Por Elaine Tavares.
Atividade foi promovida pela vereador Renato da Farmácia, do PSOL, e contou com a participação de Cris Tupã e Marcos Karaí, da etnia Guarani.
Aceitei falar hoje aqui na seguinte condição. Primeiro, como uma descendente do povo Charrua, da Banda Oriental, que vicejou junto às duas margens do Rio Uruguai, tanto no lado uruguaio quanto brasileiro. E segundo como alguém que tendo sangue charrua e não renegando a minha condição, tem pautado sua vida na missão de falar aos não-índios sobre a importância de se conhecer as culturas originárias, para que não se reproduzam os discursos discriminatórios e racistas, tão comuns àqueles e àquelas que desconhecem a realidade desses povos. Importante ressaltar que a chegada dos espanhóis e portugueses nas costas de Pindorama não foi um encontro de culturas. Foi uma invasão, violenta e genocida. Mas, hoje, passados mais de 500 anos, os povos originários seguem acreditando, como naquele então, que é possível viver em paz. Apenas não abrem mão de seu direito de ter território e vida digna.
1 – A primeira coisa a dizer é que essa gente – que muito chamam erroneamente de índios – é a verdadeira dona dessas terras. Digo erroneamente porque essas etnias tem nome próprio: Guarani, Laklãnõ Xokleng, Kaingang, Xetá, Charrua e assim por diante. Eram e são povos com história e cultura. Eles aqui estavam quando chegaram os invasores, eram mais de cinco milhões, e seus espaços foram sendo roubados na ponta da espada e na bala do canhão. Cada pedaço de terra onde hoje estão nossas cidades, as propriedades rurais, as fábricas, tudo, era originalmente desses povos.
2 – Não há qualquer argumento plausível para justificar o massacre desses povos. O que moveu os nossos antepassados brancos foi a sede incontrolável de ouro e riquezas. Em nome disso eles invadiram, mataram, estupraram, violentaram e destruíram tudo o que viam pela frente, incluindo aí grandes civilizações. Em nome de um deus único, o deus cristão, e argumentando que os originários não tinham alma, eles roubaram a vida e a terra de todos eles.
3 – Todo esse processo de invasão e violência não se deu sem luta. Os povos originários resistiram e batalharam contra os invasores desde os primeiros anos da chegada deles às nossas praias. Caciques como Hatuey, Guaicaipuro, Tupac Catari, Tupac Amaru, Sepé Tiaraju e tantos outros empreenderam lutas gigantescas na defesa de seu mundo. Infelizmente foram vencidos e tiveram suas terras roubadas.
4 – Mas, se foram vencidos, não foram extintos. Eles sobreviveram e estão aí. Com a instituição do estado nação, Brasil, houve a tentativa de incorporar esses povos sobreviventes a uma única identidade: a brasileira. Mas, isso não foi possível. Não por eles, que sempre foram muito tranquilos na possibilidade do encontro. A dificuldade sempre foi do lado do branco, que sabendo de seu crime, sempre teve medo. Então, a saída foi desqualificar e aviltar. Assim, o indígena, mesmo que vivendo na cidade, sempre foi apontado como alguém ruim, perigoso, preguiçoso, inútil. Essa é a ideologia que venceu. E mesmo aqueles que nunca viram um índio na sua vida, que nunca conheceram as culturas originárias, são capazes de reproduzir essa mentira.
5 – O resultado é perverso. O homem branco destruiu o modo de vida do originário e ao mesmo tempo se nega a conviver com ele. Não quer que ele tenha terra, e lhe nega a possibilidade de ser alguém digno de respeito na sociedade branca. É um beco sem saída.
6 – O fato é que contra todas as previsões, os povos originários não se acabaram e nem se aculturaram. Eles sobreviveram à extinção e se fortaleceram como povo. De cinco milhões na época da invasão a 180 mil no final dos anos 60 do século passado, eles passaram para 300 mil nos anos 80 e agora já são quase um milhão. Contra todas as previsões de desejos eles sobreviveram e cresceram. Por isso, hoje, eles querem de volta seus territórios. Porque ninguém pode ser uma cultura sem território. É o território que determina o modo de viver. Assim que nas culturas originárias eles precisam de espaço para caçar, pescar, nadar, fazer suas batalhas, plantar, enterrar seus mortos, dançar, educar os filhos, fazer coisas que a comunidade branca não consegue compreender porque não é o seu modo de vida. Os brancos podem viver apertados numa quitinete ou morar numa cidade sem mobilidade. Uma comunidade originária, não. Então, porque se nega a eles seu território? Se sabemos que foi roubado? Se conhecemos a história? Por quê?
7 – Os povos originários não querem tirar a terra dos brancos, não querem sua fazenda, sua casa, seu quintal. Não. Eles sabem que já não é mais possível viver aqui nesse espaço, sem a presença dos brancos. Afinal, são 500 anos de convivência forçada. Mas, eles querem um espaço para viver conforme seus costumes e tradições. Um espaço grande, que lhes permita viver de verdade. Seus espaços tradicionais, com água pura, florestas, terra fértil. Esse espaço existe e pode ser ocupado pelos povos autóctones.
8 – Mas, há uma grande barreira nisso tudo: vivemos no sistema capitalista de produção. E, para o sistema capitalista essa proposta de vida dos originários é inconcebível. No sistema capitalista as pessoas existem para serem trabalhadoras, para vender sua força de trabalho a algum patrão. Isso fará com seja gerado valor, e isso será o lucro do patrão. Ninguém ficaria rico se as pessoas trabalhassem para si ou vivessem coletivamente em comunidade. A riqueza só é possível com a exploração do trabalhador.
9 – Por isso, para os que controlam o sistema, o índio é um inútil e tem de ser destruído. Só que o índio não é um inútil. Ele só não quer ser um trabalhador aos moldes do capital. Ele não quer vender sua força de trabalho. Não quer gerar riqueza para uma pessoa que ele nem conhece. Não. O indígena quer viver na sua terra, na sua comunidade, trabalhando para o bem viver de todos os seus, em equilíbrio com a natureza. E por favor, isso não significa que ele queira andar pelado, de arco e flecha, como nos tempos primitivos. As comunidades estão convivendo há 500 anos com o mundo branco, e durante todo esse tempo eles foram obrigados a gerar valor, a vender sua força de trabalho para poder comer. Portanto eles têm direito a todas as maravilhas criadas pela tal “civilização”. Essas maravilhas são deles também. Então não venham com esse mimimi de que índio usa celular, computador e tudo mais. Sim, ele usa. Não parou no tempo. As culturas avançam e o índio não está cristalizado na floresta.
10 – O real motivo da guerra contra os índios hoje é o mesmo que moveu portugueses e espanhóis no final do 1400: riqueza. Se o índio não quer gerar riqueza para o capital, que desapareça. Os grandes senhores brancos que dominam espaços como esse, de poder, não querem que essa gente seja uma cunha de “mau exemplo”, exercitando coisas como trabalho coletivo, terras comunais, equidade, solidariedade, cooperação, amor pela natureza, equilíbrio. Isso é coisa de comunista, dizem. Logo, eliminem.
11 – As poucas terras que ainda estão na mãos dos originários somam perto de 12% do território nacional, ou seja, nada. Mas, para desgraça dos povos elas são também cheias de riqueza: madeira, ouro, diamante, nióbio, água. E o agronegócio, a empresa rural insaciável, quer tudo isso para si. Não apenas a riqueza material que está no solo e no subsolo, mas também a força de trabalho que virá do índio expropriado, que expulso da terra e do seu modo de vida, será obrigado a vender sua mão de obra por troca de nada, como os trabalhadores brancos. Vocês sabiam que os Terena, do Mato Grosso do Sul, vêm como boias-frias para Santa Catarina, na colheita da maça? E que eles ganham pouco mais que nada? Pois é, é índio que o capital quer.
12 – Então, é por isso que pessoas como Caiado, Kátia Abreu e outros de seu tipo, se tiverem de arrasar cada aldeia, cada comunidade, eles o farão. Não há compaixão no capital.
13 – A má noticia, para eles, os poderosos, é que os originários seguem vivos, crescem, se organizam, mantém acesa sua cultura e sua cosmovisão. Mesmo os mais aparentemente integrados tem dentro de si seu núcleo ético-mítico a lhe chamar. E, convocados, estarão nas fileiras da luta por território e pelo direito de ser quem são.
14 – Conhecer esses rápidos pontos já é um bom caminho para os não-índios. No Brasil, na América Latina, nos Estados Unidos, na África, todo dia tem sido dia de índio. Porque essa gente existe, está de pé e em luta, cotidianamente, ainda que a gente não veja quase nada sobre essas lutas nos meios de comunicação. Assim, compreender esses povos e seus mundos é o primeiro passo para o pagamento de uma dívida que ainda precisa ser cobrada. Mas, o que tem de ficar claro é que os povos originários não querem cobrar o terror da invasão com sangue. O que esses povos querem é o seu território e o direito de viverem em paz.
O tal diálogo de culturas que muitos dizem ter existido em 1492, e que não existiu, ele ainda é possível. Mas, para isso é preciso uma mudança de postura por parte dos não-índios. Uma mudança que precisa começar. Já é tempo. Uma mudança que se expresse no respeito ao modo de vida originários, e no seu direito ao território. É tempo do pachakuti, como anunciam os indígenas dos Andes. Quando tudo muda. No 1492 os brancos mudaram a vida de quem vivia aqui. Agora é hora de a mudança acontecer no mundo branco.
Já basta, dizem os zapatistas. Nunca mais o mundo sem nós. E assim é.
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Fonte: Iela.