Hoje (N. da R.: 12 de janeiro) é o oitavo aniversário do catastrófico terremoto em Porto Príncipe, no Haiti, e nas áreas circunvizinhas, que matou quase 300.000 pessoas e foi a maior catástrofe natural da história do país. Oito anos depois, muitos haitianos ainda estão lutando para sobreviver, muitos desabrigados e com transtorno de estresse pós-traumático.
A reportagem é de Régine Michelle Jean-Charles, publicada por America, 12-01-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Ontem, o presidente Trump acrescentou ainda mais dor ao marco deste ano com referências humilhantes ao Haiti e aos imigrantes haitianos. Embora agora negue suas declarações, elas entristeceram aqueles de nós que têm origens haitianas.
Ontem, o presidente Trump acrescentou ainda mais dor ao marco deste ano com referências humilhantes ao Haiti e aos imigrantes haitianos
Todos os anos, os haitianos lembram onde estavam quando ouviram o primeiro o som retumbante de goudougoudou, por quanto tempo ficaram presos, o que fizeram logo depois e onde dormiram naquela noite. Todos os anos, as pessoas na diáspora lembram os entes queridos que perderam, lamentam por todo o rastro do desastre (como a morte de milhares de pessoas devido a uma epidemia de cólera pela qual as Nações Unidas acabaram admitindo a responsabilidade) e perguntam-se como será a reconstrução e recuperação completa. Todos os anos, no dia 12 de janeiro, recordamos, honramos os mortos, ficamos de luto e esperamos por um futuro diferente.
Os comentários de Trump provocaram indignação e com certeza devem ser condenados. Mas, por três razões, não são surpreendentes
Primeiro, porque evidenciam uma marca de racismo que sempre esteve presente na sociedade dos EUA, que desde a campanha de 2016 tem sido ventilada em chamas violentas. Muitos de nós há muito tempo entenderam que a missão de “Fazer os EUA grandes de novo” tem uma raiz de racismo contra os negros — o branco poderia facilmente substituir o negro. O projeto de supremacia branca quer recuperar o país das mãos de qualquer um que não se encaixe nos moldes brancos e masculinos.
As declarações de Trump causaram indignação. Mas, por três razões, não são surpreendentes.
Haiti, a primeira república negra independente do mundo, é alvo de racismo há muito tempo. De várias formas, o sentimento anti-haitiano pode ser equiparado ao de antinegritude. Em Silencing the Past: History and the Production of Power, Michel-Rolph Trouillot explica que a revolução haitiana era impensável precisamente porque ninguém imaginava que as pessoas escravizadas poderiam (e conseguiriam) rebelar-se contra seus proprietários de escravos brancos e reivindicar sua liberdade.
A antropóloga Gina Ulysse explica isso da seguinte forma: “Há, claro, um subtexto sobre raça. O Haiti e os haitianos permanecem sendo uma manifestação da negritude em sua pior forma, porque o enfant terrible dos estadunidenses desafiou todas as probabilidades europeias e criou uma desordem de coisas coloniais” (Why Haiti Needs New Narratives).
Em segundo lugar, as declarações de Trump não são surpreendentes porque os estereótipos dos haitianos infelizmente são muito familiares a muitos de nós. No mês passado, o presidente supostamente trouxe à tona um velho estereótipo dos anos 80 sobre a AIDS referindo-se a imigrantes haitianos. Nos anos 80, a Cruz Vermelha chegou a proibir a doação de sangue pelos haitianos por causa desses preconceitos. Na época, os haitianos organizaram protestos, assim como no início deste ano, quando o Status de Proteção Temporária para haitianos foi revogado para mais de 50.000 pessoas.
Haiti, a primeira república negra independente do mundo, é alvo de racismo há muito tempo
Em terceiro lugar, as observações de Trump não são surpreendentes por causa do entrelaçamento da história compartilhada pelo Haiti e pelos Estados Unidos. O Haiti tornou-se independente da França quase 30 anos após a independência dos Estados Unidos. Mas o vizinho do norte do Haiti não reconheceu sua independência até 1862. Mais tarde, em 1915, os Estados Unidos invadiram e ocuparam o Haiti por quase 30 anos para “proteger os interesses estadunidenses”. Outra intervenção seguiu a ocupação, nos anos 90, após um golpe de Estado que derrubou o presidente Jean-Bertrand Aristide. Os laços dos dois países são tão fortes que não se pode contar a história de um sem contar a de outro.
No semestre passado, lecionei uma disciplina chamada “Chérie do Haiti: Literatura e Cinema Haitianos”. Nela, lemos romances de autores haitianos, como Evelyne Trouillot e Kettly Mars, assistimos a filmes sobre o Haiti de cineastas como Raoul Peck e ouvimos música haitiana. Meu objetivo sempre foi mostrar aos alunos que, como disse o historiador Marc Prou: “O Haiti é economicamente pobre, mas culturalmente rico”.
Em um momento, meu pai participou da aula durante uma visita do Haiti. Um haitiano que imigrou para os Estados Unidos e morou aqui por mais de 30 anos antes de retornar ao seu país, meu pai é médico e praticou a medicina antes de se aposentar. Ele e minha mãe exemplificam o modelo de “bom imigrante”. Trabalharam incansavelmente, tinham propriedades, mandaram todos os filhos para a escola particular e para a faculdade e depois decidiram voltar para casa na aposentadoria.
A importância das pessoas não deveria se dar por sua contribuição à economia dos EUA
Certamente, quando as pessoas falam sobre os imigrantes de forma depreciativa, não estão se referindo a pessoas como meus pais. Mas este pensamento é inerentemente falho. A importância das pessoas não deveria se dar por sua contribuição à economia dos EUA; mas simplesmente por serem pessoas.
Meu pai ficou muito feliz pela aula. Como pai orgulhoso, adorou me ver em ação; como católico devoto, estava emocionado por estar no campus do Boston College; como médico e professor da faculdade de medicina em Porto Príncipe, gostou de interagir com os alunos. Mas o que deixou a melhor impressão foi ver o quanto meus alunos sabiam sobre o Haiti e o quanto estavam animados com o material. Ele ficou emocionado ao ver alunos de tantos lugares diferentes — muitos dos quais sabiam muito pouco sobre o Haiti antes da disciplina — tão interessados por seu país. Para ele, os alunos eram um exemplo do poder da educação, o que Chimamanda Ngozi Adichie mencionava como o poder que as histórias têm de influenciar o pensamento das pessoas sobre um lugar.
Apesar do que sabemos sobre a tendência do presidente para fazer comentários racistas sobre determinados grupos, eles continuam sendo desmoralizantes. Hoje de manhã, tive que contar aos meus filhos, que estão na terceira e quarta série, sobre o que o presidente deles havia dito. Felizmente, tendo avós do Haiti e de Gana, eles têm consciência de sua rica herança cultural e já viajaram para ambos os países.
Sim, estou desmoralizado, mas não desanimado: O Haiti, a primeira república negra independente do mundo, tem uma história lendária. É lar de artistas, escritores, dançarinos, fotógrafos, cineastas, intelectuais e tantas pessoas — comuns e extraordinárias — que usam seu trabalho e sua vida para trazer beleza e esperança ao mundo.
Hoje é um dia de tristeza para nós, mas amanhã será dia de agir, ao pegarmos esses sentimentos e usá-los para alimentar a nossa resistência, assim como fizeram nossos antepassados. Ou, como diz a escritora Edwidge Danticat: “Hoje, em luto; Amanhã, à luta.”
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Fonte: IHU.