Um mundo em preto e branco se descortina. A comida deixa de ter sabor. Perde-se a noção se é dia ou noite. O desespero beira o insuportável. O mundo de Antônio* ficou sombrio quando ele se descobriu dependente químico. Aos 25 anos, enfrentou uma crise depressiva após o uso de cocaína e álcool e desistiu da vida. Tentou se enforcar com uma corda, dentro de casa, após ingerir veneno. A mulher dele chegou a tempo e evitou o ato. Oito anos depois, numa situação semelhante, Antônio cortou os pulsos e foi socorrido pelo filho de então 16 anos, que o encaminhou ao hospital. Hoje, aos 37 anos, Antônio se recupera do vício ao lado da família e é um voluntário da Irmandade Alcóolicos Anônimos em Blumenau. A história do personagem é verídica, mas muitos casos não têm este desfecho. Só este ano, 309 pessoas tiraram a própria vida no Estado. De 2006 até agora foram 3.224. Dados do Ministério da Saúde apontam que Santa Catarina é o segundo estado onde mais se comete suicídio no país, atrás apenas do Rio Grande do Sul. As estatísticas oficiais podem não captar a total dimensão do problema, mas demonstram porque o suicídio é considerado um problema de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde.
Antônio* é prova de que o suicídio pode envolver vários aspectos da existência humana.
– Na hora eu pensava em acabar com o meu sofrimento. Era uma agonia muito grande. Estava no fundo do poço. Perdi até minha identidade, não era chamado pelo meu nome. Virei “o drogado”. Hoje, consegui me reerguer. Mas a batalha contra as drogas é diária – relata.
Apesar dos altos índices de suicídio, há poucos trabalhos sobre o tema no Estado. Pouco se fala, se lê ou se escreve a respeito. O assunto ainda é considerado um tabu, especialmente entre os veículos de comunicação cujos manuais de redação proíbem a publicação desses casos sob a justificativa de que poderia estimular situações semelhantes. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS) “o relato de suicídios de uma maneira apropriada, apurada e cuidadosa, por meios de comunicação esclarecidos, pode prevenir perdas trágicas de vidas”, segundo o manual “Prevenção de suicídio: um manual para a mídia”, produzido especialmente para os veículos de comunicação. Médicos e especialistas convergem para a necessidade de identificar políticas públicas para a prevenção, mas reconhecem a dificuldade de enfrentar o problema.
O professor do curso de Psicologia da FURB Álvaro Luiz de Aguiar lembra que é equivocado o pensamento de que o suicídio é um mal da sociedade moderna. O problema acompanha a humanidade desde os tempos mais remotos. Ele aponta que o primeiro grande estudo sobre o tema foi feito pelo sociólogo Emile Durkheim sobre o fenômeno nas populações européias do século XIV. Na época, Durkheim teria constatado que as taxas aumentavam conforme os períodos de pobreza se intensificavam. Para o professor, o suicídio pode ser um dos maiores problemas na área da saúde a ser enfrentado nos próximos anos, não só no Brasil, mas no mundo inteiro:
– Há um despreparo para lidar com o tema. Não há preocupação em enfrentar o problema – adverte. As cobranças da sociedade atual com a exigência da perfeição e competitividade acentuam o quadro, na avaliação da psicanalista, professora da FURB e tutora do
Programa de Saúde Mental (Propet Saúde), do Ministério da Saúde, Carla Kumiotto.
– Hoje não se pode mais ficar triste, viver um luto. Há uma cobrança excessiva por corresponder a esse ideal de felicidade permanente. Não se aguenta o mínimo de sofrimento. Ele faz parte da vida, é inevitável – aponta, ao criticar a distribuição desenfreada e leviana do antidepressivo fluoxetina, na rede pública de saúde de Blumenau.
Os números em Blumenau
Blumenau está entre as cidades que apresentam os mais altos índices de suicídio do Estado. Desde 2010, a Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Saúde de Blumenau reúne as estatísticas sobre suicídios na cidade.
– Nossa intenção com este perfil da violência é contribuir para que os gestores criem políticas públicas e que a sociedade em geral discuta essa questão, tratada de forma superficial – explica a assistente social da Vigilância Epidemiológica de Blumenau, Rejane Wilwert.
Os números oficiais apontam que de janeiro a agosto deste ano, 88 pessoas tentaram o suicídio no município. Ao todo 11 pessoas (oito homens e três mulheres) tiraram a própria vida no mesmo período. Em 2011, foram 29 casos de suicídios em Blumenau (18 homens e 11 mulheres) e 51 tentativas registradas. Mas as estatísticas podem estar longe de refletir o número real de casos.
– Os números sobre suicídios em Blumenau são subestimados. Não há uma coleta de dados confiável. Mas com base nos internamentos em hospitais por intoxicação acreditamos que o número seja alto – alerta o psiquiatra Juliano Tonello.
O médico tem a experiência clínica no atendimento em pronto-socorro de pacientes psiquiátricos e na unidade de internação de psiquiatria no Hospital Santo Antônio de 2004 a 2011. A vivência fez com que tivesse contato diariamente com múltiplos casos de tentativas de suicídios.
– Muitas mortes por suicídio acabam sendo registradas como acidente doméstico, acidente de trânsito, não sendo contabilizadas como suicídio. Blumenau está longe ainda do controle ideal, é um problema do país inteiro – aponta o psicólogo Alvaro Luiz de Aguiar.
O fato de cidades/regiões com alto índice de desenvolvimento apresentarem taxas de suicídio consideradas alarmantes intriga quem estuda o assunto. O professor Aguiar indica ainda que isso pode acontecer pelo fato de essas cidades controlarem melhor os dados. Mas a opinião não é consenso entre especialistas. Com um padrão de vida superior à média brasileira, alta renda per capita e baixas taxas de analfabetismo, as 13 cidades atendidas pelo Instituto Médico Legal de Blumenau registraram 54 suicídios ano passado. De janeiro a junho deste ano foram 29, a maioria por enforcamento.
– Veja o exemplo de Blumenau e Pomerode. Parece que temos a obrigação de ser o que somos. Quando dá uma enchente você pode estar morrendo de tristeza mas tem um compromisso com o vizinho, com a nossa cultura, de logo deixar o jardim com flores. Mesmo sob efeito da enchente, a gente escuta: “nós somos blumenauenses, tem que erguer tudo rápido”, é cultural. Pomerode é assim também. A cidade mais bonitinha do Brasil. Têm que ser bonitos, caprichosos, têm que sorrir sempre. Qual o custo da manutenção dessa imagem? – questiona Alda Nunes Warmling, voluntária do Centro de Valorização da Vida e Prevenção ao Suicídio em Blumenau.
A experiência clínica de 20 anos credencia a psicanalista Carla Kumiotto a falar com propriedade sobre o tema. Segundo ela, dois são os perfis mais vulneráveis ao suicídio: os chamados “casos limite”, indivídos que têm uma imagem frágil de si mesmos, e aqueles que tendem a ver qualquer separação como abandono.
– Blumenau é uma cidade provinciana no modo de pensar. As pessoas viajam e só trazem objetos, não trazem histórias. Há uma preocupação muito forte com a manutenção da “imagem”, do “status”. É uma cidade muito rica, mas pobre ao mesmo tempo. É preciso pensar em espaços de convivência, de cultura e lazer que sirvam de contigência aos sofrimentos da vida – acredita.
Muitos casos de suicídio, lembra a professora, também estão ligados à dificuldade de lidar com perdas, não necessariamente de pessoas queridas, mas também de salário, de imagem, etc. As previsões alertam: Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), até 2020 a depressão será a segunda maior causa de mortes no mundo, atrás apenas das doenças cardíacas.
“Viver é um rasgar-se e remendar-se” – Guimarães Rosa
Com a experiência de quem é voluntária por 27 anos do Centro de Valorização da Vida e Prevenção ao Suicídio (CVV), Alda Nunes Warmeling presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional a quem quer conversar sobre suas dores e dificuldades. O atendimento é feito 24 horas pelo telefone 141. Há ainda possibilidade de ser atendido pessoalmente, por correspondência ou email.
– Todas as questões de desespero e vontade de morrer podem se evitadas e combatidas. O remédio não é o único caminho. Muitas vezes, a pessoa busca apenas alguém para lhe ouvir.
Para o CVV, o estudo e a discussão do tema suicídio são algumas das formas mais eficientes de se promover a prevenção, pois esta só é possível quando a população, os profissionais da saúde, os jornalistas e governantes têm informações suficientes para conduzir as medidas adequadas e ao seu alcance nessa frente
– Blumenau precisa investir muito em espaços culturais e de convivência. A cidade vive de uma imagem, de um “status” muito forte. A violência tem a cara da sociedade que a produz. E quando a sociedade tem serviços de inclusão das demandas ela diminui essa violência. O antídoto para a violência é a capacidade de inclusão, os serviços de qualidade – aponta a assistente social Rejane Wilwert.
O psiquiatra Juliano Tonello explica: – O suicida quer deixar de sofrer. O desejo não necessariamente é a morte. Mas acabar com o seu sofrimento. Buscar uma fuga. – avalia. E engata:
– A propaganda da prefeitura diz que Blumenau é a melhor cidade do Estado. Pode causar a ideia de que estamos bem. Mas há deficiências enormes no que diz respeito ao tratamento da saúde mental.
A OMS indica 0,45 leitos para cada 1000 habitantes. Pela sua população, Blumenau teria de ter 135 leitos. Hoje o Hospital Santo Antônio oferece 10 (SUS) e o Hospital Santa Catarina 25 (particular).
– A política de saúde mental em Blumenau precisa ser ampliada. Em muitos casos, a pessoa sinaliza a prática de nova tentativa, depois que ela recebe o primeiro atendimento emergencial – conclui Andrea Aparecida de Souza Konell, enfermeira da Vigilância Epidemiológica.
Primeiramente, parece haver, no texto, uma redução do suicídio como uma questão de saúde mental e, portanto, apenas uma questão psicológica. Será? E será também que ninguém se mata por lucidez nesse mundo brutal?
Segundo, o estudo do sociólogo francês citado é politicamente conservador nas suas questões, mas, apesar dos pesares, tem coisas interesssantes: uma delas é que, na Europa de seu século,XIX, os países de religião protestante, como a Alemanha, o número de suicídios era muito mais alto que nos países católicos ou nas populações judias, ele creditava isso a especificidades do protestantismo. As regiões citadas de Sta Catarina com alto índice de suicídio são regiões de descendentes de alemães e de maioria protestante. Será que as conclusões de Durkheim tem algum fundamento?
O exemplo do drogado no fundo do poço que quer se matar é apenas um exemplo entre tantas possibilidades dos que desejam se matar…
E precismos ainda pensar em formas de suicídio assistido, para além das questões de súde mental…