A mística traz mulheres de mãos dadas, representando diferentes idades, territórios, etnias. “Essa ciranda não é minha só, ela é de todas nós” é o verso a dar o tom dos passos da caminhada, que não começava nem se encerrava ali, mas que representava, naquele momento, significativo encontro.
Por: Mariana Reis
Eram, afinal, 100 mulheres de dez estados do Semiárido brasileiro reunidas, durante dois dias, para compartilhar histórias de vida, experiências, sonhos, sentimentos.
Além de mulheres, agricultoras, e mais do que agricultoras, experimentadoras. Em cada pétala da margarida que fazia às vezes de mandala, no centro da roda, uma palavra para expressar o que elas queriam, que conhecimento buscavam: renovação era uma dessas palavras. Também passa a ser palavra de ordem nas vozes dessas mulheres. (Veja os compromissos que as agricultoras experimentadoras sugeriram para a ASA).
“O Rio Grande do Norte escolheu essa palavra porque a gente quer que a mulher chegue em 2015 mais forte”, afirma a agricultora Irene, uma das participantes do I Encontro Nacional de Agricultoras Experimentadoras, ocorrido nos dias 23 e 24 em Lagoa Seca, na Paraíba.
A margarida, para o movimento de mulheres do campo, tem, aliás, outros significados. A paraibana Margarida Alves foi sindicalista, liderança da luta pela terra e assassinada há 30 anos. Dá nome à Marcha das Margaridas, que existe desde 2000 e é uma ação estratégica envolvendo movimentos sindicais das trabalhadoras rurais, feministas e de mulheres, a cada dois anos, rumo à Brasília.
Vida de Margarida é, ainda, o nome da peça que o grupo de teatro do Polo Sindical da Borborema apresenta para discutir a questão da opressão da mulher no meio rural. À peça, representada por quatro personagens (Margarida, o marido Biu e o casal de filhos), segue-se sempre um debate com o público, no qual emergem questões ligadas à violência em seus diversos aspectos: doméstica, sexual, simbólica, psicológica.
“Na peça aparecem várias violências, no papel do Biu. Nas comunidades rurais não é diferente. Os papéis são reproduzidos: o homem é quem vende, quem tem a posse. Minha mãe era margarida, vivia uma violência tamanha. Meu pai queria o dinheiro até da aposentadoria dela. Ela não tinha direito de usufruir de nada. Foi minha mãe quem me libertou e deu oportunidade de eu participar da vida. Cada vez que vemos essa peça é como se uma ferida tivesse machucada dentro da gente. Mas quando vivemos esses espaços de encontro não queremos parar mais de vir”, afirma Angineide, de Queimadas (PB), município que enfrenta a violência contra as mulheres (saiba mais sobre o caso aqui).
A metodologia do teatro possibilita a formação das mulheres que estão na plateia. Umas falam. Outras escutam. Todas refletem. Risos, lágrimas e aplausos se intercalam. Uma vez em processo de conquista da autonomia, essas mulheres podem atuar de forma diferente nos espaços em que circulam, a começar pela sua própria casa.
“Estamos aqui hoje, mas já fomos margaridas. Antes de ter conhecimento, somos exploradas. Quando passamos conhecimento umas para as outras a gente fica esperta. Agradeço por deixar de ser margarida às organizações, à luta das mulheres. Se antes eu pedia, agora eu informo”, exclama Sára, de Cubati (PB).
Para Jacinta, da Bahia, o teatro lhe trouxe outras lembranças: “Essa peça reabre muitas feridas. Me lembra minha família. A diferença é que quem libertou minha mãe foram os filhos. Eles a apoiaram na sua libertação e foram contra o meu pai”.
Roseane, indígena da etnia Kapinawá, de Buíque (PE), acrescenta mais elementos a essa história. Sua mãe era professora. Ao casar-se com seu pai, queria continuar a dar aulas em casa, mas sofreu humilhação e violência, mesmo grávida. Porém, ela resistiu. Acabou por montar sua banca de professora no terreiro de casa, ao pé de uma árvore. Assim, fundou a primeira escola indígena da sua etnia na comunidade, a única escola em um universo de cinco mil pessoas.
“Na época a gente não tinha água nem terra e ninguém da comunidade sabia ler, conhecer seus direitos. A discriminação vem de dentro e de fora da gente, principalmente se somos mulheres agricultoras, nordestinas, indígenas e negras”, definiu Roseane.
Também da Paraíba, Maria do Céu trouxe à tona suas memórias. “Minha mãe me resgatou pra estar aqui hoje. Ela sofreu muitas violências. Mas ela enfrentou meu pai, que hoje tira o dinheiro no banco e repassa todo para ela. Isso foi uma conquista dela”, afirma.
Ainda segundo Maria do Céu, muitas mulheres jovens são vítimas desse sistema patriarcal. A peça fala sobre isso também. “Estamos numa sociedade que constrói o machismo. Mas nós descontruímos isso, tentando renovar e buscar justiça. Minha mãe me levou pro movimento, tenho o exemplo dela. Não é uma luta fácil, mas estamos aqui para isso. É difícil acabar com a violência, mas precisamos começar ao redor de casa. A partir da agroecologia vamos despertando mais mulheres. Levamos no dia 8 de março cada vez mais mulheres pra rua. Isso é uma conquista, não é fácil”, defende.
Edivânia, de Minas Gerais, sofre preconceito por ser mulher e exercer a função de técnica de campo. “Já ouvi dos pedreiros coisas horríveis, muita discriminação. Mas continuo montada numa moto fazendo o que muito homem não faz. Nos cursos de Gerenciamento de Recursos Hídricos (GRH) eu foco na questão de gênero, falo pros monitores pautarem isso também. É muito importante”, define. A violência, no entanto, marca presença mesmo nesses espaços. A técnica conta que na região houve um caso em que um marido assassinou sua mulher na volta da capacitação. O motivo? Ciúmes.
“A história de vocês é forte”, diz a baiana Magnólia, e prossegue: “Tudo isso que vocês contaram eu já vi. Eu sou parteira e já vi mulher dizer que não ia pro hospital pro médico não ver sua genitália. Aqui eu vejo de que maneira eu vou ajudar as mulheres da minha comunidade. Graças a Deus posso levar daqui conhecimento para as mulheres da minha microrregião”.
Findo o debate, a personagem de Margarida reaparece. Dessa vez, fora de cena. Despe suas roupas de personagem e se torna novamente Rose, a atriz. Para ela, não dá pra falar com a roupa de Margarida depois de escutar tantos depoimentos marcantes e histórias de violência.
Ela afirma: “Essa peça é uma das que mais me tocam, pois ela provoca muitos sentimentos e dificuldades. Escutamos mais do que histórias de violência, sobretudo falamos aqui no debate de superação. O modelo capitalista que vivemos é um sistema de exploração das mulheres. Precisamos nos colocar num lugar de novo olhar. Essas histórias trazem relações de poder que só se quebram com conflito, por isso nem sempre podemos voltar ao mesmo companheiro”.
Ainda de acordo com a atriz, é preciso reagir a essas situações de violência e desigualdade. “Precisamos no Semiárido brasileiro reconstruir essa história. O papel da mulher, os processos coletivos têm fortalecido a luta das mulheres agricultoras experimentadoras. Sairemos daqui convocadas a fazer essa luta”, conclui.
* Com a colaboração de Cristiana Cavalcanti, assessora técnica do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC)
Fonte: Agroecologia