Por Elaine Tavares.
Eu nasci na fronteira entre Brasil e Argentina, e desde bem menina já sabia falar três línguas: o português, o espanhol e o portunhol. Estudei no Passo, o bairro de São Borja que fica na beira do rio, lugar de onde saía a balsa para Santo Tomé. Meus pés de menina pisavam as pedrinhas e a lama do Rio Uruguai quase todos os dias, e no fim de semana, com o pai, passávamos para o outro lado para comprar batatada e balas Mumu. Em épocas de enchente, corríamos para a beira do rio para ver passar as madeiras, conduzidas pelos paysanos e gaúchos, que as manejavam gritando: ibibibiuuuuururu.
Na fronteira, aprendi que a vida mesma não tem divisão. Argentinos e uruguaios eram como nós, filhos de uma mesma pampa, com história comum, com costumes comuns. São Borja, Uruguaiana, Quaraí, cidades irmãs de Santo Tomé, Paso de los Libres, Artigas. Nunca pude perceber onde cada uma começava ou terminava, ainda que as aduanas e os milicos de cara amarrada interpusessem paradas e rituais. A pampa é quase um estado de espírito. Está em nós e não lá fora.
Aprendi a ser latino-americana assim, ainda bem niñita, nesse enfrentamento diário com a vida, com a história e com a cultura. Ora tomando mate com leite, ora amargo, enchendo o pão com doce de leite, ou tomando limonada, comendo matambre, milanesa, dançando vanerão e chamamé. Quando comecei a entender o mundo, então, já estava tomada pela Pátria Grande. Não poderia ser diferente. Cada voz argentina era de um irmão. E aos argentinos e uruguaios foram se somando os bolivianos, chilenos, paraguaios, colombianos, peruanos, equatorianos, venezuelanos, cubanos, nicas, guatemaltecos, hondurenhos, mexicanos, caribenhos… todos e cada um.
Mas, é bom que se esclareça. Há dois tipos de fronteiriço. Os que ocupam as canhadas para delas se apossar (os patrões) e os que, sem nada além da força de trabalho, vivem nos descampados a dura lida do existir (os trabalhadores). Os primeiros não se ocupam de encontros humanos, são produtores de mercadoria, caçadores do lucro. Já os segundos veem o território como um amplo espaço por onde podem andar e viver, enredados com os hermanos, na mesma faina da manutenção da vida. Esses, trabalhadores, são seres amalgamados de horizontes diversos, e têm vários mundos girando dentro de si. Por conta das mesmas necessidades, não pode lhes caber preconceito, não pode lhes caber o ódio, não pode lhes caber o medo do outro. Porque estão também tecidos de outridades, o tempo todo e todo o tempo.
A única forma de mudar a forma amorosa de um fronteiriço é inventar um inimigo. E é assim que se fazem as guerras. Os grandes forjam sonhos de conquista e disseminam a ideologia do outro, no outro lado, como inimigo. Assim, aquele que até ontem tomava mate com a gente vira um monstro a quem temos de eliminar. A guerra é dos grandes, mas somos nós os que entregamos os corpos.
Amigos fronteiriços. Não há fronteiras. Tudo o que existe são desenhos pintados pelos que estão no poder. Assim se balcanizou a américa baixa. Pela ganância e pelo desejo de poder de uns e outros. Não fosse isso hoje seríamos todos patriagrandinos, filhos do mesmo continente. Com nossas particularidades, é fato, mas cheios dessa universalidade abyayálica que nos iguala. Toda terra nos pertence e por ela temos o direito de andar.
Quase 70 milhões de pessoas estão agora, agorinha mesmo, enquanto lês esse texto, saindo de sua terra ancestral. Caminham não porque querem – como eu, criança, indo buscar balinhas Mumu – mas acossados por guerras, fome, medo, ódio, engano, incompreensão. Carregam seus filhos, tralhas e esperanças. Tudo o que querem é um olhar doce, uma mão amiga, um pão, e a compreensão de que somos todos um pequeno gênero humano.
Que as pessoas que vivem nas fronteiras não caiam no conto dos latifundiários, dos empresários, dos gananciosos, dos comerciantes, dos que estão no poder. Não acreditem que o outro – igual a ti – é o inimigo. O inimigo é bem diferente. É o que te explora e te consome aí mesmo, no teu lugar. O que rouba tua força de trabalho, o que te incita a lutar guerras por eles, guerras que nem sequer podes entender.
Nós, os trabalhadores, temos de fazer aflorar a consciência de classe, ficar junto daquele que sofre o mesmo que nós, ainda que ele mesmo não perceba. Não nos deixamos levar pela invenção de um inimigo imaginário. O outro, que sofre, é meu/teu irmão. Com ele enfrentaremos a classe dominante. Com ele destruiremos o capital.
Se eu o renego, se queimo suas roupas, se maltrato seus filhos, estou dando linha para os que nos temem. Esses que sabem, que se estivermos juntos, ficamos mais fortes e podemos mudar o mundo. Por isso nos dividem e nos afastam. Não vamos temer o migrante, o que caminha, o que foge, o que procura vida melhor. Vamos travar com ele aliança e virar o mundo “patas arriba”.
O fronteiriço não pode erguer cercas, nem muros. O fronteiriço, por conter tantos, tem de ser ele mesmo espaço de comunhão.
Por fim, o fato é que nós, os trabalhadores, somos todos fronteiriços, sempre à beira de algum alambrado. E, como diria Victor Jara, é tempo de desalambrar.
Elaine Tavares é jornalista, cofundadora da Revista Pobres&Nojentas e da Rádio Campeche e faz parte do Instituto de Estudos Latino-Americanos /UFSC