O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou na noite de segunda-feira, 27, a instauração de inquérito pedido pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, para apuração de fatos noticiados pelo ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro em pronunciamento ocorrido na última sexta-feira, 24, quando anunciou sua saída do governo e fez acusações ao presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido). O pedido de investigação foi encaminhado no mesmo dia pelo procurador-geral da República. Segundo Aras, as declarações do ex-ministro indicam a possível prática de crimes como falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de Justiça e corrupção passiva.
A autorização permite a quebra de sigilos telefônicos na fase de produção de provas para apurar a autenticidade da troca de mensagens entre Moro e Bolsonaro. O material foi indicado por Moro como prova da interferência e divulgado pelo Jornal Nacional, da Rede Globo. Num pronunciamento logo após a aparição do então ministro para comunicar sua demissão a jornalistas e servidores na sede do ministério, Bolsonaro alegou que as declarações de Moro sobre as tentativas de interferência no comando da PF eram infundadas.
Na troca de mensagens, o presidente envia a Moro o link de uma reportagem que mostra que a PF estava “na cola” de 10 a 12 deputados bolsonaristas para investigar a organização e o financiamento das manifestações de 19 de abril, nas quais seus seguidores pediam o fechamento do Congresso e do Supremo, atos dos quais Bolsonaro participou. Numa das mensagens, o presidente reclama: “mais um motivo para a troca”, referindo-se à sua decisão de demitir o diretor-geral da PF, Mauricio Valeixo, para barrar as investigações.
O decano do STF determinou a realização da diligência inicial requerida por Aras, no prazo de 60 dias, pela Polícia Federal, que deverá ouvir o ex-ministro, para que apresente manifestação detalhada sobre os termos do pronunciamento, “com a exibição de documentação idônea que eventualmente possua acerca dos eventos em questão”.
Em seu despacho, o ministro afirma que “o constituinte republicano, com o intuito de preservar a intangibilidade das liberdades públicas e a essência da forma de governo, sempre consagrou a possibilidade de responsabilização do Presidente da República em virtude da prática de ilícitos penais comuns e de infrações político-administrativas”.
O ministro ressaltou que não se aplica ao caso a cláusula de “imunidade penal temporária”, prevista no artigo 86, parágrafo 4º, da Constituição Federal, uma vez que as condutas supostamente atribuídas a Bolsonaro se inserem no conceito de infrações penais comuns “resultantes de atos não estranhos ao exercício do mandato presidencial”.
“A sujeição do Presidente da República às consequências jurídicas e políticas de seu próprio comportamento é inerente e consubstancial, desse modo, ao regime republicano, que constitui, no plano de nosso ordenamento positivo, uma das mais relevantes decisões políticas fundamentais adotadas pelo legislador constituinte brasileiro”, destacou Mello.
“Não obstante a posição hegemônica que detém na estrutura político-institucional do Poder Executivo, ainda mais acentuada pela expressividade das elevadas funções de Estado que exerce, o Presidente da República – que também é súdito das leis, como qualquer outro cidadão deste País – não se exonera da responsabilidade penal emergente dos atos que tenha praticado, pois ninguém, nem mesmo o Chefe do Poder Executivo da União, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”, concluiu o relator.
MILÍCIAS DIGITAIS – A troca de comando da Polícia Federal também coincidiu com um inquérito sobre milícias digitais bolsonaristas que tramita no STF, sob o comando dos delegados Alberto Ferreira Neto, da Delegacia Especializada em Repressão a Crimes Fazendários da PF, e Maurício Martins da Silva, da Polícia Civil de São Paulo.
Aberto em março de 2019 a pedido do presidente do STF, Dias Toffoli, para apurar a origem de fake news contra ministros da Corte, o inquérito 4781 corre sob sigilo e está com o ministro Alexandre de Moraes. Deve ser concluído em junho.
A investigação seria a principal motivação para a interferência de Bolsonaro na PF – mas não tem relação com o pedido de investigação de Aras aceito por Mello. Atinge em cheio a estratégia política e de comunicação do presidente ao mapear o denominado “ganinete do ódio” e um dos filhos do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro.
O esquema envolve empresários bolsonaristas que bancam a rede de fake news que sustenta o ex-capitão e seu clã. Entre esses empresários estariam Luciano Hang, dono da Havan, e Flávio Rocha, da Riachuelo. A investigação apurou, por exemplo que empresários gastam cerca de R$ 5 milhões por mês para manter as milícias digitais e identificou crimes relacionados ao patrocínio, como lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e evasão de divisas. No decorrer das investigações, por ordem do ministro, agentes da PF deram uma batida na residência de um general bolsonarista aposentado, Paulo Chagas, de acordo com informações vazadas para o Estadão. No relatório a Moraes, os agentes relataram a descoberta de mensagens na deep web – o submundo da internet acessível somente a hackers – que continham ameaças contra ministros.