Por Roberto Antônio Liebgott, para Desacato. info.
A pandemia da Covid-19 poderia servir para que se rediscutissem as relações sociais, culturais, econômicas, ambientais e políticas no mundo. O tempo era propício para que se pudessem rever as relações trabalhistas, de produção e consumo. Rever as relações de gênero, culturas, etnias e crenças. De se optar, a partir dos desafios impostos pelo colapso da assistência em saúde, pela priorização do direito universal de acesso inclusivo à saúde pública e de qualidade, distanciando-se da exploração econômica. O momento seria propício para tornar a educação uma ferramenta para construir e pavimentar caminhos de partilha dos saberes, de redescoberta da democracia e de libertação dos fundamentalismos políticos, religiosos e culturais.
A pandemia poderia ter sido o momento de se fazer memória e de se projetar as utopias de um outro mundo possível, focado no bem viver para todos. Mas nada disso houve, até agora. Basta analisar as perspectivas do capitalismo em âmbito internacional. Há uma disputa quase bélica pela descoberta da vacina do novo coronavírus, inclusive com denúncias de espionagem e roubo de conhecimentos.
Os grandes laboratórios se associaram aos governos e receberam recursos bilionários para apresentarem uma vacina e, com ela, lucrarem bilhões de dólares. Países como o Brasil, que terão cobaias entre seus habitantes, só receberão as vacinas após os Estados Unidos, visto que este usou seu poderio econômico para comprar, de alguns desses laboratórios, todas as doses produzidas ainda este ano. Foi assim com a compra de medicamentos, de respiradores e de equipamentos de proteção individual.
A ambição é indicador de que se pretende ampliar a capacidade de dominação da economia e do mercado financeiro. Essa disputa pela vacina é similar àquelas pelo controle da tecnologia 5G entre as grandes empresas de comunicação. Quem dominar essas duas tecnologias terá o mundo nas mãos.
Outro aspecto da conjuntura mundial é o direcionamento do mercado capitalista para o meio ambiente. Há uma aparente preocupação com a proteção das florestas, especialmente no Brasil, onde a devastação é avassaladora. Os grandes empresários forçam o governo a impor regras para que se explore de modo menos perverso os recursos da natureza. Na verdade, pretendem estabelecer uma espécie de reserva ambiental de mercado. Mas, no Brasil, lida-se com um esquema estatal associado a exploradores, que têm como intento a destruição pelo lucro farto e fácil.
Enquanto a pandemia ceifava vidas, com famílias perdendo seus pais, mães, filhos, avôs e avós, a trupe se encarregava de pôr em prática a “sugestão” do antiministro do meio ambiente. As palavras de Salles, que afirmou ser necessário aproveitar o “momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de covid, e ir passando a boiada, mudando todo o regramento e simplificando normas”, se concretizaram nos últimos meses: ganharam forma em 196 atos e 26 medidas administrativas do governo federal, que tiveram por finalidade o desmonte de políticas públicas de preservação do meio ambiente. O Brasil segue sepultando os mortos pela covid-19 – já passamos de 90.000 – e suas florestas continuam em chamas, mas para a trupe, covid-19 é “gripezinha” e o meio ambiente, “coisa de comunista”.
A política indigenista do governo brasileiro é outro tema de relevância, dada a ofensiva criminosa das medidas em curso. O presidente Bolsonaro, denunciado no Tribunal de Haia por crimes contra a humanidade e caracterizado como genocida, aponta três perspectivas para sua intervenção indigenista: a desterritorialização como regra na política; a desconstitucionalização dos direitos; a integração, com ações políticas e administrativas a serem adotadas na relação com os povos e comunidades indígenas. O general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional do governo, chegou a dizer que deveriam ter resolvido o problema dos índios há 50 anos. A solução de antes, o genocídio, parece ser a solução de hoje para o atual governo.
No atual contexto há uma sinalização importante para os povos, e esta vem do Poder Judiciário. Há uma tendência, no âmbito do STF, de se assegurar a manutenção dos direitos indígenas no sentido de garantir-lhes o livre exercício das diferenças étnicas e a demarcação de suas terras tradicionais; porém, ainda não se sabe ao certo que regramentos serão apontados no julgamento do Recurso Extraordinário de Repercussão Geral no STF.
Quanto à conjuntura política brasileira, há algumas certezas. Existe uma tendência de fortalecimento do conservadorismo e fundamentalismo nas relações sociais, culturais e educacionais, perspectivas que estarão no núcleo discursivo durante as disputas eleitorais; Bolsonaro tenderá a ser o propagador dessas disputas e se fortalecerá como opção de continuidade desse modelo de governança. Por outro lado, o neoliberalismo exigirá que as reformas sejam amplificadas para maior lucratividade dentro do Estado; os partidos políticos serão ainda mais subservientes ao mercado, para garantir-lhe lucros fartos, e relativizarão as questões cotidianas que serão controladas pela política estatal conservadora; e as forças progressistas terão de redescobrir a unidade e a centralidade das lutas para reverter a tendência da economia e da política. Mas, ao que parece, essa tarefa é, no campo popular, ainda mais difícil de se concretizar.
Pelas respostas das sociedades e dos governos no mundo, a pandemia deixará rastros de morte, de dor, de sofrimento, de insegurança, de injustiças e não sobrará espaço para repensar as relações entre as pessoas e povos. A tendência, pelo que se vê, é de um terrível processo de aprofundamento do capitalismo, no sentido de aumentar a exploração e a dominação pelo sistema financeiro, de produção e do consumo.
Porto Alegre, RS, 31 de julho de 2020.
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Roberto Antônio Liebgott é Missionário do Conselho Indigenista Missionário/CIMI. Formado em Filosofia e Direito.