Por Pedro Marin.
Em meio ao completo colapso da saúde amazonense, da chegada das execradas vacinas chinesas ao Brasil e da posse do novo presidente norte-americano, Joe Biden, depois da aprovação do impeachment de Trump na Câmara norte-americana, um processo de impedimento contra Bolsonaro parece enfim entrar na pauta de discussões da política nacional e do Congresso. 110 de 513 deputados já se posicionaram a favor de um processo e, a duas semanas de deixar o comando da Câmara, Rodrigo Maia declarou que o tema “inevitavelmente” deverá ser tratado no futuro, apesar de ter sido continuamente ignorado no passado pelo presidente da Casa.
Que o impeachment seja discutido não impressionará o leitor costumeiro desta revista. Desde que Bolsonaro tomou posse, em verdade desde que o nome de seu vice-presidente fora anunciado, já o tomávamos como provável. No entanto, chama atenção que os resultados práticos de tal decisão – o fim do capitão-presidente faria do vice-general-presidente o presidente-general – sejam tão surrupiados do debate e ignorados em um momento em que se evoca, com descabido otimismo, um imaginado futuro impeachment. Também como foi previsto, qualquer possível discussão nesse sentido está fadada a ser descartada sob jogos de palavras moralistas; “qualquer coisa é melhor que Bolsonaro” ou “Bolsonaro é um perigo para a democracia” serão as contumazes respostas. Mesmo que partíssemos desses pressupostos, a consideração estratégica ainda se manteria: e depois, o que? Essa consideração teria, ou deveria ter, implicações táticas, mesmo que prevalecendo a posição pró-impeachment.
Zé Dirceu escreve em sua última coluna, por exemplo, que “o Brasil não tem como conviver com Bolsonaro mais dois anos, não apenas pelos riscos que corremos, mas porque a cada dia seu comportamento é mais desequilibrado e sua obsessão negacionista e de seu desgoverno cobra mais vítimas e mais pobreza e miséria”, e emenda: “é verdade que seu vice é um general e de direita, como tem deixado mais do que claro em suas declarações e artigos. Mas seu governo, se ele assumir, não será uma continuidade de Bolsonaro, pois não haverá condições políticas para tanto […] a pergunta a se fazer é até quando os militares conviverão com Bolsonaro e como nossa elite fará uma transição, pois é disso que se trata, até as eleições de 22.”
É certo que um governo Mourão não seria uma continuidade de Bolsonaro, mas não porque não haja condições políticas para tanto (as “condições políticas” para que Bolsonaro fosse Bolsonaro de certa forma também nunca existiram), e sim porque efetivamente seria mais producente, para as classes dominantes e o Partido Fardado, manter um clima de relativa “tranquilidade” institucional e moderação do discurso político, somada a um maior domínio de fato do espaço político – pela força em si ou pela ameaça dela. É mais fácil aplicar o tipo de programa econômico de Guedes dessa forma. E seria mais difícil, do lado de cá, impedi-lo, ou mesmo se levantar contra ele. Assim, a pergunta a se fazer não é “até quando os militares conviverão com Bolsonaro e como nossa elite fará uma transição até 2022”, e sim se é possível impedir ao menos que essa transição da elite não seja operada com base num poder militar com faceta moderada, que restrinja ainda mais o espaço para a reorganização das esquerdas.
Curioso que os que talvez tomem a frase anterior, já em 2021, como uma alucinação, costumem ser os mesmos que continuamente apontam os “perigos à democracia” que Bolsonaro representa e a possibilidade de um golpe policial-miliciano. Seja como for, como nos últimos anos a direção das forças hegemônicas na esquerda brasileira se caracterizou pelo imobilismo e pela submissão de tudo às tarefas eleitorais e ao Parlamento, estimulando um processo de sangria e desorganização das suas já restritas bases, efetivamente essa opção não está posta no horizonte; no espaço institucional perdemos por não termos maioria, no campo da força frente aos gorilas. Em resumo, a situação é que não temos hoje um nível de inserção nas massas nem para dobrar a vontade dos primeiros nem para enfrentar os segundos. Que o vice-presidente candidato à presidência seja um general de direita, portanto, não pode ser tomado como um detalhe, mas como um fator fundamental, a condicionar não só nossos objetivos em relação aos militares numa possível derrubada de Bolsonaro, mas o tipo de postura a ser exigida do Parlamento, que, como Bolsonaro, também tende a depender dos fardados.
O que fazer quando não estão postas as condições concretas, quando não há organização suficiente para a palavra de ordem mínima? Cá está a questão. As opções são muitas, e os perigos também. Não se trata de um caminho bloqueado por princípio; a depender das condições de força, da possibilidade de dar um salto na organização popular durante o processo e do espaço para não ser submisso a um Parlamento que busca, justamente, fazer uma “transição transada*”, agora, talvez, ao avesso, a bandeira do impeachment deve ser levantada. Mas um repentino senso de urgência para tirar Bolsonaro do poder não pode nos fazer cavalos de antolhos, indispostos a considerar seriamente os efeitos de nossas próprias posições. Que haja tanta euforia com um impeachment em um momento de súbito esclarecimento de figuras que até pouco se calavam sobre os desvarios do presidente (e às vésperas das eleições para o comando do Senado e Câmara, é bom lembrar) já é um péssimo sinal.
* – O termo, ao que me consta, é de Jânio de Freitas, mas se tornou ilustre nos textos de Florestan Fernandes, onde denunciava a “situação histórica de ‘conciliação nacional’, isto é, uma conciliação conservadora” imposta às classes populares durante a abertura democrática. Bom perceber que tais classes tiveram bom nível de participação na Campanha das Diretas, em atos de rua etc. Corremos perigo parecido quando se trata de uma transição que inevitavelmente deverá contar com certos setores da direita e centro-direita parlamentar, mas agora não para tirar os milicos do governo: para elevá-los à presidência.
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