Por Rafaella Dotta.
Usina Ariadnópolis: a maior área organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Minas Gerais. O caso jurídico mais complexo do país. A ocupação da área começou em 1998 e passou por muitas complicações. Ocupação, organização, reocupação. Hoje, os 3.600 hectares são ocupados por mais de 500 famílias agricultoras.
O terreno da antiga Usina Ariadnópolis encontra-se no município de Campo do Meio, Sul de Minas Gerais, margeado pela represa da Hidrelétrica de Furnas. Durante muitas décadas, a usina de açúcar e álcool foi um dos motores econômicos da cidade e promoveu a plantação contínua de 3.600 hectares de cana de açúcar. A empresa ficou famosa por contratar trabalhadores rurais da região para as épocas de colheitas, mas em 1970 começou a se familiarizar com a palavra “falência”.
Trabalho infantil e degradante
Mesmo em tempos de “canas gordas” a situação era ruim para os funcionários, conta Olivério de Carvalho, conhecido como Seu Ném. Nascido em Campo do Meio, ele trabalhou na usina desde os 12 anos e passou por falta de calçado e roupas para entrar no canavial, transporte que oferecia risco de vida e problemas salariais. “Se você saísse dali não conseguia emprego em outro lugar”, explica. Seu Ném lembra com tristeza das condições ainda piores que passavam os trabalhadores rurais trazidos de outros estados por “gatos” – pessoa também chamada de “turmeiro”, que contrata turmas de funcionários para fazendas.
“Aquele povo apavorado, com aquela miséria, entrava no caminhão e vinha trabalhar na usina. Lá era uma proposta, chegando aqui era outra. Dormiam de qualquer jeito, tomavam banho de qualquer jeito, alimentação péssima, péssima mesmo, uma exploração fora do normal”, descreve. “Os peões não trabalhavam junto com o pessoal de Campo do Meio. Para nós era um preço e pra peãozada pagavam menos da metade”.
Lembrança ainda mais dolorida ficou do falecimento do pai. Por 35 anos o pai de Seu Ném foi homem de confiança da usina para coordenar turmas e gerenciar dinheiro. “Quando ele morreu a empresa não acertou nada com a gente. Simplesmente deu a urna funerária pra ele. A indenização do meu pai foi o caixão”, conta. 5:00
400 processos trabalhistas
Segundo o Sindicato dos Empregados Rurais de Campo do Meio, aproximadamente 400 ex-trabalhadores da usina Ariadnópolis processam a empresa na Justiça. Eles foram demitidos em 1994 sem receber rescisão e descobriram que o FGTS e o INSS também não foram recolhidos. “Tem trabalhador com R$ 300 mil para receber, no valor atualizado em 2011”, relata Paulo Evandro Cardoso Fernandes, coordenador geral do sindicato. A estimativa é que a empresa deve R$ 8 milhões somente nestes processos, em valores de 2011.
Com a empresa falida, existem duas possibilidades defendidas por advogados para o pagamento dos ex-funcionários. “A primeira é o processo normal da penhora, que leva os bens a leilão. Mas isso infelizmente não dá para pagar todo mundo. A outra tese, levantada pelo advogado do MST, é levar esse terreno à desapropriação, pois assim vai ser pago pelo governo”, relata.
A exploração escravista e a dívida foram razões que motivaram os trabalhadores do MST a ocuparem a fazenda Ariadnópolis. Desde a década de 90 a usina já tinha baixado enormemente sua produção e estava listada como grande devedora e alvo de processos trabalhistas. Estima-se que a dívida da empresa seja de R$ 300 milhões, enquanto seu patrimônio está estimado pelo governo estadual em R$ 74 milhões.
A conquista que veio aos poucos
A área de Ariadnópolis foi conformada por diversas ocupações e despejos ao longo desses 20 anos. O assentamento Primeiro do Sul foi o primeiro a ser ocupado, em 1996, ao lado do território da Capia. Ao contrário do que geralmente acontece, o Primeiro do Sul transformou-se em assentamento rapidamente – menos de um ano, por meio de decreto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – e se tornou uma forte base de apoio para as ocupações que estavam por vir.
Em 1998, com a usina já improdutiva, cerca de 60 famílias ocuparam a primeira área dentro do perímetro de Ariadnópolis, às margens da represa de Furnas. A ocupação teve um violento despejo na véspera do Natal de 1998. Plantações e casas desapareceram debaixo das rodas dos tratores. Mesmo sob ameaças, metade das famílias se refugiou em um lugar impróprio, a faixa entre a cerca da fazenda e a água da represa, que estava com nível baixo naquela época do ano. Meses depois, as famílias retomaram a área.
“Quem não pode com formiga não assanha o formigueiro”
A história mostra que os despejos foram mau negócio também para os proprietários. Em 1998, 2005, 2007 e 2009 os sem-terra passaram pelas mais violentas expulsões de acampamentos instalados dentro do terreno da usina. Mas voltaram. A cada vez que o Estado e o fazendeiro agiam, mais o movimento se fortalecia e retornava para ocupar terras ainda maiores. Até que em 2009 aconteceu o despejo de quatro acampamentos em três dias: Tiradentes, Sidney Dias, Irmã Dorothy e Nova Conquista. O MST se reorganizou e voltou ocupando todos os 3.600 hectares da falida Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (CAPIA).
Hoje são 10 acampamentos (Fome Zero, Resistência, Betinho, Girassol, Rosa Luxemburgo, Tiradentes, Sidney Dias, Irmã Doroty 1, 2 e 3) que foram ocupados um a um dentro do perímetro da antiga CAPIA. O MST coordena também dois assentamentos (Primeiro do Sul e Nova Conquista) e três acampamentos (Campo das Flores, Potreiro e Chico Mendes) ao lado da área.
Neles, moram 570 famílias em lotes de 5 a 10 hectares, o que produz a imagem da distribuição de terra que se vê abaixo. Enquanto a imagem de 2004 mostra extensas áreas de monocultura, a imagem de 2017 (já ocupada) é recortada por centenas de lotes de plantação, cada qual com sua respectiva família posseira e diferentes culturas. As únicas áreas idênticas são as matas, que continuam preservadas pelo movimento.
Os efeitos para a economia local também demonstram a força dos agricultores. A fazenda Campo Verde, de um dos maiores produtores de café do país, João Faria, tem mil hectares e fica ao lado de Ariadnópolis. A Campo Verde emprega hoje cerca de 200 trabalhadores, segundo a administração da empresa. Dois funcionários a cada 10 hectares. Já as áreas do MST, que somam 3.600 hectares, empregam aproximadamente 1.300 pessoas. 3,6 trabalhadores para cada 10 hectares. Um resultado empregatício 80% maior que o modelo de produção do agronegócio.
Fonte: Brasil de fato