Por Verônica de Souza Santos, para Desacato.info.
Hotep, família!
Estive sumida nos últimos meses, mas estou envolvida numa rotina que atinge desde filhos, família, cuidados com a espiritualidade até doutorado e assumir função de gestão no emprego. Tantas atividades têm me feito pensar sobre o labor para uma mulher preta nesses tempos e todos os ônus e bônus (e suas nuances). Olha eu já dando spoiler do próximo texto…
No final das contas, percebo que vir aqui e tecer uma rápida reflexão com vocês é uma alternativa para desopilar de tantas demandas…
Hoje, o que me fez correr para cá e dialogar um pouquinho foi um fato ocorrido na última semana e que alcançou os primeiros lugares como tema nas redes sociais. O caso de violência sexual envolvendo o jogador Robinho.
Quem me conhece sabe que eu defendo que toda e qualquer pauta envolve o recorte racial. No futebol, não seria diferente… Não sou nenhuma expert no assunto, tô bem longe de ser, na verdade… Mas com esse fato, muita coisa envolvendo a cor da pele me trouxe à baila algumas reflexões…
Robinho carrega uma trajetória semelhante à de muitos jogadores brasileiros: homem negro, retinto, com família de origem bastante humilde e o qual ascendeu socialmente através do futebol. Sua habilidade de atleta e seu desempenho nos gramados o levaram para países estrangeiros e lhe deram uma projeção mundial. Como muitos jogadores, Robinho foi ídolo e ainda o era, até o veredicto da justiça italiana sobre o caso de violência.
Não estou aqui para defendê-lo. O caso me entristece porque Robinho é um homem negro e, assim como quando ele ascende e tem seus momentos de glória eu vibro e me sinto gloriosa também, quando ele sangra, é como se eu estivesse sangrando. A comunidade negra ainda caminha para entender que somos parte de uma sociedade bastante complexa. Ainda não aprendemos a vibrar com as vitórias um dos outros como se fosse nossa. Mas sentimos duramente quando um de nós erra. Nessa sociedade, quando um preto erra, todo o grupo é penalizado. No caso de Robinho não foi diferente. E esse episódio levantou novamente muitas poeiras incômodas aos nossos olhos…
Imediatamente após a notícia fortemente veiculada pelos grandes meios de massa, uma onda de linchamento recaiu sobre o, até aquele momento, jogador do Santos. Sem perder tempo e, com as devidas justificativas, categorias mais diversas pressionaram clube, patrocinadores e o próprio atleta e cada um, à sua maneira, reagiu. É uma situação tão complexa que vou tentar esmiuçar aqui com vocês e preciso de ajuda, solicitando a atenção de todos que me lêem…
Alguns movimentos exigiram dos patrocinadores uma atitude e a retirada de patrocínios veio em agressivo efeito cascata. Primeiro um, sem nem acordo, em seguida os demais num contexto de ameaça. Far-se-ia necessário que o clube esperasse as empresas reagir? O clube não sabia da situação pretérita do jogador? Aceitou o jogador confiando na inércia intelectual da sociedade brasileira ou desconhecia do fato? Mas se pontuamos isso temos uma nova prerrogativa: quando a cor é fator de corte para pensar o futebol brasileiro? Isso é ponto para outro texto, mas por ora continuemos o raciocínio… E o jogador? Este que declinou em todas as armadilhas fomentadas pelo discurso da supremacia.
No momento em que Robinho publiciza o fato, sua declaração pode ser interpretada como culpa, ainda que o processo esteja correndo, e permita recurso. Mas qual a sua reação? Atacar à feliz, nunca infeliz como o próprio atleta cita, existência do movimento feminista existente há décadas no Brasil. Há que agradecer aos movimentos sociais por tantas lutas empreendidas e vitoriosas em razão deles. Atacar um movimento que combate práticas de uma branquitude, composta por indivíduos de extrema direita que, diariamente, a partir de seus poderes parlamentares, nos negam a existência é como aceitar a foice no pescoço. Quando os movimentos sociais exigem que a punição aconteça, eles também estão exigindo que aprendamos a nos proteger e nos cuidar para que continuemos existindo. Porque, Robinho, para essa supremacia, você é o alvo que precisa desaparecer! Você faz parte da categoria que perpetua a espécie! Por isso, Robinho, quando você sangra, eu, mulheres e homens pretos, sangramos juntos. E há que saber que o movimento feminista tão duramente criticado por você é o mesmo que defende o abolicionismo penal, tal como nos aponta a filósofa Ângela Davis. Gostaria de ter mais tempo para falar disso aqui, me estendo em outra oportunidade; porém, em linhas gerais, é difícil olhar para um lugar de maioria preta e entendê-lo como aquele lugar sendo para pessoas pretas, uma vez que se torna um lugar de vilipêndio. Se houver um lugar, não é esse! Há uma complexidade em torno da questão carcerária, especialmente no Brasil, e isso também precisa ser discutido.
Mas não é pra te atacar que fiz esse texto. É para refletir como a cor é um fator de cisão para pensar quaisquer situações nesse país. Aliás, se formos discorrer sobre a questão dos direitos humanos devemos ainda compreender que os brancos é que historicamente os denegam. Lembremos que onde eles não levaram a espada, levaram a cruz para colonizar e destituir a identidade daqueles que eles consideravam aquéns. Somos mais duros quanto ao desrespeito dos direitos humanos e fazemos a lei prevalecer, porém exigimos a manutenção destes e a branquitude, como ela lidou com os DHs ao longo da História e até hoje…?
A justiça italiana que condena o Robinho é a mesma que julga o Cristiano Ronaldo. O que temos de diferente aí? A imprensa italiana que traz o fato do Robinho é a mesma que abafa o episódio com o jogador português. Inclusive para o jornal italiano Tuttusport, à época que, em caráter de um desserviço, vai dizer que CR7 jamais cometeria o crime de estupro, quando cita “jogador fenomenal e tão correto no campo que nos leva a pensar que ele também é assim fora de campo” . Se fôssemos fazer esse tipo de associação, as estruturas sociais não estariam tão vulneráveis e inchadas, não é mesmo?
Naquele momento, a gravidade do crime do CR7 não pesou para os meios de massa e as críticas feitas em contrário ao silêncio perante o crime, tratado o tempo inteiro como possível e nunca como fato, não foram suficientes para tirar do jogador d’além mar o prestígio, a fama, os contratos milionários e potência midiática que ele ainda exerce frente a qualquer marca. Ora… O Ronaldo português é o tipo “boa aparência” (leia-se: branco!), impossível de ser concebido como alguém que deva ser preso por tal crime. E taí, na moda…
Ah, mas e no Brasil? É diferente? Não sei, mas não posso esquecer daquele goleiro, (branco!) que atuou em times do nordeste e sudeste, acusado de violência doméstica, o caso foi para as redes, a vítima foi silenciada, não houve aquela comoção midiática, e está aí contratado, jogando e a mídia esqueceu, né? A mesma mídia que, dentro do seu discurso racial, classista, averso aos times nordestinos, sabe selecionar os seus jogadores para categorias especifícas… E eu lembrando disso… Outro dia, enquanto lia Racismo Linguístico, do professor Gabriel Nascimento, produzi um texto que dialogava esses campos discursivos no futebol. Impossível… Impossível não olhar para essas questões e não pensar no recorte racial… Por que será?
E o que a imprensa brasileira faz? Chamada de repercussão em todos os grandes veículos de massa! Comentaristas que nos convidam a refletir a partir de uma oralidade bem estruturada que não é a favor da absolvição do jogador, que a punição é urgente e necessária, convidando a sociedade a fazer um levante de linchamento ao personagem coadjuvante da história. No entanto, esse comentarista que defende essa “justiça” ao fato é o mesmo que senta numa bancada de homens brancos para discutir futebol e não estranha o fato de ali não haver um comentarista negro, um técnico negro, um time de futebol de região majoritamente NEGRA! Esse mesmo comentarista cujo sobrenome nos traz tristes memórias é aplaudido pela branquitude de fingir se preocupar com a população negra, pobre, periférica, mas faz trocadilhos infames com a nossa história. Isso é racismo! Isso também é racismo!
Quando trago o jogador para o centro do debate. É sobre isso que quero falar. Olha quanta coisa envolve a condenação do jogador Robson de Souza! Reitero: se decorrido em instâncias, a punição tem de acontecer! Mas junto a ela é necessário que punam todos os elementos que contribuem para que essa punição deixe de ser anos de reclusão e se torne prisão perpétua ou pena de morte. Não para o jogador, mas para a comunidade da qual ele participa, querendo ou não. Em outras palavras, o caso Robinho gera duas condenações: os anos de reclusão ao jogador e a comunidade negra que paga até o dia do seu último suspiro por ser preta. Ou então, uma supremacia que determina que somos, nós, homens e mulheres pretos, que devemos desaparecer. Estamos diante de uma situação em que um determinado grupo determina quem deve morrer, salvaguardando todos acepções possíveis ao conceito de morte.
Sem utopias, a minha luta e de muitos dos meus não é algo que eu acredito que possamos usufruir nesta geração dos resultados, mas para que eles cheguem para os meus filhos, meus netos, meus bisnetos. Eu sei que a luta é diária e constante. No entanto, é a hora de reivindicar que parte dessa nossa agenda seja exigir que a supremacia branca que, subjetiva e objetivamente, se apropria de casos como o do jogador, para exercer o seu mais profundo ataque racista, seja coibida. Não é possível que aceitemos essa onda de violências, camuflada de discursos de combate, faça dos nossos corpos alvos de suas armas mais letais.
Ah! O personagem principal continua sendo o racismo! E, enquanto não acordarmos para isso, ele sempre ocupará as narrativas como mocinho e não o vilão da história.
Meu ori saúda o seu ori.
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Mãe de João Victor e Flor de Maria. Doutoranda em língua e cultura pela Universidade Federal da Bahia e professora de língua portuguesa no IFBA – campus Porto Seguro.
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