Por Joana Monteleone.
Em São Paulo de 1878, o jornal da cidade, a Província de S. Paulo, anunciava em suas páginas sorvetes, gelos e bebidas geladas servidas por estabelecimentos próprios: as sorveterias. Era anúncio estranho, já que nessa época ainda não existia eletricidade na cidade.
Sem geladeiras, como servir sorvetes e doces gelados? Essa foi uma das perguntas que atormentaram como historiadora da alimentação. Numa tarde de verão, em 5 de fevereiro de 1878, o jornal chamava os fregueses: “Haverá de hoje em diante, ao meio-dia, sorvetes, r. Direita, número 41”. Estranho.
Com a crescente mudança do gosto e dos hábitos cotidianos no século XIX, que trouxe em seu rastro o consumo e a crescente popularização do sorvete, o gosto pelo açúcar, tradicional na cultura portuguesa, não se modificou. Ao contrário, no encontro das frutas brasileiras com gelo, o gosto pelo açúcar se acentuou.
Mas a criação desses novos hábitos cosmopolitas não se restringia apenas à esfera da moda ou da sociabilidade. Com eles, nascia também um diferente tipo de consumo e abria-se a possibilidade do surgimento de diferentes ramos de indústria. A primeira, e mais evidente, a grande difusão do ramo de confeitarias, cafés, hotéis, restaurantes e bares. A segunda, a importação de produtos para serem servidos nestes estabelecimentos e, por fim, viu-se surgir uma indústria nacional voltada para a fabricação destes produtos servidos aqui, que incluiu fábricas de cerveja, de vinho, de águas gasosas e limonadas, de sorvetes e de gelo.
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Já no final do século XIX, começam a ser produzidas no Brasil as caixas geladas e os recipientes para se fazer sorvetes.
A chegada do sorvete no Brasil marcou uma nova maneira de se fazer e de se consumir doces. E, foi a partir de sua disseminação, ao longo do século XIX, que ele se tornou o doce por excelência da belle époque no Brasil.
O sorvete se popularizou com a expansão do capitalismo. E, conforme foi conquistando paladares, abriu caminho para uma nova indústria, que demandava braços para a “colheita” de gelo e, posteriormente, para as fábricas de gelo e sorvetes.
Das geleiras da Nova Inglaterra para os portos do Brasil, do Caribe e da Índia, os cubos de gelo movimentavam homens, máquinas e dinheiro por causa de um produto perecível, que se derretia e se tornava água, um luxo que, no final, acabava se tornando uma commodity, uma mercadoria com alto valor de troca.
Ainda não existiam geladeiras a motor no Rio de Janeiro, quando nem mesmo a iluminação a gás estava plenamente instalada – o que ocorreria apenas em 1854.
O gelo para os dois estabelecimentos cariocas vinha dos Estados Unidos em cubos ou lascas, cuidadosamente embalado em serragem e localizado na parte mais fria dos porões dos navios. Desembarcado, logo era transportado para covas fundas, as chamadas casas de gelo, mantidas sob a terra ainda coberto por serragem. A perda podia chegar a 40% do peso inicial.
Era um sistema caro, mas que se tornara popular quando as navegações a vapor se estabeleceram com regularidade e reduziram o tempo da travessia marítima de longa distância.
A exportação de gelo havia se tornado um dos grandes negócios dos capitalistas americanos. A tecnologia fora desenvolvida no final do século XVIII por Frederic Tudor (1783-1864), um empresário da Nova Inglaterra que investiu tempo e muito dinheiro para numa nova maneira de cortar, embalar e exportar a água congelada no inverno dos lagos perto de Boston.
Tudor havia se aproveitado do fato de que os navios que chegavam com suprimentos vindos de outros lugares, voltavam vazios – ou mesmo carregados de pedras, usadas como lastro. Enchê-los de pedras de gelo era, portanto, uma economia, já que os donos das companhias marítimas faziam um preço especial, muito mais barato, para o gelo da Tudor Ice Company.
A ideia de Tudor deu certo e ele acabou por se tornar conhecido como o “Rei do gelo”.
Ao otimizar a extração de uma mercadoria que já existia na natureza (afinal, os lagos ao redor de Boston ficavam congelados todos os anos desde tempos imemoriais), embarcá-lo em navios e distribuí-lo por cidades quentes que nunca haviam conhecido o produto, empreendimento de Frederic Tudor é quase um clichê do capitalismo: vendia água em estado sólido para quem nunca havia visto algo assim.
Ao longo do caminho o gelo derretia, mas quando chegava ao porto de destino valia muito.
O século XIX e o capitalismo são pródigos em criar novas necessidades. Frederic Tudor trabalhou com uma mercadoria que literalmente derretia e desaparecia, mas poderia valer muito se consumida a tempo, isto é, gelada.
Como a população dos países tropicais nunca havia consumido nada parecido, foi preciso também criar uma demanda por um produto novo, o gelo.
O negócio do gelo de Tudor funcionou e, em pouco tempo, toda uma indústria que vivia da extração de lagos gelados estava formada no norte dos Estados Unidos. Em meados do século XIX, as companhias que vendiam e exportavam gelo passaram a ser tão conhecidas – e sofrer com tanta concorrência – que faziam propaganda de qual era o melhor rio para se tirar o gelo.
Esse tipo de negócio prosperou até quase os fins do século XIX, quando essas companhias passaram sofrer a concorrência cada vez maior das fábricas de gelo. Mas para a história do capitalismo isso já não importava mais. Estava criada uma nova necessidade e uma nova mercadoria, o gelo.
Edição: Rodrigo Chagas
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