Por Douglas F. Kovaleski, para Desacato. info.
O Sistema Único de Saúde (SUS) construiu-se no Brasil a partir da mobilização social com base no movimento estudantil, organizações sindicais, pastorais da igreja católica, partidos de esquerda – dentre eles: PT, PCdoB e principalmente PCB – e docentes universitários do campo da Saúde Coletiva. Um verdadeiro movimento de ampliação da pauta reivindicatória na sua abrangência e na sua base, estabelecendo diálogo entre universidade, movimentos sociais, partidos de esquerda e setores religiosos foi a base desse movimento. Processo singular no país que precisa ser rememorado, valorizado e analisado com cuidado possibilitando avanços no campo das organizações e das políticas sociais.
Por Douglas Kovaleski, para Desacato.info
Para compreender esse fenômeno é preciso perceber a comunhão entre Saúde Coletiva, Democracia, Direitos Humanos e Sociais. União essa que decorre, em grande medida, pela conjuntura de turbulências sociais e efervescência de movimentos reivindicatórios contra a ditadura civil-militar. Paralelamente, foram criados departamentos de medicina preventiva nas escolas médicas, momento de origem também do conceito de integralidade, na raiz da “medicina integral” que permeará toda a proposta da Reforma Sanitária Brasileira (RSB). Essa integralidade é um dos conceitos mais complexos e controversos do campo, que adiante será desenvolvido com maior profundidade, mas que de momento sintetizo como a integralidade do ser humano como um todo em sua dimensão holística, integrada à sociedade caracterizada por um modo de produção social e material da vida.
Evidencia-se assim a amplitude que esta reforma propõe. A RSB não se reduz a uma proposta de política de saúde, mas a uma democratização da vida em sociedade através desta, conformando uma reforma do Estado e uma recomposição da correlação de forças na luta de classes. É um equívoco, portanto, pensar na RSB apenas como política de proteção social ou como reforma setorial na saúde. A RSB sempre pretendeu uma reforma geral da sociedade brasileira. Os grandes lemas da RSB, desde sua origem, foram a melhoria das condições de saúde, que, com base na integralidade, significa melhoria da qualidade de vida repercutindo diretamente nas condições materiais de vida das pessoas, incluindo a redução de desigualdades sociais e a construção de uma nova sociabilidade.
Os aspectos colocados trazem a radicalidade da RSB bem como a dificuldade de sua efetiva concretização. Pois para a condução de transformações radicais dentro de regimes democráticos é necessário esforço hercúleo e paciência histórica. Pois reformas sem negociações só ocorrem em regimes ditatoriais e, ainda assim, se essas reformas não são legitimadas, por meio de negociações democráticas, não há como preservar o conquistado. Há que se considerar também que, no regime democrático, não há conquistas totais ou finais. Uma reforma dessa abrangência nunca termina, é um processo sempre em curso.
Disso decorre um questionamento evidente: a RSB fracassou?
Sabidamente, a relação entre políticas sociais e Estado explicitam a luta de classes e a correlação de forças no certame democrático, eleitoral e representativo. Condição pezarosa de ser abordada no contexto atual, pois o Brasil foi tomado de assalto pelo pensamento neoliberal e ultraconservador caracterizado pelo pragmatismo, pelo desejo de sucesso individual e pela competitividade. A atual conjuntura demonstra algo além do avanço do pensamento conservador na política ou na perspectiva da condução do Estado em suas políticas públicas e políticas sociais. O que emerge é um retrocesso civilizatório, onde o pensamento hegemônico afasta-se da solidariedade, do bem comum e da vida pautada por valores positivos em termos de sociabilidade e do devir histórico de um mundo mais justo, com inclusão social e dignidade humana. Do contrário, aumenta o preconceito a misoginia e a segregação social.
Em tempos difíceis, a direção dessa coluna será o estudo dos avanços e retrocessos colocados pela RSB para que de sua análise crítica derivem aprendizados úteis para o momento de desmonte das políticas sociais e dos direitos humanos em curso. Será possível a classe trabalhadora “defender” os avanços até então conquistados? Ou será o momento de perseguir avanços, como outrora fora conquistados em meio à ditadura civil-militar?
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Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.
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