Por M K Bhadrakumar.*
Durante a reunião do Grupo dos Oito na Irlanda do Norte, mês passado, o presidente Vladimir Putin da Rússia, segundo o diz-que-disse dos bastidores diplomáticos, quis usar o ginásio para exercitar-se, no resort Enniskillen. Não conseguiu, porque Barack Obama já o havia requisitado.
Putin nadando no Lough Erne (Irlanda do Norte) numa folga da última reunião do G8
Nenhum dos dois gostaria de partilhar os aparelhos, e Putin optou por um mergulho e braçadas no gelado Lough Erne, aventura excessiva para os músculos e histamina de Obama. É possível que sejam só bobagens, mas a historieta captura a situação incômoda em que estão, hoje, as relações Rússia-EUA.
Se a ninguém ocorrera que a clara linguagem corporal na reunião em Enniskillen revelava que as relações EUA-Rússia atingiam ali o ponto mais baixo em muitos anos, o caso de Edward Snowden, ex-funcionário e “vazador” de segredos da CIA, mostra que elas provavelmente piorarão ainda mais, antes de darem qualquer sinal de melhora.
Na Irlanda do Norte, Putin e Obama coabitaram numa mesma pequena cidade de veraneio. Segundo recentes indicações, Obama, irritado com a decisão do Kremlin de dar abrigo a Snowden, talvez cancele a visita bilateral a Moscou, em setembro, antes da reunião do Grupo dos 20 em São Petersburgo, que ele mesmo propôs.
As coisas estão mais frias que as águas do Lough Erne…
Por que as coisas chegaram a esse ponto? Em parte, pelo menos, a situação atual foi provocada por Pequim, querendo ou sem querer, quando meteu Snowden num voo da Aeroflot para Moscou, já sabendo que, porque Washington revogara seu passaporte, ele não teria documentos válidos para prosseguir viagem depois que o avião pousasse no aeroporto em Sheremetyevo.
Como Fyodor Lukyanov, figura importante no establishment da comunidade estratégica russa, observou em artigo no jornal oficial Rossiyskaya Gazeta na 3ª-feira,
Os serviços de inteligência da República Popular da China que meteram o americano num avião para Moscou e o convenceram de que estaria melhor lá merecem todos os elogios de seus chefes, porque pouparam a Pequim uma grande dor de cabeça. O resto foi menos bem feito.
Não há dúvida alguma de que Pequim agiu movida por diferentes motivos, para impedir que Snowden sequestrasse o nascente Novo Tipo de Relacionamento [orig. NTR – New Type of Relationship] entre China e governo Barack Obama.
A China não extraiu bons efeitos de propaganda do caso Snowden, mas conseguiu livrar-se de ter de tomar decisões difíceis sobre o destino final do americano. Continua a criticar a Washington a “hipocrisia” de admitir ciberespiongem massiva, em escala gigante, contra países soberanos, e, ao mesmo tempo, forçou Moscou a responder a padrões de respeito a direitos humanos muito mais exigentes que os antes vigentes.
Desnecessária e mal feita
Mas a culpa, de fato, foi de Moscou, que errou ao não exercer a opção de deportar Snowden de volta a Hong Kong quando transpirou que o viajante em trânsito não portava documentos válidos para prosseguir viagem – que é prática usual e frequente. Não. Moscou optou por adotar uma saída formal legalista, segundo a qual Snowden não pisou território russo; e meteu-o sob uma redoma de segurança desnecessária e mal feita.
A invisível presença de Edward Snowden em Moscou
Mas, diferente do total e eficaz voto de silêncio em Pequim, começaram a surgir todos os tipos de comentários sobre a invisível presença de Snowden em Moscou, de fontes que iam de funcionários do governo russo a especialistas midiáticos em geral e políticos conhecidos, o que só conseguiu dar a impressão de que Moscou estaria num jogo de preliminares íntimas com Washington; e fez subir as expectativas de que fosse possível acertar algum acordo, talvez, com os EUA.
Por tudo isso, Moscou não pode agora começar lamentar-se de que Snowden tornou-se filho não desejado.
Washington, por sua vez, manteve sempre, consistentemente, a mesma linha, a partir do presidente Obama – que disse que, de modo algum haveria “manobras e conversas” com Moscou sobre Snowden; e que a Rússia tinha obrigação de expulsar Snowden que cometera crime grave conforme as leis dos EUA e teria de ser julgado por tribunais norte-americanos nos EUA.
Os EUA também fizeram saber que nenhuma falta de cooperação de Moscou deveria contaminar negativamente as relações bilaterais.
O fato de um vice-secretário de Estado de alto nível, William Burns, velho e experiente operador dos EUA em Moscou, ter sido designado para administrar o caso Snowden mostra a importância que o governo Obama atribui à missão de tentar convencer os russos de que o Kremlin tem base legal suficiente e razões práticas para expulsar para os EUA um fugitivo sem documentos legais para viajar. É o mesmo que dizer a visita de Burns foi visita política.
Mas a posição que Moscou adotou é também absolutamente correta e legal. E, além disso, foi erigida sobre princípios morais “melhores”: a noção de que potência realmente grande e forte não pode deixar de lado ou desconsiderar as sempre importantes “considerações humanitárias”.
Mas a Rússia também espera que as relações Rússia-EUA continuem como se nada tivesse acontecido, tão logo mudem os ventos do interesse midiático, como tantas vezes aconteceu durante a Guerra Fria, apenas mais um caso a ser resolvido entre os dois governos. Eis como Lukyanov concluiu seu artigo:
Edward Snowden muito provavelmente logo obterá asilo temporário na Rússia, como ele mesmo disse; mas talvez permaneça por muito tempo na Rússia. Porque as circunstâncias que impedem que volte para casa ou mude-se para algum país da América Latina não desaparecerão tão cedo. Moscou e Washington têm interesse em que o caso seja esquecido o mais rapidamente possível e desapareça das manchetes. Só então será possível discutir tudo sem publicidade indesejada, para arrancar esse espinho cravado na carne das relações entre os dois países.
Lukyanov lembrou uma “solução elegante” construída em 2010 entre EUA e Rússia, quando o presidente Kurmanbek Bakiyev do Quirguistão foi derrubado e interessava simultaneamente a Moscou e Washington alocar o deposto chefe de Estado centro-asiático. Bakiyev, naquela ocasião, foi despachado para Minsk.
O governo Obama aceitaria alguma espécie de “fórmula Minsk” no caso Snowden? Eis a grande questão – e parece pouco provável que aceite, porque implicaria Washington fazer, essencialmente, o que Obama disse que não faria, a saber, “manobrar e conversar” com Pequim ou Moscou sobre o destino de Snowden.
Portanto, tudo considerado, aproxima-se uma difícil hora da verdade para Moscou e Washington no relacionamento pós-Guerra Fria. Para Moscou, nada menos que uma crise de identidade; para Washington, o que falta é uma sessão de terapia catártica no divã, que ajude os EUA a se entender melhor.
Para a Rússia, o caso Snowden exige um reboot na doutrina do Kremlin para a política exterior. Até aqui, tem sido política exterior carregada de “interesses nacionais”. Agora, a ideologia volta à cena. Talvez não a ideologia marxista, mas, ainda assim, uma ideologia humanista que dá primazia a “considerações humanitárias” na política exterior.
Até que ponto a Rússia pode praticar um política exterior carregada de ideologia, em mundo dividido por desigualdades, violência e autoritarismo? Isso é uma coisa.
A segunda pergunta é se influentes setores das elites russas aceitarão realmente a situação de serem confinadas a um ostracismo social pelo ocidente, que veem como seus parceiros naturais no norte?
O coração da matéria é que a aliança trans-Atlântica está sendo afinal montada, apesar de um ou outro eventual solavanco, e é questão que fere o orgulho norte-americano e faz os EUA aparecerem aos olhos do mundo como superpotência impotente, se os aliados dos EUA não puderem continuar a negociar normalmente com a Rússia.
Por outro lado, dada a formação social da Rússia no período pós-soviéticos, é improvável que a nata das elites moscovitas considere Bolívia ou Equador como destinos admissíveis para elas mesmas, sendo necessário, em substituição a Londres ou Zurich.
Isso nos leva a uma terceira pergunta, que concerne à ordem mundial na qual a Rússia precisa operar. Que ninguém se engane e suponha que os EUA reagirão positivamente a qualquer decisão que envolva “asilo” para Snowden – temporário ou outro. Se acontecer, o que virá?
Até aqui, toda a trajetória das relações russo-americanas pós-soviéticos tem sido não confrontacional. Isso pode mudar. E é reflexo da ordem mundial na qual a Rússia tem de viver que, afinal, três (ou mesmo quatro, se se inclui a África do Sul) dos parceiros BRICS da Rússia (Brasil, Índia e China) sequer teriam considerado o curso de ação que Moscou parece estar escolhendo; a saber, dar abrigo a fugitivo da lei dos EUA, movidos por “considerações humanitárias”.
Em resumo, o caso Snowden exige que a Rússia defina o tipo de relacionamento que busca com o ocidente. Sim, é verdade, a Rússia está habituada a viver sob sanções ocidentais; mas naquele tempo era vida difícil não por escolha, mas por ausência de alternativa. Há limitações inerentes para a renovação e a globalização da economia russa sem a tecnologia e os investimentos ocidentais – por mais que se fale da “opção China”, do projeto da União Eurasiana ou da participação na Organização Mundial do Comércio.
Dito em palavras mais simples, Washington espera que a Rússia coopere – exatamente como Espanha, Itália, França e Portugal cooperaram e bloquearam a passagem do avião do presidente Evo Morales quando houve suspeitas de que Snowden estivesse a bordo – por mais furiosos que esses países estivessem em relação à ciberespionagem norte-americana. No mínimo, Washington esperaria da Rússia o mesmo grau de “pragmatismo”, que Pequim mostrou no caso Snowden.
Pode-se dizer que a armadilha que o governo Obama pôs no caminho da Rússia parece ser de a Rússia estar forçada a fazer uma escolha existencial sobre sua própria identidade e seu próprio papel como grande potência, de alcance e influência globais.
Não é justo, porque os EUA até hoje só exigiram e exigiram, no relacionamento com a Rússia, sem atender nenhum dos pedidos dos russos. Como Bill Clinton disse certa vez ao ex-vice-secretário de Estado Strobe Talbott, num súbito surto de honestidade, quando Clinton era presidente e Boris Yeltsin estava no Kremlin:
Nós [EUA] nem sempre jogamos muito bem com aquela gente [russos]; nunca pensamos em um modo de dizer sim a eles, pensando em o quanto, quantas vezes, o quão frequentemente, quisemos que eles dissessem sim a nós. Só fazemos repetir ao Velho Boris, “OK, aqui está o que vocês têm de fazer – é mais merda na sua cara”.
Hoje, o governo Obama tem de considerar, nesse caso, que a equipe russa de Bill Clinton ainda continua quase totalmente intacta no circuito de Washington, apesar de o Velho Boris já ter deixado o Kremlin há 12 anos e seis meses. Dito em outras palavras, a Rússia não aceitará, dessa vez, “mais merda na cara”.
Se o governo Obama ainda tem alguma dúvida, as manobras militares das Forças Armadas russas, sem precedentes, que acontecem essa semana no Extremo Oriente devem fazer desaparecer qualquer vício de interpretação.
A Rússia não tem inimigos no Extremo Oriente. Nem a Rússia precisa preparar-se para qualquer provável guerra contra Japão, China ou Coreia do Norte. Nem seus famosos bombardeiros estratégicos Tu-95MS estão em prontidão para tarefas em tempo real.
A verdadeira mensagem daqueles exercícios militares que terminarão no sábado, que envolvem 160 mil soldados, cinco mil tanques e veículos blindados de combate, 160 aeronaves e helicópteros de longo alcance, transporte militar, aviação de combate, de bombardeio e do exército, além de 70 navios e barcos de combate armados – é que foram ordenados pelo Kremlin em apenas 48 horas, sem qualquer preparação prévia não rotineira. E aconteceram e foram executados com precisão de relógio.
A presença do presidente Vladimir Putin em Tsugol, no 247º Distrito Militar do Leste, na 4ª-feira, mostra bem claramente que o Velho Boris já é história. E que também já é história o triunfalismo dos EUA no período pós-soviético.
Em resumo, a jogada do “reset” EUA-Rússia, que Obama inventou para seu primeiro mandato, já esgotou o prazo de validade e já não serve para nada. Nenhum engajamento seletivo da Rússia será doravante possível ou suficiente. A Rússia exige parceria compreensiva, entre iguais, baseada em respeito mútuo.
O caso Snowden é prova de que Washington precisa voltar com urgência à lousa e aos mapas, e reescrever novo rascunho de suas relações com a Rússia – semelhante ao Novo Tipo de Relacionamento [orig. NTR – New Type of Relationship], que a China está exigindo.
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[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Times Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.
Asia Times Online.
“Snowden: Moment of truth for Russia, US”
Fonte: RedeCastorPhoto