Por Paolo Colosso, no BrCidades.
A crise de saúde pública tem nos colocado a todas e todos num estado de alerta constante. Como a pandemia é um mal invisível e difuso, que aplaca a sociedade como um todo – mas obviamente muito mais as camadas vulneráveis — a orientação coletiva das ações se sobrepõe necessariamente às iniciativas individuais. Por conta também desse estado de emergência, atitudes antes tidas como normais se mostram inaceitáveis.
Esta semana um CEO de uma rede de shoppings em Santa Catarina enviou uma proposta ao governador do estado na qual expunha que, se pudesse abrir seus shoppings, doaria 12 respiradores e faria atendimentos nos estacionamentos de seu estabelecimento.
No documento o empresário ainda se pronuncia como se sua ação tivesse um espírito público. O que faz na realidade é pressionar para que o governador flexibilize a política de isolamento defendida pela OMS, pelo ministro da Saúde e consensuada em outros estados da federação.
O CEO fala como se soubesse o que é melhor como política de saúde pública, mas não tem condição de avaliar se o estrago gerado pelas aglomerações será maior do que os benefícios. Ele assume o risco de aumentar exponencialmente o contágio e produzir mortes.
Se essa norma valesse pra todos os shoppings, provavelmente teríamos um caos sanitário, mas o CEO quer algo exclusivo e diferenciado pra ele, que pode pagar. Em termos mais concretos, o nome de sua prática é assédio e chantagem política. Mas o objetivo desse texto não é pessoalizar as críticas, mas sim tornar visível quais atores sociais podem ou não contribuir para superarmos essa crise que é a maior do século XXI.
Vivemos uma catástrofe sem precedentes, um trauma coletivo. Ninguém tem culpa tampouco escolheu estar nessas condições. Trata-se de uma situação que nos coloca em instabilidade, insegurança. Seria de se esperar que as figuras sociais que no cotidiano se consideram lideranças assumissem uma postura de garantir estabilidade mínima às pessoas mais vulneráveis de seu entorno profissional e social. Mas nem sempre isso tem acontecido.
Diversos empresários têm vindo a público dizer que estão sendo obrigados a demitir. Pronunciam-se como se vivessem de salário, como se vendessem almoço pra comprar janta. Esperam gerar sensibilização de autoridades políticas – talvez por estarem acostumados a ser salvos pelo Estado nacional – e, com isso, apequenam-se publicamente. Mostram, na realidade, que tem muito pouca disposição para construir saídas pactuadas.
Poucos ou talvez nenhum desses tenha dito que, antes de demitir funcionários, reduziram lucro dos acionistas ou os salários dos altos cargos. Até onde se sabe, não há impedimento nenhum que a pessoa física dos proprietários passe bens e capitais para a pessoa jurídica das empresas, entretanto não há muitos registros de que essas lideranças, diante de um mal excepcional, estejam abrindo mão de seus caprichos pessoais de pouco uso. As lanchas que custam R$ 50 mil/mês na marina pagariam muitos funcionários que estão indo para casa. Não se desfazem de uma pequena parte da coleção de carros e motocicletas. Tampouco avaliam que, com as fronteiras fechadas, vai sobrar o dinheiro que não gastarão com roupas de gosto duvidoso em Miami e Dubai.
A realidade é que, quando tudo vai bem, tais figuras pedem a palavra pra falar em coletividade. Chamam seus funcionários de colaboradores e a empresa de família. Nos primeiros sinais de instabilidade, apressam-se por transferir os ônus do mal coletivo nas pessoas que julgam descartáveis. Tais figuras se comportam como heroicas para contar suas histórias passadas e no momento em que o retorno de capital está assegurado, mas não exatamente desse modo no presente.
E é fato que tais figuras se sentem à vontade para se pronunciar e se posicionar de tal modo porque no mais alto cargo do país há alguém com comportamentos muito semelhantes. Estão avalizados por um “líder” que, no momento adverso, exime-se de sua responsabilidade como liderança, repete uma retórica que o mantém numa zona de conforto. Não por acaso, há similaridade nos recursos discursivos e também proximidade política entre estes atores. Isto porque reforçam-se mutuamente num ciclo de autoconvencimento e apequenamento.
Os momentos de crise são dolorosos, mas deles retiramos lições importantes. Primeiro, esses empresários sabem fazer dinheiro e sabem coisas específicas: administrar restaurantes e lojas, bem como fazer marketing. Mas não tem condição de analisar a realidade social, de dizer o rumo de um país. Nem mesmo tem condições de dizer se reabrir o comércio reativará a economia no médio prazo, nos dias depois de amanhã, porque estão presos às perdas imediatas. É preciso que a sociedade deixe de idealizar essas figuras que se autodeclaram lideranças sociais e pagam publicidade para emplacar como tal. Reconstruir o país exigirá mais de nós.
Há inúmeros outros atores sociais que tem mostrado como é possível formar redes de ação coletiva e solidariedade no combate à pandemia. São essas pessoas e energias mais anônimas que tem colocado o país no rumo necessário de convergência e cooperação. O mundo pós-covid não será mais o mesmo de antes. É destas figuras que devemos estar perto, com elas construir espaços de trabalho e no cotidiano.
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