Por Sônia Weidner Maluf, para Desacato.info.
Considero praticamente impossível qualquer debate sobre a universidade ou sobre projetos para nossa universidade hoje sem que se discuta o contexto do golpe de 2016 e a necessidade de lutar contra esse golpe, contra os desmontes e pelo retorno da democracia. Não querer debater já é de certa forma tomar posição.
No entanto, não vi em todo o processo eleitoral da UFSC em nenhum dos candidatos, essa energia e disposição de, enquanto futuro dirigente máximo da instituição, posicionar-se de forma firme na defesa da democracia – que neste momento, ao meu ver, passa necessariamente pela defesa irrestrita da liberdade de Lula e de seu direito a ser candidato. O Brasil tem hoje um preso político.
Ou melhor formulado, o Brasil tem como preso político um presidente que fez história em relação à educação e à universidade pública no Brasil. Ele não só construiu 18 novas universidades e dezenas de campi e Institutos Federais. Foi nos últimos 13 anos que o ensino superior e a pesquisa viveram seu momento mais farto de recursos. Nunca houve tantos editais de bolsas, de pesquisas, e extensão, de ensino. Laboratórios foram aparelhados, projetos em todas as áreas do conhecimento foram desenvolvidos com apoio dos ministérios da educação e de ciência e tecnologia.
Foi durante esses 13 anos, e particularmente nos governos Lula, que políticas de inclusão e permanência foram aplicadas de forma ampla e profunda, transformando a cara da universidade brasileira. Nunca tivemos a entrada de tantos e tantas estudantes vindas/os de escolas públicas, negras/os e pardas/as, indígenas e quilombolas. Nunca houve tantas políticas de permanência e combatendo a evasão escolar.
Particularmente a UFSC foi beneficiária dessas políticas.
Hoje o parque científico e sua soberania estão em pleno processo de desmonte. Projetos importantes da UFSC estão sem recursos, estudantes que precisam de apoio e bolsas estão em situação de alta vulnerabilidade estudantil, com grande risco de não conseguirem terminar seus estudos. Em dois anos, décadas de investimento na educação e na ciência e tecnologia estão sendo desmontados.
O que os candidatos que chegaram ao segundo turno têm a dizer sobre isso?
É compreensível a dificuldade em enfrentar as grandes questões em um momento de trauma da UFSC com a morte do reitor Cancellier e com as ações abusivas e inconstitucionais da PF e do MPF em nossa universidade. Só não vamos esquecer que as ações abusivas começaram muito antes, em 2014, em uma incursão violenta e injustificada da PF e da PM no campus central, mais precisamente no bosque do CFH.
Mas mesmo entendendo a dificuldade do momento, como é possível discutir projetos para a universidade de forma alienada em relação ao contexto nacional? Que forças terá a instituição para impor suas necessidades, garantir sua missão de produzir um conhecimento voltado à inclusão, à justiça e ao combate às desigualdades sociais?
O grande temor é de um acomodamento à nova cena política e adoção de um pragmatismo institucional que na prática significa (e já significou) o adesismo ao governo golpista e ao que este pretende impor às universidades públicas: a retirada do financiamento público e a gradativa privatização. Esse pragmatismo aparece por exemplo nas propostas de resolver o problema de financiamento de pesquisa com as “parcerias público-privadas” propostas pela atual gestão, que adotou esse pragmatismo perverso desde a primeira hora. Lembro da pergunta que fiz ao pró-reitor de Pesquisa naquele momento em relação a como as áreas de Humanas obteriam financiamento para pesquisa baseadas nesse pragmatismo? O que teríamos para “vender” para a iniciativa privada”?
Mas não acho que seja apenas pragmatismo, de certo modo uma parte importante da UFSC se alimentou dessa perspectiva. Só que nessa parceria não há dúvida de que o privado ganha muito mais do que o público – não há tempo nem espaço aqui para detalhar como e por que isso acontece, mas basta lembrarmos alguns temas, como a utilização quase privada dos recursos de descentralização vindos dos ministérios, que representam em torno de 350 milhões por ano pra UFSC, para se perceber do que estou falando. Quando a gestão da reitora Roselane tentou aprovar o Regulamentação interna da utilização desses recursos, inclusive com a criação de um fundo de pesquisas da UFSC, a oposição no Conselho Universitário por parte dos ocupantes da atual gestão foi tão grande, que levou-se meses para conseguir aprovar essa Regulamentação.
Outro aspecto nefasto para a própria UFSC é a centralidade e o modo como a questão das 30 horas foi tratado neste e no anterior processo eleitoral, reinstaurando na UFSC o velho clientelismo que elegeu e reelegeu toda uma dinastia de reitores (no masculino). Uma reivindicação trabalhista transformada em moeda de troca eleitoral, esvaziando toda e qualquer dimensão programática que poderia ter a discussão sobre qualidade no ambiente de trabalho e direitos. Os mesmos que que fizeram a promessa eleitoreira de 30 horas para todos não escrevem uma linha sequer sobre as contrarreformas trabalhista e da previdência, ou sobre as terceirizações.
Ao mesmo tempo algo muito bonito acontece na UFSC neste momento: as pessoas resistem, se organizam, respondem aos chamados. O CFH teve a coragem de responder às tentativas de censura na UnB criando um Ciclo de Debates sobre O Golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil, com cada sessão lotando o auditório de pessoas de dentro e de fora da UFSC. Acontecem atividades acadêmicas, culturais, políticas, teatrais, musicais, performáticas de todo tipo produzindo representações, análises e propostas para sairmos deste buraco em que o Brasil entrou. É preciso potencializar essa resistência em suas múltiplas formas. Se não resistirmos, tudo só tende a ficar pior, com o congelamento dos recursos para saúde e educação por 20 anos.
Nesse quadro, considero que a candidatura que mais representa uma esperança de mudança e de resistência é a do Irineu, com todo o respeito que tenho por muitos colegas que estão na campanha do Ubaldo, que, no entanto, representa a continuação de um projeto que não respondeu como deveria ter respondido às grandes demandas e necessidades da UFSC e aos desafios que o golpe de 2016 nos colocou.
Irineu reuniu em torno de si diversos setores do campo democrático, progressista e popular da UFSC, cuja unidade cada vez mais se torna premente na defesa da democracia e da universidade pública e para impedir que a barbárie se instale também em nossa universidade.
PS: Gostaria de ter visto algumas das forças que apoiam Irineu fazerem autocrítica do modo como fizeram uma oposição desleal e antidemocrática à reitora Roselane, chegando a queimar um boneco representando-a na frente da reitoria. Uma lembrança triste, feia, mas que deve vir à memória de nossa história recente, quando a misoginia se tornou um instrumento político de manutenção das velhas estruturas e de combate às mulheres no poder – o mesmo instrumento político que garantiu a retirada da Presidenta Dilma. Do mesmo modo, gostaria de ter visto alguns desses apoiadores reconhecerem que vivemos um golpe de Estado e um declínio da democracia no país e que defender Lula hoje, independentemente da cor partidária, é defender a democracia contra a barbárie.
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Sônia Weidner Maluf é antropóloga, jornalista, professora titular da UFSC e pesquisadora do CNPq.