga… Se você pedisse para ir na enfermaria, apanhava”, narra Luciano. “Piorou radicalmente, 100% mesmo. Depois que a FTIP foi embora, ficamos um ano sem beber água gelada. Sem um bico de luz na cela. Sem ventilador. A gente era 32 internos numa cela para oito”, lembra Luciano, que depois de três anos encarcerado, vive a liberdade.
“Eles saíram, mas como eles agiram na época é como o GIP age até hoje”, diz Meire a respeito da intervenção penitenciária federal. “‘A opressão é que faz o controle da unidade penitenciária’, eles têm essa visão. Na verdade, é um sistema de tortura gigante”, sintetiza.
“Um momento assombroso”
O idealizador da “doutrina FTIP” é o policial civil Luís Mauro Albuquerque Araújo. O filho de Olga* completava um ano preso em Fortaleza quando Albuquerque saiu da Secretaria de Justiça e Cidadania do governo do Rio Grande do Norte, de Fátima Bezerra (PT), para migrar ao Ceará. Aceitando o convite do então governador Camilo Santana (PT), ele assumiu a Secretaria de Administração Penitenciária em janeiro de 2019. E aí segue, nomeado novamente para o cargo pelo governo de Elmano de Freitas (PT), iniciado em 2023.
“A gente já sofria violações de direitos humanos”, conta Olga. Mas depois que Albuquerque assumiu a pasta no Ceará, avalia, “piorou muito”. Olga diz que desde que o filho foi encarcerado, ela deixou de ser “só mãe”: se tornou ativista. Reticente em dar entrevista e reforçando a importância do anonimato, ela explica que as denúncias rendem retaliações e ameaças a ela, a outras familiares e aos filhos.
Assim que chegou ao Ceará, Mauro Albuquerque cortou visitas íntimas e declarou que não separaria presos de facções rivais. Uma onda de ataques a prédios se espalhou do lado de fora dos muros e a crise na segurança pública cearense estampou as manchetes midiáticas. A FTIP foi acionada.
A atuação da Força federal nos presídios cearenses entre janeiro e maio de 2019 é descrita por Olga como “um momento assombroso”: “Eles têm um modus operandi diferenciado, que é o do apavorar pelo método mesmo de machucar o corpo”.
“Dentro de celas com capacidade para no máximo 15, 20 pessoas, a gestão colocava 150 apenados nus”, relata Olga. “E então, as torturas mais severas. Quebrar os dedos, machucar os joelhos, as surras que começaram a levar com garrafa de água gelada, toalhas molhadas geladas. Começamos a denunciar. Essa denúncia fez com que o MNPCT viesse ao Ceará. Produziram um imenso relatório. Mas a coisa continua”, diz, ao ressaltar: “É o que chamamos de terrorismo de Estado”.
Olga assistia TV quando viu, num tom publicitário, o treinamento da FTIP aos policiais penais cearenses, com a presença do secretário Albuquerque. “Eles falando como é que ‘abatem’ as pessoas. Para nós, é um termo muito doído de se ouvir, porque abater é matar a pessoa né? Mostravam como era o mata-leão”, relata.
“A que custo?”, questiona Olga. “Nós, familiares, temos bandeiras de memória onde a gente carrega o rosto de pessoas que morreram inclusive por consequências e sequelas deste modus operandi que permanece e se espalha”, frisa.
O Brasil de Fato pediu entrevista com Mauro Albuquerque. A Secretaria de Administração Penitenciária do Ceará não respondeu a essa solicitação. Enviou uma nota em que informa repudiar “qualquer ato que atente contra a dignidade humana” e que “todos os casos suspeitos recebem as devidas apurações internas como também são encaminhadas a Controladoria Geral de Disciplina”.
A Secretaria Nacional de Políticas Penais, vinculada ao Ministério da Justiça do governo federal, informou que a FOCOPEN é um programa de ações conjuntas entre União e Estados e que “não se admite uso da força de modo aleatório, tampouco a utilização de equipamentos menos letais sem o registro adequado”.
O órgão disse, ainda, que “a Força Tarefa de Intervenção Penitenciária vem conferindo especial atenção a capacitações, treinamentos e nivelamento tático operacional dos servidores que participam das operações, a fim de que tenham o preparo que se exige para o desenvolvimento dos trabalhos de restabelecimento da ordem, prevenção de crises, manutenção da segurança e dos protocolos de atuação”.
“Essas forças criam as próprias crises”
Para Bárbara Coloniese, do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), “essa prática sistemática da violência, além de ser completamente ilegal e criminosa – porque tortura é crime – só aumenta o tensionamento dos presídios. Esse alto índice de violência reflete em resultados que jamais serão bons”.
Camila Antero, coordenadora geral do MNPCT, destaca que “diversas técnicas que conduzem à tortura e muitas vezes à morte não vem de um protocolo, mas de uma cultura”. Citando a “extrema militarização” de forças policiais “que deveriam ter como função apenas a custódia”, Antero diz que o que se vive é “tortura estrutural”.
“A atuação cotidiana dessas forças táticas”, aponta Camila, se referindo à FOCOPEN e às variadas Polícias Penais dos estados, “tem recrudescido o ambiente da privação de liberdade e gerado tortura, revolta, morte, diversas violações à dignidade”. Criadas para supostamente atuar em momentos de crise, avalia Antero, “essas forças têm criado as próprias crises”.
* Nomes alterados para a segurança e preservação das fontes.
Edição: Nicolau Soares