Há muito tempo os seres humanos vêm se debatendo sobre a questão da existência ou não existência de um ser supremo espiritual, que seria o criador e regente do Universo e de tudo e todos nele inseridos. De minha parte, considero que, independentemente de ter ou não crença religiosa, o que de fato tem relevância são os propósitos e as ações com os quais as pessoas atuam em suas vidas.
O que me impulsa a ter o pensamento que acabei de expressar é a convicção de que Deus, para os que creem que ele de fato existe, deve necessariamente significar uma força (física, espiritual, mental, etc.) inteiramente comprometida com a prática e a busca do bem, da justiça, do amor e da solidariedade entre todos, sem discriminações. Portanto, seria totalmente inconcebível que Deus servisse de inspiração para a prática de maldades, como o racismo, o egoísmo, a opressão dos mais humildes e a priorização dos ricos e poderosos, em detrimento dos pobres e necessitados. Se permanecermos abordando o tema em termos de religião, a figura central que poderíamos associar a estas qualidades negativas é a do diabo.
De todos os seres vivos de nosso planeta, os humanos são os únicos capazes de raciocinar. Diferentemente do restante dos animais, os seres humanos podem analisar criticamente todas as mensagens que chegam a nós. As pessoas imbuídas de sentimentos religiosos costumam ver nesta nossa exclusividade a mais grandiosa demonstração do poder criativo de Deus e uma prova de que fomos criados à imagem e semelhança do próprio Deus. Por sua vez, os não religiosos entendem este fenômeno como um maravilhoso caso da evolução natural da vida humana. Seja qual for o ponto de vista que adotemos nesta disjuntiva, é impossível não reconhecer a fundamental importância desta capacidade de refletir sobre a realidade que nos circunda e, a partir desta reflexão, ir à procura de respostas para as incompreensões com as quais nos deparamos.
A inteligência humana é este poder de processar os dados captados por nossa mente através de nossos órgãos sensoriais e analisá-los no intuito de encontrar respostas para os muitos questionamentos que temos. O raciocínio é, de fato, o grande diferencial positivo que nos coloca num patamar superior a todos os demais seres vivos da Terra. Em outras palavras, aproveitar as dúvidas para refletir sobre as mesmas e extrair as conclusões apropriadas é o mais significativo dos dons presentes nos seres humanos. Assim, ninguém que acredite que nós fomos criados por Deus com base em sua imagem e semelhança, deveria tentar impedir que fizéssemos uso desse fundamental e exclusivo recurso. Isto equivaleria a ir contra os próprios desígnios de Deus.
Desta maneira, que uma pessoa de fé argumente que é o diabo que tira proveito de nosso recurso ao raciocínio para eliminar dúvidas me parece um tremendo absurdo e uma ofensa ao Criador, visto que, por lógica, ao raciocinar, tornamo-nos menos vulneráveis a todos os tipos de enganações e artimanhas provenientes de quem quer que seja, do diabo ou de quaisquer outros hipócritas e falsários. Na verdade, seriam estes os que mais se beneficiariam por não recorrermos a nosso senso de crítica.
Mas, como saber qual é o verdadeiro propósito de Deus? Esta pergunta faz sentido, já que muitos daqueles que apelam para seu nome defendem propostas diametralmente opostas à busca do bem, da justiça, do amor e da solidariedade entre todos, sem discriminações, ou seja, de quase tudo aquilo que costumamos considerar como sendo características de Deus.
Bem, para quem pretende seguir os ensinamentos de Jesus, seja por um viés religioso, seja pelo social, não seria muito difícil responder a esta indagação. Como sabemos, Jesus não deixou obras escritas com as quais pudéssemos nos orientar. Por isso, a maneira mais consequente de avaliar qual seria seu posicionamento em relação a certas questões do presente é estudar com atenção a maneira como o próprio Jesus se comportava em seu momento quando se defrontava com situações semelhantes às que vivenciamos nos dias de hoje.
Em primeiro lugar, deveríamos ter em mente quais eram as prioridades entre as preocupações de Jesus. Com base naquilo que conhecemos de seu comportamento ao longo de sua vida, deveríamos começar por nos perguntar qual era o grupo social a quem ele mais se dedicava. Seriam eles os ricos ou os mais pobres? Algum seguidor sincero de Jesus realmente tem alguma dúvida quanto a isto? Há alguma passagem em sua vida na qual ele expresse algo que dê a entender que são os detentores de grandes fortunas os que contavam com sua graça preferencial? Ao dizer que seria mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus, ele estaria sinalizando que os mais ricos tinham recebido sua prioridade, ou teria sido justamente o contrário? Obviamente, todos sabemos que Jesus sempre esteve inteiramente comprometido com as causas e os interesses da população mais carente, nunca com os dos ricos e opulentos.
Mas, se o exemplo de vida de Jesus deixa muito clara sua opção preferencial pelo povo mais humilde, por que alguns empresários da fé que se dizem cristãos insistem em dizer que a riqueza material é uma prova de estar gozando da graça de Deus? A resposta, neste caso, também é bastante simples: os negociantes da fé que dizem isso, na verdade, não tem absolutamente nada a ver com Deus, e muitíssimo menos com um Deus simbolizado em Jesus. Esses comerciantes da religião fazem parte das classes dominantes opressoras. Não passam de hipócritas que visam encontrar apoio entre o povo para justificar a enorme e gritante injustiça social com a qual eles enriqueceram. Como eles não podem dizer abertamente que vivem à custa da exploração das maiorias, recorrem ilegitimamente ao nome de Deus para tentar impedir que os explorados os questionem e tentem mudar a situação.
Por outra parte, é impossível que um seguidor sincero e consciente de Jesus admita a ideia de que Deus tenha um povo escolhido. Aceitar tal proposição seria concordar que Deus é um racista, um nazista, ou um sionista. O racismo é uma qualidade que só pode ser associada ao diabo, jamais a Deus. Por isso, Jesus sempre dizia que seu povo é composto por todos aqueles que praticam a bondade, a justiça e a solidariedade. Para Jesus, pertencer ao povo de Deus não depende absolutamente da origem nacional ou étnica da pessoa. Por exemplo, quando os donos de empresas comerciantes da religião dizem que devemos apoiar o massacre do sionista Estado de Israel contra o humilde e desarmado povo palestino, eles estão defendendo seus interesses materiais e sua associação com o imperialismo estadunidense, e não nada relacionado com Deus ou Jesus. Só gente maldosa e perversa poderia concordar com tamanha monstruosidade. Isso é algo completamente contrário aos ensinamentos de Jesus. O racismo pode ser aceitável para os nazistas, os sionistas e os imperialistas, mas nunca por quem pretende levar Jesus no coração.
Voltando ao ponto inicial, por que os empresários da fé têm tanto pavor de que nos ponhamos a meditar sobre nossas dúvidas? A resposta, uma vez mais, não é nada complicada. Eles não admitem que façamos uso da potencialidade que temos para raciocinar e tirar conclusões com base em nossas reflexões. Os comerciantes da fé não querem que detectemos todas as incongruências de suas pregações inteiramente favoráveis aos grandes exploradores. Eles se comportam como os seguidores do diabo sempre agiram. Empenham-se em impedir que o povo utilize sua capacidade de dirimir suas dúvidas por meio da razão. É por isso que eles procuram nos intimidar, para que não tenhamos coragem de fazer análises críticas de suas postulações. Atuam como agentes das trevas, mas se amparam no nome de Deus, e até mesmo no de Jesus, para iludir os menos avisados.
Os charlatães gananciosos se tornaram bilionários e construíram gigantescos impérios econômicos com base no engano de milhões de pessoas que estão sinceramente em busca dos ensinamentos de Jesus. Esses negociantes espertalhões sabem muito bem que, se seus seguidores se puserem a cobrar explicações para as muitas dúvidas que têm sobre o que é de verdade o caminho proposto por Jesus, eles logo descobririam todas as contradições flagrantes entre esses empreendimentos capitalistas e os propósitos do Nazareno.
É por isso que eles consideram as dúvidas um veneno mortal contra seus interesses de continuar se locupletando com o sacrifício dos mais humildes. Como as dúvidas estimulam as reflexões e, com estas, as verdades tenderão a se revelar, eles desejam impedir que o povo faça uso do maior recurso com o qual estamos dotados: nossa capacidade de raciocinar e lidar com as dúvidas. Esses são os reais motivos que os levam a ter tanto pavor de que emerjam dúvidas entre os seguidores de seus estabelecimentos.
Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
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