Por Douglas Kovaleski, para Desacato.info.
A seguridade social no Brasil está assentada, conforme a Constituição federal de 1988, sobre o tripé: Saúde, como direito de todos, Previdência, de caráter contributivo, e Assistência Social, para os que dela necessitarem. Dessa forma, a boa saúde se estabelece como uma condição social necessária para uma vida digna. De maneira complementar, a assistência em saúde passa a ser um direito de todos e um dever do Estado que se configura de forma a prestar estes serviços.
Essa estruturação dos direitos sociais no setor saúde leva em conta o entendimento de que a saúde não pode ser vista apenas como acesso a serviços de saúde – como Unidades Básicas de Saúde, Hospitais, etc – mas principalmente como resultante das condições materiais de vida como alimentação, emprego, renda, moradia, lazer, transporte dentre outros. Sendo assim, a manutenção de uma boa condição de saúde está mais atrelada à estrutura política e econômica do que ao acesso aos serviços de saúde e do que às decisões individuais, conhecidas como estilo de vida.
O estilo de vida toma lugar exagerado na educação em saúde na mídia atual, pois coloca as escolhas individuais em primeiro plano, ao passo que relega a segundo, plano a renda, o número de filhos, o tempo de deslocamento de casa até o trabalho, por exemplo.
O estímulo demasiado à compreensão da saúde como resultado de suas escolhas individuais culpabiliza o indivíduo com relação ao seu adoecimento e ao mesmo tempo estimula o liberalismo em detrimento das coletividades e da construção de uma consciência de classe entre as pessoas. Sendo assim, se faz necessário perceber como algumas medidas tomadas no campo da política interferem na vida e na saúde das pessoas. Neste texto, trataremos de alguns aspectos da Reforma da Previdência e seus impactos na saúde coletiva.
Em dezembro de 2016, o Governo federal, por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287/2016, apresentou projeto de Reforma da Previdência, que, se aprovado, criará novas regras de idade e tempo de contribuição do trabalhador. Se as novas regras passarem, a aposentadoria será concedida aos brasileiros a partir dos 65 anos. Além disso, para adquirir esse direito, o trabalhador deverá ter contribuído por, no mínimo, 25 anos. No caso das mulheres, a idade mínima é de 62 anos.
Uma primeira falácia diz respeito à própria forma como se encara a seguridade social. Ela não pode ser vista como uma questão técnica, atuarial. É uma questão política. Não há decisão técnica, mas política. Outra visão equivocada é sobre o envelhecimento da população brasileira, encarado como um problema. Afinal, precisamos entender um pouco melhor o orçamento federal. A Previdência Pública não é o maior gasto. O gasto com a previdência é o segundo maior, com algo em torno de 25% do orçamento federal. A maior fatia está no pagamento dos juros e amortização da dívida pública.
A proposta de Reforma da Previdência (PEC nº 287) exclui os segmentos mais vulneráveis da população da proteção previdenciária e, fundamentada em pressupostos discutíveis, anuncia um caos a ser produzido pelo próprio governo. No caso da Previdência o retrocesso foi institucionalizado e agravado pela legislação que estabeleceu que somente as contribuições incidentes sobre salário e folha seriam arrecadas pelo INSS, o que condiciona a receita ao cenário econômico. Se o desemprego aumenta e a informalidade prevalece, as receitas despencam, aprece assim o déficit.
Contraditoriamente o remédio anunciado pelo governo é o produtor da crise previdenciária. A austeridade fiscal, somada ao desinvestimento nas áreas sociais e ao processo de terceirização de serviços públicos, em grande medida, anula a possibilidade de a Previdência se estabelecer.
Para sustentar o discurso do rombo da Previdência, o governo omitiu uma série de receitas. Por exemplo, só se computam os valores de empregados e empregadores nas receitas da previdência, deixando de mencionar todas as outras fontes de receitas estabelecidas pela Constituição; ainda, não se faz referência ao montante retirado pela DRU [Desvinculação de Receitas da União], pois em 2014, a DRU retirou R$ 63 bilhões da Seguridade. Há que se contar também as desonerações de impostos, contribuições sociais e folhas de pagamento das empresas, que totalizou apenas em 2018 R$ 280 bilhões.
Ocorre uma ampla intensificação da propaganda contrária ao sistema de proteção social estabelecido pela Constituição de 1988. Propaga-se a essa ideia de que tudo o que vem do Estado é ruim, e que o mercado é que funciona.
Segundo o Ipea, a mulher trabalha, em média, quase seis anos a mais que o homem – quando se leva em conta o de trabalho doméstico. Ou seja, a premissa da reforma de que homens e mulheres devem ter idades iguais para se aposentar é injusta.
O tipo de trabalho desenvolvido também deve ser levado em consideração, pois o trabalhador braçal apresenta enorme desgaste físico ao longo da sua vida laboral. Outro aspecto importante é a crise econômica do país e a oferta de empregos: se a reforma vai prolongar a vida ativa das pessoas, é preciso garantir que haja atividade para essas pessoas exercerem.
Outro aspecto central no debate da reforma da previdência é quando percebemos a previdência dos funcionários públicos e dos funcionários da iniciativa privada, o que demonstra sim um déficit na primeira e superávit na segunda. Ainda assim, é preciso separar o joio do trigo entre os funcionários públicos, pois um pequeno grupo de servidores de altas aposentadorias e pensões ligados ao executivo, judiciário e militares fazem um verdadeiro rombo nas contas públicas. Interessante perceber que são justo esses cargos que mantêm intocáveis seus benefícios.
No entanto vivemos no país das desigualdades sociais, onde em várias regiões do país, a expectativa de vida é 64 anos. Aposentadoria aos 65? Trabalhadores das regiões Norte, Nordeste tem expectativa de vida menor que o trabalhador da região Sul, Sudeste.
Para o cidadão conseguir se aposentar terá que contribuir mais. Sem estudos e qualificação, a sua carga horária aumenta. Sem direitos ganha menos. Com trabalhos repetitivos aumenta o estresse e adoece por conta de acidentes, agravos em doenças crônicas ou novas desenvolvidas. Sem tempo para se cuidar, ou mesmo que o consiga, como no caso de ficar desempregado, como cuidará de sua saúde tendo menos recursos?
Esse trabalhador sendo mais exigido adoece mais, procura mais o SUS, no entanto o SUS está sendo sucateado dia após dia, tendo seus recursos já reduzidos, com profissionais desvalorizados, sem investimentos significativos. Enfim, esta equação injusta para o ajuste da previdência, é uma conta que fecha negativamente, com impacto direto à saúde do trabalhador e cidadão brasileiro.
Precisamos barrar a Reforma da previdência, pois ela faz mal à saúde dos pobres e beneficia os bancos e os mais ricos. Chega de injustiça, a reforma da previdência de Michel Temer é uma cilada.
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Leia mais: Sobre a saúde pública na era Temer: os ataques à classe trabalhadora
[avatar user=”Douglas Kovaleski” size=”thumbnail” align=”left” link=”file” target=”_blank” /] Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.