Por Mario Osava.*
Tudo aponta a bacia do Tapajós como o centro da batalha decisiva entre o aproveitamento hidrelétrico e a preservação da Amazônia. Ali estão em jogo um potencial equivalente a mais de duas Itaipus, e uma parte vital do bioma amazônico.
Das 42 usinas possíveis, com geração de cerca de 30 mil megawatts (MW), oito das maiores estão no planejamento do governo até 2021. O rio Tapajós e seus afluentes conformam uma região pouco ocupada, de um milhão de habitantes em 50 milhões de hectares, ao contrário de onde hoje se constroem hidrelétricas como a de Belo Monte, no rio Xingu.
Por isso o governo promete construí-las ali como se extrai petróleo em alto mar: sem acesso terrestre, transportando pessoal, equipamentos e materiais por via aérea e reflorestando depois o terreno dos canteiros. Mas tais “usinas plataformas” não demovem o povo indígena Munduruku de brigar contra barragens na Amazônia.
Além disso, há muito ouro e, logo, muitos garimpeiros na bacia do Tapajós, cuja hidrovia, se implantada, seria a melhor rota de escoamento agrícola de Mato Grosso, Estado que mais produz soja no Brasil.
Preservar um grande bloco central e outras áreas da bacia, deixando livre o Jamanxim, um dos grandes afluentes do Tapajós, é condição para conservar ecossistemas e espécies indispensáveis, segundo o WWF-Brasil, que desenvolveu uma metodologia para definir áreas ambientais prioritárias.
Essa ferramenta, ou Sistema de Apoio à Decisão (SAD), aplicada à bacia do Tapajós, pode servir de base para negociações que superem os confrontos e conduzam às melhores decisões sobre as hidrelétricas. É o que explica Pedro Bara Neto, líder de Estratégia de Infraestrutura no programa Amazônia Viva do Fundo Mundial para a Natureza (WWF), nesta entrevista.
IPS: Sua organização propõe a conservação de 30% de cada um dos 423 ecossistemas terrestres e 299 aquáticos identificados por estudos na Amazônia, como base para negociar a expansão das hidrelétricas sem perdas irrecuperáveis para o bioma. Como se aplica isso na bacia do Tapajós?
PEDRO BARA: Na Amazônia em geral, dado o pouco conhecimento de toda sua biodiversidade, fazemos uma aproximação. No caso do Tapajós pudemos detalhar uma “arca de Noé”, com 93 ecossistemas terrestres e 28 aquáticos, 46 espécies de aves, 17 de mamíferos e 37 de peixes, além de 20 habitats aquáticos, definidos por especialistas em Amazônia reconhecidos mundialmente. Também se analisou o uso do solo, o avanço da agropecuária, do garimpo, concluindo-se que 22% do território já está degradado. Mas as áreas protegidas cobrem também 22% e Terras Indígenas 20%. Chegou-se aos detalhes de espécies, incluindo as endêmicas, habitats e áreas insubstituíveis. Na avaliação entram o tamanho da represa, as unidades de conservação integral ou de uso sustentável, Terras Indígenas, as áreas insubstituíveis. Como há reservas por demarcar, o cenário vai mudando.
IPS: E a que conclusões se chegou com o emprego da ferramenta e os dados coletados?
PB: O que pretendemos é conservar no mínimo esse grande bloco central (mostra no mapa uma grande área em volta da confluência dos rios Juruena e Teles Pires formando o Tapajós, onde se preveem pelo menos quatro hidrelétricas). Advogamos grandes áreas de conservação. As outras áreas selecionadas estão marcadas por essas manchas verdes. Algumas usinas são inaceitáveis, como Chacorão (no alto Tapajós, capacidade de 3.336 MW). Fica dentro da terra Munduruku.
IPS: Mas o governo afirma que não inundará nenhuma Terra Indígena.
PB: É porque não coloca o projeto na mesa, não o incluiu no Plano Decenal de Expansão de Energia, teme reações. Mas os Mundurukus estão cientes, por isso estão reagindo.
IPS: Que outras usinas são rejeitadas pelos critérios do modelo do WWF?
PB: A usina de Escondido também, inclusive porque alagará muito, cerca de mil quilômetros quadrados, para gerar 1.248 MW. É o dobro da área a ser inundada por Belo Monte que terá capacidade quase dez vezes maior. De todos os projetos, Escondido é o pior em termos de relação entre lago e geração. Mas se há uma que não podemos aceitar de jeito nenhum é Chacorão. E entre as duas estão Salto Augusto (1.461 MW) e São Simão (3.509 MW), também problemáticas, por localizarem-se no Parque Nacional de Juruena. Todas as quatro ficam dentro do grande bloco central a conservar.
IPS: Mas o governo aceitaria negociar São Luiz do Tapajós (6.133 MW), que é estratégica?
PB: Não, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e Energia, já deixou claro que, embora considere ótima nossa ferramenta, não negocia São Luiz nem Jatobá (2.338 MW), mesmo se as nossas análises as rejeitassem. Com estas, mais algumas de menor impacto, pode-se alcançar metade do potencial da bacia sem comprometer a diversidade biológica e cultural do bloco central. Há espaço para negociar.
IPS: O presidente da EPE, Mauricio Tolmasquim, já declarou adesão ao uso da ferramenta para “preservar o máximo possível” no programa hidrelétrico. Há sinais de que o governo pode mesmo negociar projetos no Tapajós?
PB: Creio que faltam elementos importantes para a EPE preservar o máximo possível sob a perspectiva da bacia do Tapajós como um todo. Principalmente porque nem todas as licenças ambientais estão na alçada federal o que, sem uma articulação entre Estados e a União, acaba gerando decisões conflitantes. Veja, por exemplo, o caso da UHE Paiguá, que recentemente obteve licença preliminar outorgada pelo Estado do Mato Grosso. Esta UHE localiza-se no rio Sangue, que se acredita desempenha um papel importante para as espécies migratórias (em geral as de maior valor comercial) que buscam as cabeceiras dos formadores do Juruena. Para entender melhor as rotas migratórias nesta bacia, a EPE contratou, no final de 2012, um amplo estudo a este respeito. Se daqui a dois anos, quando o estudo estiver concluído, a relevância do rio Sangue como rota migratória se confirmar, tal informação pode não ter nenhuma valia mais porque a rota poderá estar sendo fechada pela Paiguá. Ando menos otimista com a possibilidade do governo negociar um programa hidrelétrico no Tapajós. Creio que ainda prefere uma batalha de cada vez, mesmo que seja para acumular desgastes. Mas uma batalha de cada vez, sem saber até onde se vai, não interessa à vida daqueles que dependem de rios livres e da conservação de áreas críticas como o bloco central da bacia do Tapajós. Por outro lado, temos observado que uma discussão mais abrangente e estratégica desperta cada vez mais o interesse de empresas e financiadores.
IPS: Mas os índios, especialmente os Munduruku, querem vetar barragens. Acha possível convencê-los a negociar acordos?
PB: Estamos em processo de aproximação com os líderes indígenas. São muitas aldeias, algumas muito distantes uma das outras, há um enorme desafio colocado ao povo Munduruku, de como se organizar diante de um grande projeto que afeta seu território e que move grandes interesses. Eles precisam se informar, comunicar, criar espaços participativos, deliberar. Creio que no caso de Chacorão um acordo será difícil porque muitas aldeias serão afetadas. Nos demais, creio que dependerá de outras etnias e obviamente da boa vontade dos interlocutores do governo em aceitar um diálogo que começa pela aplicação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre consentimento prévio e informado das comunidades, mas que vai muito além da questão do território e das hidrelétricas.
IPS: Planos de desenvolvimento consistentes para o território atingido não ajudariam?
PB: Mas é preciso que se realizem bem antes das obras, não como em Belo Monte, que já tem 30% das obras e o plano de desenvolvimento mal começou, com ações em saúde, educação, saneamento e segurança que andam muito mais lentas que a construção da usina.
*IPS.
Fonte: Envolverde