Solidão e antipetismo moderado

Imagem: Antônio Augusto Bueno

Por Désceo Machado, para Desacato.info.

Na frente da estante, com o dedo levantado em direção aos livros, o professor andava de lado lentamente. Um dicionário de economia, muito bom, Marx, os manuscritos econômicos filosóficos, com sublinhados e anotações de vinte anos atrás, livro que merecia ser relido, um livro de crítica literária, que lhe fez lembrar o sebista barbudo e simpático, Vinícius de Moraes, as obras completas, que gosto aquelas cartas do Vinícius lidas nos saraus, um volume do Plutarco em espanhol, nunca lido, um relato de viajante ao Brasil do século XVIII, nem tão bom, mas editado pela estupenda Brasiliana, o dicionário de política do Bobbio, a questão de prova que aquela aluna recorreu, a tese transformada em livro de seu desafeto na universidade, vários livrinhos da coleção primeiros passos. Entrava na seção de literatura. Não que fosse muito grande sua biblioteca, no quinto andar de um prédio do centro, vivia no apartamento de dois quartos com seus dois gatos. Hilda Hilst, pornográfica e fodástica, pegou, folheou, leu um verso, não encontrou nada pornográfico, fechou, Thomas Mann, a montanha mágica, preciso voltar para a montanha, sorriu para o semblante de um personagem, um livro de poesia com a capa prateada, Machado de Assis, que delícia aqueles contos, e a introdução então, que delícia. Aquele era um gozo comum e quase diário, como os midiamaníacos ele usava seu dedo para fazer um tour de sensações pelos links ou posts das lombadas.

Na cozinha, coando café, lembrou-se que deveria ir para a universidade. Sentiu a careta desmedida que fazia para sorver o café, não vou deixar, pigarreou, colocou a xícara na cuba, pegou o pano de prato, todos os movimentos usando apenas o corpo. Não vou deixar! Mudou uma cadeira de lugar, recolheu dois livros, sentou-se no sofá e quis pensar na aula que daria, nos alunos e nas alunas, como aquela aula tinha sido boa, ninguém saiu, se o grupo dos petistas, da ex-querda, como gostava de desdenhar, se eles não o cumprimentavam, problema era deles, eu não tenho qualquer compromisso com ninguém. Se as coisas desandaram desse jeito, foi pela omissão deles próprios, foi pelo seus erros, construindo um governo em cima de publicidade, os esquerdistas encastelados no seu moralismo de conceitos, tudo bem, mas perder o meu amigo… Voltaria para a Universidade e não teria companhia para tomar café, o mais tolerante dos amigos rompera-lhe a amizade devagarinho, sem fazer ruídos, foi dando desculpas, se afastando.

Sabia que era uma pessoa difícil, não mendigava companhia, mas como não lhe deixavam criticar o PT e suas responsabilidades? Como não riam e até não permitiam as suas piadas contra Lula? Como o seu melhor amigo de universidade pôde cansar de sua ladainha antipetista, que evoluía da extravagância ao estilo reservado? Não vou deixar que me anulem, que me ignorem! Era suspeito quem se elevasse a ele para entender o que ocorria. Doutor e pós-doutor, embora nunca tivesse dado seu voto ao PSDB, jamais diria publicamente que apoiava um governo de oportunistas tacanhos e ignorantes. Quando confrontado com grandes intelectuais da esquerda, preferia linchar uma figura política com pretensões intelectuais. Quando lhe indicavam fazer terapia, criticava a epistemologia da psicanálise.

Riu-se de um colega de doutorado, professor da federal, mais agressivo. Enquanto eu me isolo com minhas críticas francas, aquele débil mental carrega um séquito de curtidores de facebook, ele já sabe que virou o personagem, não sabe é que virou refém de seus curtidores. O professor das lombadas, crítico das ex-querdas, que lia Marx e não votava na direita, não queria se transformar em uma espécie de Diogo Mainardi de segunda classe. Não queria ter que cultivar e vender um ódio postiço para ganhar curtidas, ou mesmo não conseguia. Percorreu o andar do gato, levantou-se para se arrumar. Mexeu com ele a história do vizinho do acampamento Lula Livre, que, com adesivos de apoio à lava a jato no carro e bandeira do Brasil hasteada, enchia os baldes dos acampados em fila com a mangueira do seu jardim. Colocava a camisa e imaginava o que se passava com aquele senhor. Antes de sair foi até ao escritório e zapeou os livros de baixo, na prateleira do meio, Umberto Eco, a ilha do dia anterior, puxa, Ferrante, a imagem faustiana perseguindo, qual é o nome do personagem principal?, pega o livro, folheia, devolve, Caetano, a verdade tropical, taí outro prisma da ditadura, a coleção dos intérpretes da nova fronteira, que delícia, todas as introduções, os estudos e bibliografias, a letra é um pouco pequena, mas dá para se acostumar, Althusser, o futuro dura muito tempo, que cenas, que vida esse homem, que fim, que livro!

Thiago de Castilho SoaresDésceo Machado é repórter em Florianópolis.

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