Sobre História de Taipei. Por Zaza

Ilustração: Zaza

Por Zaza, para Desacato.info.

Existindo poucas autoridades maiores sobre a nossa realidade que Das Kapital, resenhar um filme como sobre o capitalismo é descrever um vinho como “com gosto de uva”. Pode até ser verdade, mas é um salto lógico microscópico, talvez até preguiçoso ou covarde.

Na verdade, é seguro dizer que a maior parte dos filmes comumente denominados assim nunca colocam nenhum sistema de produção e distribuição em cena, só mostram as suas consequências alienadas, e Das Kapital apenas observa com um sorriso malicioso dos bastidores, detrás das cortinas ao lado do palco onde a ação ocorre. Porém existem ainda os poucos filmes SOBRE o capitalismo, poucos pois desenhar artisticamente O Infame Fantasma dentro da arte é consideravelmente difícil, exige um conhecimento material e lógico aprofundado e a capacidade de tornar isso poeticamente palatável, além de um desprendimento das necessidades estéticas e até narrativas de um mundo embebedado pelo existencialismo nietzchiano, existindo realmente raros habilidosos filmes materialistas. Um deles, claro, História de Taipei (Edward Yang – 1985). Apesar do título, não é um documentário sobre a capital taiwanesa, mas ocupa um lugar notável em tal pelo menos sob uma ótica cinéfila.

A Ilha de Formosa, vítima cativa do capitalismo imperialista (e da síndrome de Estocolmo proveniente de sua atração unilateral por ele) produziu desde os anos 80 belos filmes sobre a condição do país, uma espécie de periferia cultural e social economicamente próspera, retratando suas crises de identidade, essa última palavra já batida na descrição das ânsias do cinema taiwanês, por meio de crônicas cotidianas que se conectam intimamente com toda a curta história moderna do país.

Nomes batidos como Yang, Hsien e Liang e algumas ervas daninhas entre os tijolos maiores produziram algumas das mais pungentes histórias da vida comum sob o capitalismo e sua crueldade tanto para com o indivíduo tanto para com uma instituição massiva como um país. Na grandiosa unanimidade cinemática que é a obra de Edward Yang, o Tolstói do cinema, temos um retrato do que é o indivíduo como apenas uma ferramenta do capital pra se manter no topo, suas humanidades subtraídas na equação política, reduzidos a personagens secundários da vida real, seguindo sem rumo a maré que cerca o país insular. Apenas recentemente tal cinema passou a receber a devida atenção ocidental graças em grande parte às restaurações de alguns filmes e claro, não esqueçamos dele, ao orientalismo da internet.

História de Taipei, filme que vive à sombra da magnum opus de Yang, Dia Quente de Verão, é um grande festival de criaturas atormentadas pelas suas realidades m a t e r i a l i s t a s. Tudo começa quando a reformulação de uma empresa de consultoria de imóveis demite Chin inempaticamente. Deixada pra trás, descartada por Das Kapital mas não fora dele, ela se vê atrasada por seu namorado, uma representação objetiva e materializada do passado e a fixação por ele na sociedade taiwanesa. Um jogador de beisebol ultrapassado que planeja viajar para os EUA e tentar a vida nova no novo mundo como empreendedor. Porém, os planos são interrompidos quando Lung usa o dinheiro pra ajudar o pai de Chin, um comerciante trapaceiro. Todas as relações interpessoais em História são notavelmente denotadas pela ação materialista do capital na vida pessoal dos personagens em vez de surgirem de dentro do ser como em uma obra existencialista. O filme ensina didaticamente como nada escapa das realidades imperativas do MUNDO REAL e como a miséria mais pessoal é uma consequência direta ou indireta de alguma mediação econômica distante dos pensamentos de gerações de juventudes letárgicas criadas sob os cuidados de nietzchismos e sartreismos. Chin é uma mulher atormentada pelo seu exterior porque seu interior é fruto do exterior, sua condição existencial e social é fruto da presença iminente do assustador fantasma estadunidense tão nominado no decorrer do filme.

É o que difere a produção de dois trabalhos constantemente superficialmente sobrepostos ao filme de Yang, Millenium Mambo (Hou Hsiao Hsien – 2001) e Vive L’amour (Tsai Ming Liang – 1994), ambos também partilhantes do universo da cidade de Taipei. Enquanto o primeiro é comparado devido a sua gravitação sobre um relacionamento conturbado, Vive se aproxima mais estilisticamente, se aproveitando inclusive dos longos silêncios textuais e distância emocional apresentada nos longos corredores de História. Ambos filmes descritos como sobre o capitalismo e suas consequências que não vão muito além de suas consequências: a modernidade entorpecedora em Millenium e a revolução sexual frustrante de Vive. São filmes em que o papel central é exercido pela comunicabilidade humana, sobretudo sua impossibilidade, e por mais que seja difícil dizer que sua causa está aberta a interpretação quando a câmera enterra a sua cara no concreto e nas luzes da vida contemporânea, ainda é um cinema emotivo, sobre a emotividade, sobre os banhos silenciosos de May Lin e seus choros longos, longe do estoicismo materialista de Yang não que isso necessariamente os diminua.

Além do casal esmagado pelo mercado de trabalho que, assimetricamente, não precisa deles, ainda temos a mãe vítima de um casamento Engelsiano, uma irmã maravilhada com o devir lustroso das vitrines cosmopolitas, um velho amigo que ficou pra trás na corrida meritocrática, os párias sociais, a divorciada, o executivo triste, um ensemble cast de almas penadas no purgatório da vida por onde Chin transita e o filme documenta com perfeição afiada.

Em nenhum momento na decorrência da história Edward Yang se esquece de quem é o culpado de tudo. É um filme cuja lenha única é Das Kapital. Seres humanos não têm agência sobre o próprio destino se não sobre esse maquinário superior na obra de Yang.

Tanto câmera, quanto roteiro são frios como Das Kapital, pintando uma Taipei devidamente corrompida por ele. São poucos os diálogos que povoam o relacionamento de Chin e Lung. São poucas as cores que povoam os corredores longos e geométricos pelos quais os personagens exploram esse mundo labiríntico da pós-modernidade. O andar é a ação principal do filme, uma espécie de pós-diálogo, gestus brechtiano impecável e praticamente onipresente no filme em que mesmo caminhando sobre plena gentrificação se sente um sedento engatinhando no deserto. Desde a sequência inicial até a final o andar é a pulsão principal desse Capitalismo – The Movie. Andar sem rumo pelo labirinto, por entre carros indiferentes bloqueando a passagem. Prova do conhecimento arquitetônico do diretor que chegou a propor uma carreira na área.

Visível inspiração pra Liang, discípulo formal de Yang na segunda onda taiwanesa e seu cinema da ação do silêncio Tchekhoviano, História de Taipei vive como um dos filmes que mais ensanguentam e pulsam a condição humana em seu mais profundo cerne. É SOBRE.

Zaza, um mal crítico, mas um bom escritor.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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