
Redação
A história que envolve a Major Lumen Freitas é conhecida nacionalmente. Lumen tomou notoriedade pela agressão à qual foi submetida pela instituição Polícia Militar de Santa Catarina. Mulher trans sofre também a violência transfóbica do estado catarinense através do seu governador que a expôs, em concordância com o Conselho de “Ética” da PM, a obriga a uma aposentadoria compulsória sem causa nenhuma que dê mérito a essa decisão.
No entanto esse assunto será tratado no programa Alexandria, na edição desta quarta-feira, às 20 h, no Canal Youtube e redes do Portal Desacato.
Agora, esta entrevista, está direcionada a conhecer a mulher Lumen, militante, mãe, universitária. As respostas que lerão a seguir tornam claro o ridículo, manifestamente injusto, misógino, transfóbico e brutal da decisão acima exposta.
Aqui o diálogo da Major Lumen Freitas com o jornalista Raul Fitipaldi:
A escolha
Raul Fitipaldi – Esta noite você estará no programa Alexandria do Portal Desacato em função do ato transfóbico do governador de Santa Catarina contra sua pessoa. Mas agora, queremos falar com você mulher, mãe, bacharela, antifascista e trabalhadora. De tal modo que o que nos interessa é a jovem civil que um dia escolheu a carreira militar. Por que fez essa escolha?
Major Lumen Freitas – Meu pai é policial militar, e sempre moramos perto do quartel, onde passava grande parte do tempo. Em 1989, ele foi transferido para comandar a companhia de Araranguá, e, como a casa do comandante ficava dentro do quartel, minha proximidade com o militarismo — especialmente com a PM — só aumentou.
Em 1992, ingressei no Colégio Militar, concluí o ensino fundamental e cursei todo o médio lá. Essa experiência reforçou minha compreensão de disciplina e hierarquia, confirmando que esse era o caminho que eu queria seguir.

Ao terminar o ensino médio, prestei concurso para piloto da Força Aérea. Fui aprovada e iniciei o curso em Pirassununga em 1996, mas, por ser muito nova e por falta de experiência, não me adaptei. Solicitei desligamento no fim do ano e voltei a Santa Catarina.
Em 1997, a escolha natural foi o curso de Oficiais da PM. Fui aprovada novamente e ingressei em 1998, onde permaneci até a decisão do governador.
Desde criança, me vejo como militar — foi a carreira que escolhi e tenho orgulho de seguir. A disciplina, o senso de dever e a hierarquia moldaram quem sou hoje, e não consigo me imaginar seguindo outro caminho.
A transição
R.F. Mais tarde, Lumen fez o processo de transição de gênero. Que significou para você e para sua família?
M.L.F. Desde que me lembro, carregava a sensação de que havia algo errado comigo. Inventava histórias para justificar meu sentimento de inadequação, mas, na adolescência, faltavam referências e palavras para nomear o que eu era. Acabei aceitando, resignada, que jamais mudaria.
O conflito interno, anos se acumulando, adoeceu minha mente e abalou minha família. Foram tempos turbulentos até eu equilibrar meu humor e recuperar minha sanidade. Foi nesse processo, porém, que finalmente me enxerguei com clareza e entendi quem eu realmente era.

Minha esposa foi a primeira a saber e minha aliada incondicional. Não apenas me apoiou emocionalmente: participou ativamente de cada passo — desde minha primeira aparição pública como Lumen até assumir situações que eu ainda não conseguia enfrentar sozinha. Para ela, creio, foi o fim de um sofrimento que, no fundo, também era seu.
Meus filhos, tenho certeza, hoje se orgulham. Têm uma mãe que sabe quem é e luta pelo seu lugar no mundo. Agora, consigo dedicar-lhes atenção plena e estar verdadeiramente presente. As amarras, enfim, se romperam.
A sociedade e a Lumen
R.F. Fora do seu emprego, como a sociedade mais próxima reagiu a essa mudança? Limitou as relações sociais que você tinha, houve preconceito, exclusão, outras estigmatizações?
M.L.F. Foi uma grata surpresa — mas, no fundo, esperada. Meu círculo de amigos sempre foi progressista, diverso e aberto, então a transição não gerou grandes transtornos.
Também não enfrentei preconceito ou exclusão nos ambientes que frequentava. Em alguns grupos, precisei explicar melhor questões como identidade de gênero e o que significa ser trans, mas mesmo assim, tudo fluiu com naturalidade.

Moro em Santo Amaro da Imperatriz desde antes da transição. Minha cidade natal, pela qual tenho um carinho imenso, é majoritariamente católica e conservadora — mas, contradizendo estereótipos, é onde me sinto segura. Como toda cidade pequena, todos se conhecem, e logo se acostumaram com minha presença. Nunca tive problemas com vizinhos ou desconhecidos: não houve olhares constrangedores, cochichos ou risos dissimulados. Aqui, sou apenas mais uma.
Brincando, costumo chamar minha transição de “O Caminho Dourado” — um processo tranquilo, sem conflitos. Tudo correu bem, inclusive minhas relações com amigos e a comunidade. E isso, talvez, seja o maior privilégio de todos.
Santa e Conservadora Catarina
R.F. Em termos gerais, você avalia as instituições e a sociedade catarinense como muito conservadoras?
M.L.F. Não é mais questão de opinião, mas fato consolidado: Santa Catarina é profundamente conservadora. A prova está no empenho da Assembleia Legislativa e das Câmaras Municipais em preservar o status quo e reverter conquistas sociais já estabelecidas. O estado vive um paradoxo gritante: enquanto se orgulha de atrair indústrias e expandir infraestrutura, mantém uma postura moral arcaica, desalinhada com a evolução humanitária. Progresso econômico não basta quando as mentalidades permanecem estagnadas no século passado.

Dói-me ouvir alguém se declarar “conservador com orgulho”. A história não absolve esse posicionamento. No Brasil Imperial (século XIX), conservadores foram os últimos a defender a escravidão, alegando que a abolição “destruiria a economia”. Nos anos 1960, resistiram aos direitos civis nos EUA e, aqui, apoiaram a ditadura militar em nome da “ordem”. Nos anos 2000, opuseram-se ao casamento igualitário e, hoje, combatem identidades trans e políticas ambientais urgentes. Em cada era, foram os progressistas que empurraram a sociedade para frente — mesmo quando chamados de “utópicos” ou “degenerados” pelos mesmos que, décadas depois, fingem que nunca estiveram do lado errado da história.
Amo Santa Catarina — suas praias, serras e o acolhimento de seu povo. Mas envergonho-me de sua política atual, que insiste em repetir erros que outras gerações já pagaram caro. Quando no futuro perguntarem “como permitiram isso?”, terei de confessar: não sei. Talvez tenhamos normalizado o intolerável.
‘Procedimento Padrão” e os vulneráveis
R.F. Por que se autodefine como antifascista e ativista pelos Direitos Humanos?
M.L.F. Como policial militar, vi de perto como a violência institucional atinge os mais vulneráveis — negros, pobres, LGBTQIAP+, moradores de periferia. Durante anos, testemunhei abusos de autoridade que nenhum protocolo justifica, e essa impotência me marcou profundamente. Foi essa experiência que me levou ao ativismo: entender que meu dever vai muito além da farda. Hoje participo ativamente de coletivos contra a violência policial, integro grupos de defesa dos direitos das mulheres e pessoas trans, e atuo em projetos de educação popular e alfabetização de adultos. Essa é minha forma de reparação, de devolver à sociedade o que lhe foi tirado sistematicamente.

Não acredito em mudanças grandiosas e imediatas, mas sei que cada ação conta. Denuncio as violências que muitos chamam de “procedimento padrão”, levo informação onde o Estado só leva repressão, e uso minha posição para proteger quem deveria ser protegido. Ser antifascista, para mim, é isso: recusar o silêncio cúmplice, confrontar as estruturas opressoras mesmo de dentro do sistema, e garantir que minha existência como militar e ativista seja uma contradição viva ao autoritarismo. A mudança real começa quando assumimos responsabilidade sobre nossa parte no problema — e eu estou fazendo a minha. Não com discursos, mas com ações concretas no dia a dia, porque ninguém será livre enquanto alguns ainda estiverem sob as botas da opressão.
Lumen Lohn Freitas é travesti e mãe. Bacharela em Direito, Especialista em Administração. Acadêmica de Ciências Sociais. Educadora Popular, Antifascista e Ativista pelos Direitos Humanos. Major da Polícia Militar.
Raul Fitipaldi, é jornalista e apresentador, cofundador do Portal Desacato e da Cooperativa Comunicacional Sul – @raulfitipaldi