Por Ana Aguiar Cotrim.
O projeto sionista foi, finalmente, em fevereiro de 2022, condenado pela Anistia Internacional como um sistema organizador do apartheid. O relatório, intitulado O Apartheid de Israel contra os palestinos: sistema cruel de dominação e crime contra a humanidade, com 280 páginas, examina as várias frentes pelas quais o Estado israelense impõe a dominação e controle sobre o povo palestino, suas terras e recursos, operando um sistema de apartheid social, segregação racial e limpeza étnica tanto no interior das fronteiras do Estado como nas terras palestinas ocupadas da Cisjordânia e de Gaza. Lemos na apresentação ao relatório:
A Anistia Internacional analisou a intenção de Israel de criar e manter um sistema de opressão e dominação sobre os palestinos e examinou seus principais componentes: fragmentação territorial; segregação e controle; desapropriação de terras e propriedades; e negação de direitos econômicos e sociais. Concluiu-se que este sistema equivale a apartheid. Israel deve desmantelar este sistema cruel e a comunidade internacional deve pressioná-lo a fazê-lo. Todos aqueles com jurisdição sobre os crimes cometidos para manter o sistema devem investigá-los. (Amnesty International, 2022. Tradução da autora –doravante T. A.–)
O relatório tem início com a citação de uma afirmação postada nas redes pelo atual primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em março de 2019: “Israel não é um Estado de todos os seus cidadãos… [mas sim] o Estado-nação do povo judeu e apenas dele” (Amnesty International, 2022, p. 11, T. A.).
A clareza com que líderes do Estado como Netanyahu expressam seu projeto supremacista não é um desenvolvimento político recente. Este texto procura mostrar que o projeto sionista, desde sua primeira formulação em Moses Hess, bem como em seu início como projeto político em Theodor Herlz (respectivamente em meados e no fim do século XIX), tem o mesmo fundamento racista – o projeto de um Estado “do povo judeu e apenas dele”, que perpassa as suas formas teóricas e práticas.
Tanto teórica como politicamente, ao contrário de significar a única saída ao problema do antissemitismo europeu, significa uma tomada de posição contra a inserção da população judaica em seus países de origem, contra a luta pela igualdade jurídica de direitos civis, e contra a igualdade racial.
O sionismo é uma teoria e um movimento prático europeu, que emerge no bojo das lutas nacionais na Europa, e que se apresenta como resposta ao antissemitismo vigente há séculos no continente europeu, enquanto na prática se constitui como instrumento do imperialismo europeu no Oriente Médio. Antes de tudo, é preciso pontuar que o antissemitismo é um fenômeno particularmente europeu, que toma formas e intensidades diversas conforme os países e as regiões, bem como conforme o tempo, ao longo da modernidade. Contra o antissemitismo, as lutas por igualdade de direitos se espalharam na Europa do século XIX no âmbito da institucionalidade política, pelo direito à igualdade real no âmbito da vida civil, e ao livre desenvolvimento cultural e religioso, buscando centralmente a integração dessa população às diversas nações europeias.
O antropólogo Uri Davis, membro da Autoridade Nacional Palestina e professor na Universidade de Birzeit (Ramallah), em seu livro Israel, Estado de Apartheid – Possibilidades da luta interna (Apartheid Israel – Possibilities for the Struggle Within), publicado em 1987 e reeditado com acréscimos em 2003, faz uma síntese do contexto do surgimento da ideologia sionista, como uma entre duas possibilidades de posição e pensamento diante da condição da população judaica na Europa. Ele escreve:
O sionismo político emerge no contexto da industrialização europeia e da transformação capitalista da ordem social feudal europeia, que promoveu a secularização da razão e da moralidade e deu origem a duas tradições paradigmáticas dominantes do pensamento moderno ocidental: iluminismo e racismo.
Para as comunidades judaicas da Europa, o iluminismo trouxe emancipação e igualdade jurídica de direitos civis. Em paralelo, um novo racismo secular se manifestou na forma de perseguição antijudaica, que culminou em reiterados pogroms, assassinatos em massa e, sob a ocupação nazista na Europa, aniquilação em massa.
Aqueles entre as comunidades judaicas que optaram pelo secularismo e iluminismo, emprestaram seu apoio, de uma forma ou de outra, a organizações políticas liberal-democráticas, socialistas ou revolucionárias dos países em que residiam. Aqueles que optaram pelo secularismo e o racismo, voltaram-se, de uma forma ou de outra, ao sionismo político (Davis, 2003, p. 9, T. A.).
Ghassan Kanafani, escritor nacional palestino, mas também intelectual, jornalista e importante militante da Frente Popular pela Libertação da Palestina, no conjunto de estudos escritos durante a década de 1960 que compõem o livro Sobre a literatura sionista (On Zionist Literature) defende que a concepção sionista não ganha força num período ou região de recrudescimento da opressão sobre a população judaica, antes o contrário. Para ele, o sionismo político foi em última instância uma escolha de uma parcela abastada da população judaica europeia, fundada no racismo e na inclinação supremacista, voltada a alcançar poder a serviço da dominação imperialista, e às custas das camadas mais populares dos judeus, que buscavam a igualdade civil e política em seus próprios países.
Ambos os intelectuais citados, engajados na causa da libertação da Palestina, invertem assim a narrativa sionista de acordo com a qual o sionismo era uma necessidade incontornável à questão judaica na Europa, uma resposta inescapável ao antissemitismo e ao suposto fracasso da perspectiva da igualdade e da integração. Kanafani escreve:
Ao passo que se elevavam oportunidades para a integração e assimilação, observamos, contudo, um aumento da corrente chauvinista nos círculos judaicos social e economicamente privilegiados. O fluxo constante de literatura sionista que começou a aparecer em meados do século enfim conquistou o mainstream literário no final do século, levando à consolidação do sionismo político no Primeiro Congresso Sionista na Basileia em 1897 (Kanafani, 2022, p. 27, T. A.).
De acordo com nosso autor, se é assim, um movimento judaico deveria demandar e lutar precisamente por essas condições de prosperidade e liberdade para a população judia na Europa. Contudo, não é isso que se observa: “Mas o movimento [sionista] toma o caminho oposto – por motivos racistas – alegando a superioridade judaica e recusando a integração, o que por sua vez contribuiu para minar as perspectivas de coexistência” (Kanafani, 2022, p. 21, T. A.). Em oposição à integração do povo judaico em suas várias nações, o movimento luta pela segregação. Trata-se de uma oposição à perspectiva iluminista de igualdade universal, à herança de Moisés Mendelssohn, que acarreta que as religiões pertencem aos âmbitos privados da vida social, não se definindo como determinantes do modo da vida pública, que caminha para a laicização. Esse ideário também contradiz a concepção de que uma religião caracteriza por si só uma unidade, define um povo único, distinto dos demais. O judaísmo, como as demais grandes religiões, não caracteriza um povo unitário. Constitui uma unidade religiosa, mas não uma unidade nacional.
Em A dialética do sionismo, o intelectual brasileiro Maurício Tragtenberg se contrapõe à premissa sionista do povo único:
É muito provável que os habitantes considerados árabes da Palestina possuíam mais “sangue” hebraico do que a maior parte dos judeus da Diáspora (Dispersão) cujo exclusivismo religioso não impedia a absorção dos convertidos de origem diversa. (…) Historicamente, bastará para nos convencermos disso evocar o Estado judeu da Arábia do Sul no Século XI de base árabe meridional judaizada, o Estado judeu turco dos Khazars, no sudeste da Rússia nos séculos VIII a X, os judeus assimilados da China, os judeus negros do Cochim, os Falashas da Etiópia. Admite-se que o grupo heterogêneo formado por todos os judeus do mundo permanecesse em contato com o judaísmo religioso, fosse considerado dotado de caracteres permanentes a despeito de suas mudanças internas, cabe perguntar: como seria possível atribuir-lhes direitos sobre um território determinado? Nesse caso poderiam os árabes reivindicar a Espanha (Tragtenberg, 2003, p. 8).
Partindo da concepção do povo único, cuja base é religiosa, e não histórica, os primeiros pensadores do sionismo opõem-se à integração dos judeus aos países e culturas em que estão inseridos. Moses Hess, intelectual alemão considerado o primeiro sionista, embora esse termo ainda não fosse empregado, é o primeiro intelectual a propor a criação de um Estado judeu na Palestina, em meados do século XIX. O intelectual estadunidense David Flakser, em seu texto “Moses Hess, primeiro dos sionistas modernos” (1962), reconhece que o “principal desejo da população judaica na Alemanha, na época de Hess, era desenterrar-se do gueto, se emancipar nos países em que residia. O ideal era alcançar os mesmos direitos legais da população não-judia” (Flakser, 1962, p. 15, T. A.). Contudo, para Hess, embora essa emancipação fosse significativa para os indivíduos judeus que a alcançassem, para o judaísmo como “nação” essa conquista não apenas não seria positiva, como, ao contrário, significaria o seu enfraquecimento. “A emancipação do indivíduo poderia destruir a fortaleza nacional interna judia, que foi fortalecida no curso da história judaica e expressa num modo de vida judeu, e poderia enfraquecer sua consciência nacional” (Flakser, 1962, p. 16, T. A.).
Nesse raciocínio, Hess se coloca contra a integração dos judeus nos seus países, inclusive acusando de “traidores do seu povo” aqueles indivíduos judeus que lutassem pela igualdade de direitos civis e almejassem a sua emancipação política nas nações europeias de origem. Em Roma e Jerusalém (1918), Hess escreve que “se é verdade que a emancipação judaica não é compatível com a adesão à nação judaica, um judeu deve preterir a primeira pela segunda”. Radicalizando ainda mais essa ideia, lemos que “os judeus não são um grupo religioso, mas uma nação separada. É uma nação que deveria buscar a sua normalidade se reestabelecendo na sua pátria histórica. (…) O judeu moderno (o judeu assimilado) que nega isso não é um apóstata, um renegado religioso, mas sim um traidor do seu povo” (em Flakser, 1962, p. 16, T. A.).
No mesmo sentido segue o pensamento do fundador do sionismo político, isto é, da proposta concreta e articulação efetiva para a fundação de uma nação judaica na Palestina – que é a pátria mitológica dos judeus, identificada à “terra prometida”, e transformada pelo sionismo de lugar transcendental pertencente à narrativa religiosa em lugar geográfico a ser tomado pela força bélica. O austríaco Theodor Herzl escreveu seu projeto em O Estado judeu, de 1896; organizou o primeiro congresso sionista, em agosto de 1897 na Basileia, presidiu a Organização Sionista Mundial, fundada no mesmo ano como consequência do congresso, e articulou com as potências imperialistas a sua realização.
Sobre Herzl e a proximidade da visão sionista com o antissemitismo, Tratenberg escreve, citando uma biografia de Herzl escrita por André Chouraqui, sionista argelino-francês (1917-2007):
Outro traço da política de Herzl era especular com o antissemitismo e com o desejo de se desembaraçar da população judia, para promover a emigração à Palestina. Assim, em 1903, Herzl obteve [apoio] do ministro czarista Plehve, organizador de “pogroms”, iniciando uma tradição política em que a convergência do programa sionista com o dos antissemitas, abertamente reconhecida por ele, tornava-se quase fatal. Plehve promete ao sionismo “apoio material e moral na medida em que certas de suas medidas práticas sirvam para diminuir a população judia na Rússia”, conforme relata Bernfeld (Le sionisme, étude de droite international public, Paris, Jouve, 1920, p. 399 ss.). Isso leva Herzl a dizer que “até hoje meu partidário mais ardente é um antissemita de Petersburgo (hoje Leningrado) Ivan V. Simonyi”, conforme relata A. Chouraqui (T. Herzl, p. 141). Herzl reconhece “Objetar-me-ão razoavelmente que faço o jogo dos antissemitas quando proclamamos que constituímos um povo, um povo único” (Idem, p. 259) (Tragtenberg, 2003, p. 3).
Então, o sionismo, por um lado, se aproxima do antissemitismo porque nega ao judeu a sua universalidade humana e o seu direito de participar de culturas e modos de vida que se distingam do suposto modo de vida judeu, sem deixar de ser judeu. Uri Davis escreve:
Não há nada de coincidência na convergência prática de sionismo político e racismo contra judeus (antissemitismo). O sionismo político e o racismo secular antissemita compartilham uma visão comum sobre a situação existencial das minorias judaicas em sociedades não judaicas (gentias). Tanto o sionismo político como o racismo antissemita acreditam que, dada a incompatibilidade racial fundamental entre não-judeus e judeus, os judeus, como indivíduos e comunidades minoritárias, não podem, por definição, ser – nem se espera que sejam – cidadãos iguais e minorias livres em sociedades e regimes não-judeus (Davis, 2003, pp. 10-11, T. A.).
Por outro lado, o sionismo se aproxima do antissemitismo pelo sentido racista e supremacista, embora aqui pelo reverso, ao considerar o “povo judeu” como povo escolhido com direito divino de colonizar a Palestina. Aqui o caráter contraditório do sionismo se mostra de maneira inequívoca. Defende que os judeus não devem assimilar-se às nações europeias sob risco de perderem a consciência nacional e o modo de vida judaico; ao mesmo tempo, defende que a nação judaica é intrinsecamente ocidental e europeia, portanto, superior e dotada do direito secular e da missão de impor a civilização aos “povos bárbaros” do oriente. Assim, Herzl escreve em O Estado judeu, ao discutir se o melhor lugar para a criação desse Estado seria a Argentina ou a Palestina:
A Palestina é a nossa pátria histórica inolvidável. O simples ouvir citar o seu nome é um chamado poderosamente comovedor para nosso povo. Se Sua Majestade, o Sultão, nos desse a Palestina, nós nos comprometeríamos a sanear as finanças da Turquia. Para a Europa, formaríamos ali parte integrante do baluarte contra a Ásia: constituiríamos a vanguarda da cultura na sua luta contra a barbárie. Como Estado neutro, manteríamos relações com toda a Europa que, por sua vez, teria de garantir nossa existência (Herzl, 1997, pp. 24-25).
As contradições acumulam-se na medida em que o sionismo mistura, conforme seu interesse, reivindicações religiosas e seculares. Em Al Nakba – um estudo sobre a catástrofe palestina, Soraya Misleh (2017) chama atenção ao fato de que o sionismo toma a Palestina como sua “pátria histórica”, sua “terra prometida”, porque é seu berço, a sua origem. Para essa ideologia há um único povo judeu e este emergiu no Oriente; no entanto, o seu espírito próprio e a sua identidade, sua cultura, sua moral e seu pensamento identificam-se ao Ocidente. É um povo europeu. Misleh cita o sionista russo Zeev Jabotinsky, que em 1920 escreveu A muralha de ferro – Israel e o mundo árabe, defendendo o (futuro) Estado de Israel como uma muralha de ferro militar do Ocidente contra o Oriente, bem como advogando a superioridade do povo judeu com relação aos povos árabes: “Nós, judeus, não temos nada em comum com aquilo que significa ‘O oriente’ e agradecemos a deus por isso” (como citado em Misleh, 2017, p. 31).
A concepção do sionismo acompanha a proposta política de colonização. A unidade do povo judeu defendida pelo sionismo adquire um sentido de distinção com relação aos europeus, razão pela qual defendem a criação de um país próprio e fundado na pureza racial judaica, mas traz consigo o mesmo sentido europeu de superioridade racial com relação aos povos não-ocidentais.
Kanafani aborda a primeira manifestação do personagem sionista, em oposição ao personagem judeu, pela pena de Benjamin Disraeli, que pertencia à alta classe e se tornaria primeiro-ministro da Inglaterra em 1874, no romance O Maravilhoso conto de Alroy (The Wondrous Tale of Alroy). Nosso autor afirma que, ali:
Disraeli pinta o mundo inteiro com o mesmo pincel grotesco de Hitler: “raça é tudo…. não há outra verdade”. Ele insistia que mesmo “o que as pessoas podem enxergar como uma ação individual é de fato uma característica racial”. Recordem que era um tempo em que as oportunidades para integração estavam disponíveis. Disraeli impele na direção contrária: “na realidade, não se pode obliterar uma raça pura, é um fato psicológico, uma simples lei da natureza” (Kanafani, parafraseando Disraeli 2022, p. 34, T. A.).
Ainda examinando a obra de Disraeli, Kanafani cita o crítico Edgar Rosenberg, em From Shylock to Svengali, que comenta a mesma obra. Para ele, o que Disraeli estava efetivamente dizendo é que “os judeus estão destinados, com base na história e na religião, a assumir a liderança moral e intelectual do universo” (Rosenberg como citado em Kanafani, 2022, p. 34, T. A.).
No final das contas, em diferentes formas de argumentação e figuração, o sionismo seculariza o preceito religioso do “povo escolhido”, e por vários caminhos, seja a superioridade ocidental, racial ou moral e intelectual, considera-se no direito de apropriar-se da Palestina. A fim de fomentar a aceitação popular dessa ideia, o movimento sionista cria o slogan “uma terra sem povo para um povo sem terra”, ainda em finais do século XIX. Propaga-se a ideia de que na Palestina não há um povo, e sim “apenas” beduínos, negros, “tribos” vagando no deserto, e que se trata de um país em ruínas, abandonado. É desnecessário demonstrar a falsidade dessas afirmações. Há várias obras e registros, textuais, fotográficos e mesmo filmagens, que mostram a pujança da vida palestina, que, embora majoritariamente rural, contava com centros urbanos, produção de cultura, organizações políticas etc. Tragtenberg ressalta:
Em toda a obra de Herzl não há uma só menção à existência dos árabes palestinos. Explica-se quando Herzl sonha com o “Estado Judeu” pensando em localizá-lo em qualquer lugar, Argentina, Canadá ou Uganda. Somente quando redige o último capítulo de seu livro verifica que só a Palestina como espaço do futuro “Estado Judeu” seria capaz de mobilizar emocionalmente as massas judaicas da Europa Central (Tragtenberg, 2003, p. 2).
Os sionistas, como europeus, sequer conheciam a Palestina. Inseriam-se no clima heroico do imperialismo europeu, particularmente inglês, no espírito de Rudyard Kipling. Assim, o historiador palestino Nur Masalha narra, a respeito do líder sionista bielorrusso Chaim Weizmann, que viria a ser o primeiro presidente de Israel: “Quando perguntado por Ruppin (chefe do Departamento de Colonização da Agência Judaica) sobre os árabes palestinos, Weizmann replicou: os britânicos nos disseram que são algumas centenas de negros (Kushim) e aqueles não têm valor” (Masalha como citado em Misleh, 2017, p. 32).
O povo árabe palestino é, dessa maneira, definido como um não-povo (cf. Misleh, 2017), é ideologicamente apagado da existência para que possa ser, de fato, expulso ou exterminado. Assim, a criação do Estado de Israel se insere num projeto colonial extemporâneo, de construção de uma fortaleza do Ocidente contra o Oriente, de dominação dos povos árabes.
Com efeito, a colonização da Palestina tem início em 1919, com a derrota do Império Otomano e a divisão do Oriente Médio em protetorados da Inglaterra e da França. Antes mesmo de tornar a Palestina um protetorado inglês, em 1917 a Inglaterra concedeu à Organização Sionista a Declaração de Balfour, que leva o nome do secretário britânico para assuntos exteriores e é endereçada ao líder do movimento sionista inglês, Lionel Rothschild, membro conservador do parlamento e conhecido banqueiro. A declaração constitui a promessa de criação de um “lar judeu” na Palestina e dá início ao fomento à imigração judaica para a região, incluindo a sua ocupação, domínio sobre as terras, recursos e atividades econômicas, o que se realiza durante os anos vinte e trinta. Nessas duas décadas, houve um gigantesco afluxo de imigrantes e de capitais para a região, o que alterou completamente a fisionomia populacional. Apenas para se ter uma ideia, de 10 % em 1919 a população judaica passou a 35 % em 1946. Cerca de três quartos do afluxo de capitais destinavam-se ao fortalecimento da burguesia judaica, que se tornou dominante.
Mas, o efetivo estabelecimento do Estado de Israel na Palestina decorreu de outros dois fatores: a revolta palestina de 1936 a 1939, que buscava a independência com relação ao protetorado inglês e o fim da política colonizatória – e que acabou derrotada pelas forças militares do imperialismo inglês, bem como pelas milícias armadas da Organização Sionista, Irgun e Haganah (cf. Kanafani, 2015) –, e a perseguição e genocídio da população judaica perpetrado pela ocupação nazista na Europa nos anos trinta e quarenta. A derrota da resistência palestina abriu um espaço ainda maior para o domínio completo do povo árabe palestino pelas forças de ocupação, e o Holocausto criou um ambiente europeu e estadunidense favorável à criação de um Estado judeu como reparação. Os países que apoiaram o estabelecimento do Estado de Israel na Palestina mantinham regras rígidas e restritas para a imigração judaica para seus próprios países, enquanto contribuíram para aprovar na ONU a partilha do território palestino em 1947, bem como com a guerra de ocupação efetiva em 1948-1949, para a qual Estados Unidos, União Soviética e Europa ocidental forneceram as armas. Nesse curto período um terço da população árabe palestina foi expulsa de suas terras (760.000 pessoas), 531 vilas foram destruídas e ocorreram mais de quatrocentos massacres, envolvendo sempre, como até hoje, uma maioria de população civil.
Desta guerra decorreu a fundação do Estado de Israel, mas nunca se estabeleceu o Estado da Palestina. Outras guerras se seguiram que ampliaram muito significativamente o controle de Israel sobre o território, bem como o controle militar de Israel sobre as pequenas áreas em que há um governo civil palestino. A finalidade sempre foi, como é até hoje, a tomada integral das terras e a “ausência” do povo árabe. Mesmo sendo contrário à partilha de 1947 da ONU, bem como de outras tantas resoluções, todo o apoio econômico, político e bélico do Ocidente destina-se a Israel.
O holocausto nazista também acabou por se converter em justificativa para colocar a última pá de cal na perspectiva de inserção do povo judeu. Como forma de pensamento, o sionismo se apropriou do holocausto para propagar-se como viés único, sobrepujando as perspectivas de resistência judaica humanistas e não supremacistas.
Mas o nazismo influenciou o sionismo também de outra maneira. Houve autores que chegaram a tomar o nazismo como referência para sua própria posição, advogando o princípio da raça pura. Uri Davis, no livro acima citado, refere o rabino Joachim Prinz como um desses casos. Em 1934, em seu tratado Nós, judeus (Wir Juden), ele considera que a “revolução alemã” de 1933 evidenciou que “a opção liberal foi perdida para sempre, o único modo de vida político [liberalismo] que o assimilacionismo judaico estava disposto a promover afundou de vez” (citado em Davis, 2003, p. 10, T. A). A resposta a essa falência é nada mais nada menos que o Nacional-Socialismo. Esse deve ser o modelo a seguir para a consolidação do Estado judeu: “Queremos propor, em lugar da assimilação, algo novo: assumir o jugo de aderir ao povo judeu e à raça judaica. Apenas um Estado baseado na pureza da nação e da raça pode oferecer dignidade e honra aos [e apenas aos] judeus que aceitem esses princípios” (citado em Davis, 2003, p. 10, T. A).
Com isso, advoga a centralidade da raça e do sangue:
Ele [o Estado] tem de demandar de nós o reconhecimento de nossa absoluta singularidade e qualidades, já que apenas aqueles que concedem plena honra à sua própria singularidade, seu próprio sangue, podem ganhar o respeito e a honra que são concedidos pelas nações com a mesma inspiração, adeptas do mesmo princípio (citado em Davis, 2003, p. 10, T. A).
Se antes mostramos a proximidade do sionismo com o antissemitismo, em Prinz a “revolução alemã” aparece como parâmetro para a construção de um Estado judeu, que deve, ademais, aspirar ao seu respeito. Embora essa visão, em sua crueza explícita, possa ser considerada particular, e não passível de generalização ao pensamento sionista, o fato é que o Estado de Israel segue, na definição jurídica de sua população própria, esse mesmo princípio racial.
E aqui retomamos ao início do texto, a tardia, mas feliz condenação da Anistia Internacional ao apartheid israelense. A condição de apartheid pode ser verificada no conjunto da legislação do Estado, destrinchado em detalhes por Uri Davis no livro citado, e que não seria possível apresentar neste texto. Vale citar, contudo, as duas leis fundamentais aprovadas pelo Knesset logo após a fundação do Estado, em 1950, a Lei do Retorno e a Lei de Propriedade dos Ausentes. Sob a primeira lei, “todo judeo1 ao redor do mundo tem o direito legal de tornar-se cidadão de Israel na medida em que imigre para o país” (Davis, 2003, p. 70, T. A.). Sob a segunda, vigente até os dias de hoje, o exército israelense pode simplesmente tomar posse de casas, terras, quaisquer propriedades e considerar seus proprietários “ausentes”: quatro milhões de palestinos, os refugiados e seus descendentes, tornam-se assim “ausentes” e “são excluídos na lei do direito real ou potencial à cidadania no estado judaico” (Davis, 2003, p. 71, T. A.).
Passados 75 anos da primeira guerra de ocupação, é interessante observar que a integração dos judeus na Europa e nos Estados Unidos, e em outras partes do globo, como na América do Sul, de fato aconteceu. Na verdade, o processo de inserção efetiva das populações judaicas nas nações do mundo é concomitante ao processo de estabelecimento do Estado de Israel. Mas a integração, o direito ao retorno e à nacionalidade do povo palestino continuam negados. Ou seja, o sionismo se mantém como ideologia racista e supremacista aplicada, acarretando um sistema de apartheid racial, aliás inevitável num Estado que se quer uni-racial, mesmo numa condição mundial radicalmente diversa.
É claro que o apoio das grandes potências ocidentais a Israel demonstra a existência de uma confluência de interesses que extrapolam a própria concepção sionista, mas são coerentes com ela. Israel é, de fato, um posto militar avançado do Ocidente em pleno Oriente Médio. Mas, a finalidade desse texto era apontar a concepção ideológica do sionismo como uma tomada de posição imanentemente reacionária, porque fundada na raça, no sangue, e no solo, uma ideologia que recusa conceber a igualdade humana em termos étnico-raciais, mesmo no estreito escopo da garantia jurídica de direitos civis.
[Este texto constitui a primeira parte de um artigo publicado na Revista Sociohistorica, da Universidad Nacional de La Plata, em setembro de 2023, sob o título: “O sionismo como postura intelectual e projeto político: uma aproximação da perspectiva palestina”. Artigo completo disponível aqui]
Nota:
1 Essa determinação fundamental do Estado, incluído em sua legislação, acarretou o problema de se definir quem pode e quem não pode ser considerado judeu, trazendo contradições e problemas. Uri Davis discute isso em seu livro citado (2003, pp. 70ss.).
Referências
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DAVIS, U. (2003). Apartheid Israel – Possibilities for the Struggle Within. Londres/Nova York: Zed Books.
FLAKSER, D. (1962). “Moses Hess – First of Modern Zionists”. Israel Horizons, March 1962, pp. 13-16. Disponível em: <https://www.marxists.org/subject/jewish/flakser-hess-1.pdf>
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HERZL, T. (1997). O Estado Judeu (Tradução de Dagoberto Mensch). São Paulo: Consulado Geral de Israel. Disponível em: <http://www.bibliologista.com/2015/10/o-estado-judeu-de-theodor-herzl.html>
KANAFANI, G. (2015). A revolta de 1936-1939 na Palestina (Tradução de G. Rodrigues e F. Bosco a partir da versão inglesa). São Paulo: Sundermann.
KANAFANI, G. (2022). On Zionist Literature (Tradução de M. Najib). Oxford: Ebb Books.
MISLEH, S. (2017). Al Nakba. Um estudo sobre a catástrofe palestina. São Paulo: Editora Sundermann.
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