Somente com a revolta dos de baixo haverá uma ruptura no ciclo de governanças dos de cima no Brasil

Foto: Roberto Antônio Liebgot/Arquivos Cimi Sul.

Por Roberto Antônio Liebgott, Ivan Cesar Cima e Jacson Antônio Lopes Santana/CIMI.

Chega-se quase ao desespero quando se assiste aos telejornais que mostram, pelo segundo ano consecutivo, o Brasil em chamas. Em 2019, as queimadas foram predominantemente na Amazônia e no Cerrado. Neste ano de 2020, o fogo consome a natureza nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste. Os biomas Amazônico, Cerrado, Pantanal e Mata Atlântica estão sendo devastados. E o governo limita-se ao discurso vazio de que “a meta é reduzir desmatamentos e queimadas”, desde que se faça a regularização fundiária que, em essência, é a legalização da grilagem e a concessão de todas as terras públicas para os grupos criminosos ligados a madeireiras, fazendeiros e garimpeiros. E, para agravar ainda mais o contexto devastador, acusam os indígenas de desejarem a exploração irrestrita das terras, especialmente através do garimpo.

A destruição do meio ambiente praticada neste governo é avassaladora. De acordo com dados do Deter, que é um sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de agosto de 2019 a julho de 2020, houve mais de 45 mil alertas de destruição das florestas, em um total de 9.205 quilômetros quadrados, o que representa um aumento de 34,5% em comparação com o período anterior, quando a área com alertas era inferior a 7 mil quilômetros quadrados. Tal como uma nuvem de gafanhotos, empresas mineradoras, grileiros de terras, garimpeiros e o agronegócio predador lançaram-se numa saga voraz sobre as florestas de nosso país.

Destrói-se tudo e as marcas da morte estão nas chamas, na fumaça, nas cinzas, na terra desfigurada e nos corpos carbonizados de animais, aves, répteis e demais organismos de nossas florestas. Quanta dor e gemidos das vidas em profunda agonia sob as chamas. O plano deste governo é o da terra arrasada. Cortam-se as árvores, retiram-se as toras e queima-se o restante das matas. Sem floresta, os invasores cercam as áreas para iniciar a exploração, o loteamento e a grilagem.

O ecocídio foi posto em curso de forma expressa, autorizado pelo governo, que transformou o Estado em agente avalizador dos crimes ambientais e da omissão. Nada comove os integrantes do governo brasileiro. A pandemia do coronavírus, que contagiou milhões de pessoas, é enfrentada por um presidente que colocou no Ministério da Saúde um general treinado para combater e matar pessoas, mas sem formação em medicina, para proteger, curar e salvar vidas. Temos à frente de nosso país um homem que se tornou uma espécie de pária diante do mundo. Uma pessoa perversa, tirana e que usa o Estado para proteger seus familiares, amigos e colocar em marcha um projeto de destruição e morte.

Associado ao incentivo destruidor do meio ambiente, está a omissão criminosa e genocida do presidente da República no que diz respeito ao enfrentamento à covid-19. Ao invés de construir políticas e ações para proteger as pessoas, ele, a cada dia, com seus gestos, falas e desprezo, lançou a população, especialmente aquelas mais vulneráveis, ao caos e a morte. Em 09 de agosto atingimos a marca dolorosa de mais de 100.000 vidas perdidas. Para os povos indígenas, a pandemia tem sido ainda mais avassaladora, pois está em curso um genocídio contra povos e comunidades originárias e tradicionais. De acordo com dados da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), no Brasil, já são 23.339 casos de indígenas contaminados, 651 vidas perdidas e 148 povos com casos registrados.

Nas regiões Sul e Sudeste, estados que compõem o Regional Sul do Cimi, são milhares os casos de contágio, especialmente entre os Kaingang no Norte do Rio Grande do Sul e Oeste de Santa Catarina. Já entre os Guarani, são centenas de casos nas aldeias da região Oeste do Paraná e na fronteira com o Paraguai, em Foz do Iguaçu. Outra situação preocupante é a do povo Xokleng que, com uma população de pouco mais de 2000 pessoas, já foram registrados mais de 50 casos. Os povos e comunidades que vivem em contexto urbano, ignorados pelos órgãos indigenistas oficiais, também são vítimas da Covid-19 e os casos, a cada dia, multiplicam-se assustadoramente. Nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Cataria e Rio Grande do Sul ocorreram 22 mortes de indígenas, dentre eles dois Caciques do povo Kaingang e um do povo Guarani. Ainda, conforme a APIB, a letalidade da covid-19 tem se mostrado mais cruel com os povos indígenas, pois enquanto chega-se a 5,1% de letalidade na população brasileira, entre os povos indígenas tem-se até 8,8%.

Destruir a terra, seus filhos e todos os seres vivos é crime hediondo. Para executar esse plano de morte, foram totalmente desarticulados os órgãos de proteção ao meio ambiente, aos quilombolas e aos povos indígenas. Esses órgãos foram ocupados por militares que seguem à risca ordens superiores no sentido de inviabilizar as ações de fiscalização e proteção à natureza. Dossiês são elaborados contra funcionários que defendem a luta contra o fascismo.

Havia, antes deste governo, crimes ambientais, mas existia também uma relativa preocupação em promover uma certa fiscalização e proteção ao meio ambiente e aos direitos humanos – ainda que motivados pelo receio da exposição negativa internacional. No entanto, o governo atual persegue, pune e exonera aqueles servidores públicos de órgãos de fiscalização que denunciam e agem contra os crimes ambientais, mesmo que essas sejam suas atribuições funcionais.

Diante de tal caos, em momentos pontuais, o Poder Judiciário tem reconhecido as atrocidades deste governo. Exemplo disso é a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de obrigar o governo federal a tomar medidas que protejam as comunidades indígenas e quilombolas durante a pandemia. Um projeto de lei aprovado no Congresso Nacional, que visava a proteção dessas comunidades, sofreu inúmeros vetos de Bolsonaro. Foram vetadas medidas básicas como o fornecimento de água potável ou a distribuição de material de higiene e proteção.

Esse cenário soma-se, ainda, ao ataque aos direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil. Se a paralisação das demarcações de territórios tradicionais já vem de longa data, o governo Bolsonaro aprofunda o retrocesso, com a devolução de processos demarcatórios em estágio avançado, o abandono da defesa de comunidades indígenas em ações judiciais e o profundo aparelhamento da Fundação Nacional do Índio (Funai) pelos interesses do agronegócio e da mineração, desde as coordenações regionais até a presidência do órgão.
Também neste caso, o Poder Judiciário pode cumprir um papel de moderação, caso decida manter suspenso um dos principais instrumentos utilizados pelo governo Bolsonaro para fazer retroceder as demarcações de terras indígenas: o Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União, que se encontra atualmente suspenso por uma decisão liminar. No dia 13 de agosto, o STF decidirá se mantém a suspensão do parecer, que pode garantir algum alívio aos povos indígenas em tempos tão trágicos.

O silêncio daqueles que deveriam agir revela que as chamas que queimam nossas florestas atingiram a alma das autoridades, a ética, a justiça e os demais valores humanos, como a solidariedade, fraternidade e bondade. Diante de tudo isso, só há um caminho, a revolta dos de baixo, dos pobres, dos filhos da terra, das águas, da natureza, das periferias. Quando os de baixo se movem, os de cima caem. E somente com a sua queda poderemos repensar o Brasil para todos.

Enquanto mudanças de rumo não ocorrerem, continuaremos vendo mortes prematuras, enterros em valas comuns de uma significativa parcela da população, especialmente daquela mais pobre, aquela sem acesso a saúde, saneamento básico e a alimentação. Também são violentados e negados os direitos fundamentais das populações das favelas, das comunidades quilombolas e indígenas. Os que governam o país fizeram as suas escolhas: entre o bem comum, a natureza e a dignidade humana, optaram pelo lucro fácil e farto, através da destruição e da morte.

Para fazer essa luta e enfrentarmos a violência necessitamos do apoio solidário de nossos irmãos de outros países. Precisamos que nos ajudem a denunciar o processo de genocídio em curso em nosso país. Essa luta se faz também através do boicote à compra de produtos brasileiros, especialmente aqueles ligados ao agronegócio. Pressões precisam ser feitas junto às grandes empresas estrangeiras para que deixem de investir em nosso país, até que medidas concretas em defesa do meio ambiente e de suas populações sejam efetivamente tomadas. Necessitamos, com urgência, de uma campanha de boicote mundial que alerte empresas e cidadãos de todas as partes do planeta sobre o que vem ocorrendo em nosso país e o que podem fazer para nos ajudar.

Foi neste contexto sombrio que Dom Pedro Casaldáliga deixou este mundo. Sua partida nos estimula a lembrar dos tantos ensinamentos acerca da necessidade de amarmos os pequenos da terra e “ser o que se é, falar o que se crê, crer no que se prega, viver o que se proclama até as últimas consequências”. Assim ele procedeu em toda sua vida terrena. E, nestes tempos de tanta destruição, seu legado fica para mostrar que jamais devemos recuar ou desistir de lutar por um outro mundo possível, pela Terra Sem Males, pelo Bem Viver.

Chapecó, SC, 10 de agosto de 2020.

*Roberto Antônio Liebgott – Ivan Cesar Cima – Jacson Antônio Lopes Santana
Coordenação Colegiada CIMI Regional Sul.

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