Por Marcelo Da Silva Duarte.
Não é a primeira vez, com efeito, que o governador Tarso Genro [RS] falseia a verdade em nome do cinismo pragmático que orienta a contraditória posição do governo brasileiro na questão palestina – por um lado, o Brasil apoia a existência de um estado palestino livre e soberano, mas, por outro, mantém, sem restrições, relações comerciais com Israel que “sustentam a impunidade dos crimes cometidos contra o povo palestino” e, por conseguinte, inviabilizam “a cobrança do cumprimento às normas estabelecidas pela ONU para proteção aos palestinos“, exatamente a condição para a existência daquele estado.
É a primeira vez, contudo, que o faz de modo tão servil.
De fato, “a colaboração na área de defesa é uma pauta nacional“, como afirmou o governador em entrevista ao Opera Mundi. O RS está, ainda segundo Genro, cumprindo “etapas e diretrizes estabelecidas pelo Governo Federal” em sua Estratégia Nacional de Defesa [Decreto nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008], que tem como uma de suas diretivas o fortalecimento do setor espacial, considerado de importância estratégica.
O memorando de entendimento assinado entre o Governo do Estado do Rio Grande do Sul e a AEL Sistemas , subsidiária da Elbit Systems, é o primeiro passo para a criação do Polo Tecnológico de Sistemas Espaciais gaúcho, programa pioneiro na América Latina que pretende fomentar e contribuir para a descentralização e a autossuficiência do setor no Brasil.
Tudo isso está conforme à Estratégia Nacional de Defesa brasileira. De acordo com ela, o complexo tecnológico e científico sediado em São José dos Campos continuará a ser o sustentáculo da Força Aérea Brasileira e de seus projetos futuros. Entre seus imperativos estratégicos encontram-se o estreitamento dos “vínculos entre os Institutos de Pesquisa do Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA) e as empresas privadas” e a promoção do ”desenvolvimento, em São José de Campos ou em outros lugares, de adequadas condições de ensaio“, o que é, ainda segundo constatou o planejamento que definiu essa Estratégia, enfrentar o “problema da vulnerabilidade estratégica criada pela concentração de iniciativas no complexo tecnológico e empresarial de São José dos Campos” e preparar a “progressiva desconcentração geográfica de algumas das partes mais sensíveis do complexo“.
É nesse contexto, portanto, que se insere a criação do referido Polo Tecnológico de Sistemas Espaciais gaúcho. Daí o compromisso assumido pelo governo Tarso de “ampliar as capacitações e infraestruturas da Fundação de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (Cientec) e do Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec)“.
O setor espacial é, ainda segundo essa Estratégia, um dos essenciais para a defesa nacional. Dentre suas prioridades estão o projeto e a fabricação de veículos lançadores de satélites e o desenvolvimento de tecnologias de guiamento remoto, sobretudo de sistemas inerciais e tecnologias de propulsão líquida, bem como o projeto e a fabricação de satélites, sobretudo os geoestacionários, para telecomunicações, e os destinados ao sensoriamento remoto. Também são prioritários os projetos de desenvolvimento de tecnologias de comunicações, comando e controle a partir de satélites, com as forças terrestres, aéreas e marítimas, inclusive submarinas, para que todas se capacitem a operar em rede e a se orientar por informações deles recebidas.
Nesse sentido é que o “Comando de Defesa Aeroespacial Brasileiro (COMDABRA) será fortalecido como núcleo da defesa aeroespacial, incumbido de liderar e de integrar todos os meios de monitoramento aeroespacial do País“.
Disso se segue, necessariamente, que é falso que “não se trata de um polo aeroespacial com finalidade bélica, mas sim para desenvolver tecnologia para que o Brasil possa se tornar autossuficiente no lançamento de satélites“, como afirmou Tarso Genro ao RS Urgente, uma vez que o sistema de monitoramento aeroespacial do país submete-se ao COMDABRA, núcleo da defesa aeroespacial brasileira. De acordo com a Estratégia Nacional de Defesa, não há projeto na área aeroespacial que não esteja submetido à política nacional de defesa. E mesmo toda a política pública de Ciência, Tecnologia e Inovação para a Defesa Nacional “tem como propósito estimular o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação de interesse para a defesa nacional“, o que ocorrerá “por meio de um planejamento nacional para desenvolvimento de produtos de alto conteúdo tecnológico, com envolvimento coordenado das instituições científicas e tecnológicas (ICT) civis e militares, da indústria e da universidade“, caso do Polo Tecnológico de Sistemas Espaciais gaúcho.
Ou seja, não há projeto aeroespacial que não se submeta aos Ministérios da Defesa e da Ciência e Tecnologia, a quem cabe, por intermédio do Instituto de Aeronáutica e Espaço do Comando da Aeronáutica e da Agência Espacial Brasileira, promover ”medidas com vistas a garantir a autonomia de produção, lançamento, operação e reposição de sistemas espaciais“.
Resta ao Rio Grande do Sul, portanto, simplesmente assinar embaixo de tudo que o Ministério da Defesa planejar a fim de “ajustar os mecanismos que viabilizem a atração de investimentos nesse setor atrelado à nossa estratégia de desenvolvimento“. Mais do que isso, “nosso estado tem o dever de estabelecer relações com quaisquer empresas em função de seu projeto regional de desenvolvimento” [o grifo é meu], afirmou Tarso Genro, mesmo que isso signifique estabelecer parcerias com uma empresa acusada de “colaboração na construção do muro que segrega os territórios palestinos” e que fornece “equipamentos de segurança para colônias judaicas consideradas ilegais pelas Nações Unidas“.
Isso porque o governador gaúcho não tem problemas para falaciosamente justificar seu conceito de dever. Para ele, como “os Estados Unidos também violaram resoluções da ONU, na guerra do Iraque“, e havia “empresas norte-americanas envolvidas nessa ação“, não há problema algum em se negociar com parceiros de genocídios, uma vez que, grifo, “não é possível fazer opções tecnológicas, nacionais ou regionais, com base nesse critério“.
Ou seja, na lógica do governador gaúcho, o critério ético, essa pequena coisa chamada ética, não vale – aliás, sequer é possível o utilizar – quando você quer convenientemente justificar um erro com outro. Tudo bem você negociar com a maior corporação privada envolvida na ocupação ilegal da Palestina enquanto Israel afirma que não vai “retirar as tropas até a fronteira de 1967 […] reconhecer Jerusalém ou permitir o retorno de refugiados palestinos” e que isso signifique desrespeitar resoluções internacionais, pois embora os EUA também tenham violado ”resoluções da ONU, na guerra do Iraque […] nem por isso as empresas norte-americanas envolvidas nessa ação deixaram de ser parceiras“.
Não é de se estranhar, contudo, a posição do governador gaúcho, uma vez que uma das diretrizes da reorganização da indústria de material de defesa, ainda de acordo com a Estratégia Nacional de Defesa, é a subordinação das considerações comerciais aos imperativos estratégicos, o que implica coisas como “organizar o regime legal, regulatório e tributário da indústria nacional de material de defesa para que reflita tal subordinação“.
Daí não haver contradição, segundo Tarso Genro, em se “condenar a política expansionista de Israel e abrir espaço para a maior corporação privada envolvida na ocupação ilegal dos territórios palestinos“, conforme bem anotou Breno Altmann, uma vez que, segundo o governador gaúcho, “a ética nas relações comerciais mundiais é definida a partir do interesse nacional“.
Bem, se é o interesse nacional que define a ética nas relações comerciais, tudo bem o fascismo ter fornecido apoio material e humano ao nazismo, uma vez que seus projetos nacionais de dominação e limpeza étnica coincidiam. Também não teria havido nenhum problema ético se os Estados Unidos, ao invés de terem concentrado seu esforço de guerra na europa aliada, tivessem, em nome da “solução final” – tomando-a, para fins do raciocínio, como seu interesse nacional -, fornecido material bélico exclusivamente ao nazifascismo, uma vez que interesses nacionais é que definem a ética comercial.
Assim, desde que para o interesse nacional brasileiro seja vantajoso se transferir tecnologia aeroespacial israelense, pouco importa que o bloqueio imposto à Gaza, a ocupação militar ilegal e o expansionismo sionista se constituam, na prática, num projeto genocida, numa “limpeza étnica”, pois é o interesse nacional que norteia a ética nas relações comerciais internacionais. O que importa que empresas israelenses contribuam para o financiamento desse genocídio, se detêm a tecnologia que precisamos?
“Se esse raciocínio valesse – ou seja, se fosse contraditório se condenar o expansionismo sionista ao mesmo tempo em que se o sustenta -, o Brasil não deveria se relacionar com qualquer empresa ou banco do mundo capitalista, pois todas essas companhias estão alinhadas aos interesses tanto econômicos quanto militares de seus países“, finalizou o governador gaúcho.
Ainda bem que muitos não pensaram tal como Tarso Genro de 1939 a 1945. Só assim há um estado judeu com o qual se negociar, ainda que à custa da liberdade palestina.
Fonte: La vieja bruja.