Sobre Palestina: um debate fraternal, mas necessário, com o companheiro Marcelo Freixo

Por Waldo Mermelstein, de São Paulo, SP.

No dia 12 de setembro, Marcelo Freixo, candidato do PSOL à Prefeitura do Rio de Janeiro, esteve em debate-sabatina com a Federação Israelita do Rio de Janeiro e fez algunscomentários sobre o tema da Palestina. Freixo disse que está a favor de dois estados para dois povos em Israel/Palestina, que acha equivocado o boicote a Israel, incluídos seus símbolos, como a bandeira nacional. Por isso e porque quer se aproximar da esquerda que pensa como ele em Israel, está a favor de parcerias de todo tipo com Israel.

Primeiramente, as críticas que farei não impedem meu apoio a Marcelo Freixo. Reconheço a importância de sua candidatura em oposição aos candidatos que apoiam o governo atual e os que procuram recompor o campo petista pós-impeachment. São ponderações sobre um tema que transcende as eleições e que não são o centro do debate, mas que merecem ser consideradas, inclusive porque dentro do próprio PSOL não são consensuais, talvez nem majoritárias, pelo que conheço. 

A armadilha dos dois estados

Sobre o tema de dois povos e dois estados: é preciso recordar que a Palestina era uma só em 1947, que foi dividida pelo plano de partilha decidida pela ONU – contra a vontade da maioria de sua população-  e que as milícias judias da Palestina expulsaram 80% da população palestina de suas terras e casas, uma verdadeira limpeza étnica segundo os critérios adotados internacionalmente. A metade dela inclusive já havia sido expulsa antes da declaração de independência de Israel, em maio de 1948, quando Israel se formou sobre 78% da Palestina histórica.

Nesses 68 anos, Israel impediu a volta daquela população, apesar de ser um direito reconhecido pela própria ONU. Esta é a origem dos cerca de 5 milhões de refugiados palestinos, alguns vivendo a poucos quilômetros de suas antigas casas. A opressão aos palestinos pelo estado sionista é sistemática, só mudam suas formas. Nas fronteiras de 1948 vigorou por 18 anos um governo militar nas áreas de maioria árabe. A partir daí continuou um regime de discriminação quanto ao acesso aos recursos e aos direitos nacionais. As leis fundamentais do estado de Israel e suas práticas cotidianas lembram o regime do apartheid sul-africano. O direito ao voto não significa que tenham qualquer influência nas decisões do país.

Como disse acertadamente o historiador Ilan Pappe, os palestinos de Israel vivem em permanente “liberdade condicional”. Em 1967, com a ocupação do restante da Palestina, a limpeza étnica continuou e a Cisjordânia está dividida por um sistema de controles militares e já há lá 500 mil colonos israelenses protegidos pelo exército israelense.

Gaza é uma cidade que se tornou um imenso campo de refugiados a partir de 1948 e depois foi submetida ao cerco total (com a conivência de todos os governos egípcios, é claro). É simplesmente a maior prisão a céu aberto do planeta.

É este o regime que a esmagadora maioria das entidades palestinas pede que seja boicotado. Independentemente do estado que se defenda a partir da restituição dos direitos dos palestinos.

O que é o BDS

O movimento pelo Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) tem três focos:  (1) o fim da ocupação e da colonização das terras árabes e o desmantelamento do Muro da Cisjordânia; (2) o reconhecimento da igualdade de direitos para os habitantes árabes palestinos de Israel; e (3) o respeito, proteção e promoção dos direitos dos refugiados palestinos a retornar a suas casas e propriedades, como estipulado pela Resolução 194 da ONU.

O debate acerca da a solução definitiva sobre o tema não condiciona apoiar todas ou algumas dessas reivindicações. Cada uma delas já basta para repudiar um estado que procede dessa maneira. Por exemplo, é ou não uma condição indispensável para qualquer convivência democrática que o estado seja laico e que haja igualdade entre todos os seus cidadãos?

Ainda sobre “os dois povos e dois estados”. Não há nenhuma viabilidade hoje em dia de se estabelecer um estado palestino em 22% da Palestina histórica, sem pelo menos desmantelar as colônias na Cisjordânia e devolver Jerusalém aos palestinos, o que envolve uma luta frontal contra o estado sionista.

Em segundo lugar, Freixo repete o que a esquerda sionista afirma, que é que se trata da disputa de dois movimentos de emancipação nacional. Na verdade, seria o mesmo que dizer que os colonos afrikaners da África do Sul e os negros eram forças similares. A ninguém lhe ocorreria isso, pois seria equiparar opressores e oprimidos, mas infelizmente é o que declaração do Freixo faz (como anteriormente havia feito Jean Wyllys e que tive a oportunidade de comentar).

Mesmo considerando os judeus israelenses como uma nação formada a partir das pessoas que se reivindicam judias e que residem na Palestina há gerações, continuariam sendo uma nação opressora, cujo estado nega o direito básico de milhões de palestinos de voltar para suas terras e propriedades. Isso não significa negar aos judeus israelenses o direito de viver na Palestina, mas não pode ser utilizado para impedir a justa luta pela restituição dos direitos dos palestinos.

A esquerda judaica de Israel

O argumento de aproximar a esquerda judaica de Israel pode impressionar, mas não resiste a uma análise. Tomando o exemplo da África do Sul (ver), qual foi a linha de Mandela? Ganhar os brancos para que lutassem juntos com os negros por um regime não racista, contra o apartheid e não que “dialogassem” com os negros. O único diálogo com um regime de opressão é resistir junto com os oprimidos, o que fizeram, entre muitos outros, Joe Slovo e Ruth First, aliás, de origem judaica, que aderiram ao CNA para lutar contra o apartheid. Os judeus de Israel que são antirracistas, como Ilan Pappe, Gideon Levi, Amira Hass, Miko Peled (ou a brava refusenik Tair Kaminer, presa por repetidas vezes pelo “crime” de se negar a servir o exército e reprimir os palestinos) e outros da pequena minoria de judeus israelenses que ousam se enfrentar com o estado sionista de diversas formas, são os que merecem nossa solidariedade e podem ser aliados de uma visão de esquerda na Palestina.
Aliás, o estado israelense tem ameaçado de forma crescente as ONGs e movimentos sociais que prestam solidariedade aos palestinos. A resposta que devemos dar como movimento de solidariedade é que Israel não pode seguir impunemente com sua política de opressão permanente aos palestinos e é isso que o BDS procura fazer e começa a causar preocupação dentro do estado sionista.

O debate sobre um ou dois estados não pode também ser escusa para apoiar a contratação de empresas, escolas e instituições comprometidas com a ocupação e a discriminação da maioria palestina, dentro e fora das fronteiras atuais de Israel. As Olímpiadas tiveram a participação de empresas israelenses de segurança, que já mantêm convênios com órgãos de repressão como o BOPE.

A opinião dos lutadores contra o apartheid sobre Israel

Para finalizar, a opinião dos lutadores contra o apartheid sobre o sionismo vale a pena ser considerada. Ahmed Kathrada, que passou 26 anos nas prisões sul-africanas, 18 dos quais junto com Mandela, escreveu uma famosa carta para Morgan Freeman, tentando demovê-lo de participar de um evento para arrecadar fundos para a Universidade Hebraica de Jerusalém: “Na sexta-feira passada retornei da Palestina após passar uma semana lá. Para mim, foi a confirmação de um povo que vive nas piores condições do jugo colonial, com Israel como poder colonial, governando em condições de lei marcial permanente. Nasci em uma África do Sul que considerava as pessoas que não eram brancas como seres humanos inferiores. Eu vi avisos em portas de elevadores e de prédios que diziam ‘Proibida a entra de não-europeus e de cachorros’. Eu testemunhei pessoalmente o drama do povo palestino. Eles vivem sob condições de lei marcial permanente. Voltei convencido que Israel é de fato um estado de apartheid. E em certos aspectos é pior do que o apartheid”.

Não por acaso esta é a opinião de quem conheceu o regime do apartheid da África do Sul, que foi muito similar ao movimento sionista que se lançou a colonizar a Palestina: ambos foram protagonizados por colonos europeus que queriam um país para si, mas que tinham como objetivo subjugar e/ou reduzir a população indígena ao seu poder. Só um deles sobrevive até hoje em seus moldes originais.

Fonte: Esquerda Online.

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