Passada a Primavera Árabe, o Egito está mais para Bela Adormecida que para Cleópatra – é o que sugere em entrevista exclusiva a Opera Mundi por email, do Cairo, um dos grandes cartunistas do país, o jovem Ganzeer, autor de algumas das imagens mais emblemáticas da Revolução Egípcia. Detido pelo regime, ele deu a volta por cima, e, depois de espalhar seus desenhos irônicos e ácidos pelo Cairo, ganha agora a atenção de galerias e centros culturais de capitais europeias, reconhecido no mainstream como uma das expressões mais genuínas da onda que varreu o Oriente Médio em 2010, unindo política e arte pop de qualidade.
A visão do jovem artista sobre o momento atual que o Egito atravessa não é das mais otimistas. É como se a Bela Adormecida da nossa história, depois de ter o dedo picado na roca da ditadura e adormecer 30 anos sob o julgo de um tirano, despertasse para um casamento com a democracia, marcado pela euforia do que parecia ser um final feliz. Mas o leitor dessas histórias bem sabe que, findo o livro, a moça do conto cor de rosa passa a viver uma vidinha morninha, num cotidiano de monotonia e frustração.
“A pós-revolução no Egito é muito preocupante. Acho que nós cometemos um erro ao fazer um tipo de meia revolução. Agora, com a maioria da sociedade um pouco cansada dos protestos e de tudo isso, querendo apenas voltar à rotina de normalidade, a Irmandade Muçulmana e os partidos salafistas estão realmente se envolvendo no processo de tomada das decisões que vão moldar a vida no Egito pelos próximos anos. Isso é assustador”, diz.
É como se o povo egípcio tivesse se deitado com a musa peituda da Revolução Francesa – como num quadro de Delacroix -, mas acordasse ao lado de um militar de bigode, que dorme de coturno e toda noite troca o sexo pela leitura fervorosa do Corão. A vitória da Irmandade Muçulmana na primeira eleição livre pós-Mubarak foi como um cinto de castidade na princesa do romance. Agora, as chaves dessa tranca estão nas mãos dos militares e de um obscurantismo religioso que ainda não mostrou sua face inteira. Triste fim, o dessa Bela Adormecida do deserto.
A descrição coincide com uma das obras mais famosas de Ganzeer. Com um apelo erótico apenas sugerido, a chamada “Máscara da Liberdade” mostra um rosto humano atado caprichosamente por cintas semelhantes a um cabresto de cavalo.
[O artista veste a própria obra, “Máscara da Liberdade”, durante manifestação no Cairo]
Apesar das pequenas asas na lateral, sugerindo certa liberdade de pensamento, a cabeça permanece com os olhos vendados e um objeto algo masoquista enfiado na boca. É o cinto de castidade do pensamento egípcio. “Disponível por tempo ilimitado”, diz a legenda.
Mas há solução, aposta o cartunista. E ela pode estar onde menos se espera. “O próximo passo tem de ser inspirar em uma revolução cultural no Egito. Se tivermos produções artísticas de altíssimo nível que atinjam as massas em todo o país, não será possível decisões políticas que contradigam esta nova cultura inovadora. Para que isso possa realmente se tornar realidade, é preciso que sejam tomadas ações rapidamente. Muito dinheiro e estratégia devem ser alocadas para estas produções. Eu estou tentando fazer a minha parte, com meus recursos limitados”, afirma Ganzeer.
Não seria errado pensar que haja um traço exagerado de otimismo e ingenuidade na mensagem acima de Ganzeer … a menos que você saiba quantas montanhas ele moveu na Primavera Árabe, apenas com seus desenhos, com otimismo e com o que muitos poderiam ter chamado também de ingenuidade.
Ganzeer foi responsável pela produção de páginas que se transformaram em verdadeiros manuais de combate para os manifestantes, num momento em que poucos acreditavam que seria possível abalar o regime. Com desenhos esquemáticos e monocromáticos, de fácil reprodução, estes manuais se espalharam pelo Cairo como um vírus. Eles continham dicas de como se proteger de gás lacrimogêneo, como proteger-se de golpes de cacete e … como contra atacar. Os manuais mostravam mapas do centro do Cairo, rotas de fuga, pontos de encontro e outras informações cruciais para os jovens que estavam na linha de frente do movimento.
“Corrente”
“Eu sou apenas um elo, como numa corrente de bicicleta”, se define Ganzeer, nome que significa “corrente” (o nome “verdadeiro” é Mohamed Fahmy). “Os elos mantêm a corrente da bicicleta unida. Por meio dessa simples conexão, a bicicleta pode continuar se movendo, ainda que a corrente não seja o componente instigador do movimento inicial”. É assim que ele define seu próprio papel na Primavera Árabe, quando a coisa toda parecia mais com o prenúncio de um novo dia radiante do que com esse amanhecer nublado de agora, que nunca acaba.
As pedaladas artísticas de Ganzeer encorajaram milhares de egípcios nos dias mais difíceis da Revolução.
O artista chegou a espalhar pela cidade milhares de retratos estilizados de jovens desaparecidos ou mortos pelo regime, tornando visível um drama que, de outra forma, estaria soterrado sob o pânico e o desamparo de vítimas impotentes.
Agora, passado o momento mais tenso, Ganzeer desfruta das consequências agradáveis do relativo sucesso. Sua fama cruzou fronteiras. Na Europa, Ganzeer tornou-se conhecido, com mostras, entrevistas e uma verdadeira onda de culto criada em torno de sua obra.
Brasil
Os ventos do sucesso trouxeram seus desenhos a Porto Alegre e São Paulo este ano, com a mostra “Expressões da Revolução”. Primeiro, o produtor cultural Demétrio Portugal, do Matilha Cultural, realizou em junho uma grande mostra com os desenhos de Ganzeer durante o Festival Democracine, na capital gaúcha. Em seguida, no mês de outubro, “Expressões da Revolução” veio para São Paulo e Ganzeer teve seus trabalhos expostos na Casa das Caldeiras, Zona Oeste da cidade, na cerimônia de abertura do XII Colóquio Internacional de Direitos Humanos da Conectas, que reuniu mais de 60 acadêmicos e ativistas de direitos humanos de 39 países.
Mas Ganzeer sabe pouco sobre o Brasil e outros locais por onde suas obras andam passeando. “Eu conheci apenas o trabalho do (brasileiro e colaborador de Opera Mundi) Carlos Latuff por causa dos desenhos que ele fez sobre assuntos do Oriente Médio. Eu o conheço desde que ele criou um blog com cartuns de apoio à Palestina e todo esse trabalho estava disponível em alta definição para publicação livre. Eu achei aquilo incrivelmente admirável e depois entrei em contato com ele brevemente pelo Twitter. Infelizmente, eu sou bem ignorante sobre o restante da cena no Brasil, mas ouvi que o país tem uma galera talentosa muito louca em arte de rua e quadrinhos e isso é algo que eu devo começar a ver e descobrir em breve”.
A coisa toda alçou Ganzeer e sua obra a um novo patamar. Mas ele diz que continua o mesmo garoto de antes daquela Revolução inesperada, que virou seu país e sua vida de cabeça para baixo. “Talvez eu esteja um pouco ‘famoso’, mas ‘quase rico’, acho que não. Eu ainda luto para pagar meu aluguel todo mês e meu apartamento está longe de ser bem equipado. As restrições financeiras me impedem de poder realizar todos os projetos artísticos que eu gostaria de fazer”, diz. Provocado, ele responde: “Estou definitivamente longe de ser um magnata dos cartuns, ou um magnata de seja lá o que for”.
Fonte: Ópera Mundi.