Por José Álvaro Cardoso.
É possível ilustrar com clareza o nível de exploração dos trabalhadores no Brasil pelos indicadores do salário-mínimo. O valor do salário-mínimo atual (líquido, já com o desconto da previdência social) é comprometido em 64,85% na aquisição de uma cesta básica para um adulto, que na cidade de São Paulo custou R$ 791,82 em maio, na pesquisa do DIEESE (mais cara no referido mês). O salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE está estimado em R$ 6.652,09, equivalendo a 5.04 vezes o mínimo atual. Ou seja, está muito longe de suprir as necessidades básicas do trabalhador e sua família, conforme reza a constituição federal desde 1946.
Do total de ocupados na economia brasileira quase 70% recebem até 2 mínimos (R$ 2.640,00). Além desses trabalhadores que recebem até 2 mínimos, dos 37 milhões de benefícios pagos mensalmente pela Previdência Social (INSS), quase 70% são de um salário-mínimo. O DIEESE calcula que 60,3 milhões de brasileiros tem o seu rendimento referenciado no salário-mínimo, incluindo empregados, trabalhadores autônomos, empregados domésticos, empregadores, aposentados e pensionistas. Ou seja, para uma população ocupada de cerca de 108 milhões, o salário-mínimo é referência para mais de 60 milhões de brasileiros. Nesse quadro, fica claro que uma política vigorosa de valorização do salário-mínimo teria um impacto decisivo no Brasil.
Com o padrão de desemprego e subemprego, e com os salários existentes no Brasil, não é por acaso que cerca de 23% da população – em torno de 50 milhões de brasileiros – depende do Bolsa Família para não passar fome. Esse último é um indicador inapelável, inclusive, do retrocesso econômico-social que o golpe de 2016 representou para o Brasil. Afinal de contas, em 2014, o Brasil tinha saído do Mapa da Fome da ONU, o país não tinha uma epidemia de famintos como tem hoje.
Política pública, em qualquer área, que empurra mais da metade da população à condição de insegurança alimentar, no país que é um dos maiores produtores de alimentos do mundo, e com as riquezas que o Brasil dispõe, está errada por princípio. Não precisa de analista econômico ou social, para sabermos desse fato.
O rendimento nominal mensal domiciliar per capita da população residente no Brasil, é um cálculo elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a partir dos rendimentos do trabalho e de outras fontes. Em dezembro de 2014 esse rendimento era de R$ 1.052 (primeiro da série histórica). Esse valor adquiria, à época, três cestas básicas (2,97), calculada pelo DIEESE, que, na cidade de São Paulo (para ficarmos no mesmo exemplo anterior), custava R$ 354,19. Em maio o valor atual deste indicador, que é de R$ 1.625,00 era suficiente para comprar apenas 2 cestas básicas. Ou seja, medida por alimentos básicos o rendimento mensal da população caiu 33%, um terço, em oito anos. Isso é perda de salário real, na veia.
No mesmo período em que ocorreu essa perda de rendimento (2015 a 2022), oito anos, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu – ainda que muito abaixo do que poderia. Ou seja, a economia brasileira ficou maior, a produção de riquezas aumentou, mas os trabalhadores diminuíram seu poder aquisitivo, sua capacidade de comprar alimentos. Cresceu a produção de riquezas, mas a população ficou mais pobre.
O arrocho de salários e renda é um mecanismo pesado de compensação da crise estrutural que atravessa o sistema capitalista mundial, há muitos anos. Um cálculo de inflação, o INPC-IBGE, por exemplo, o mais utilizado nas negociações coletivas, é uma média de variação de preços, na qual entram centenas de produtos, os quais a maioria dos trabalhadores não consome. Produtos da cesta básica, com 13 alimentos essenciais, praticamente todos consomem; por isso são uma boa referência de medição dos salários, especialmente os da base da pirâmide de renda.
É no estabelecimento do preço da força de trabalho que, de forma mais crua e direta, vem à tona a contradição entre os interesses dos capitalistas e os dos trabalhadores. O melhor instrumento para os trabalhadores tentarem evitar que a exploração se torne uma superexploração é lutar por sindicatos fortes, que defendam genuinamente os interesses da classe trabalhadora.
O surgimento do sindicalismo no Brasil carrega as características de um país cujo capitalismo se desenvolveu de forma tardia, atrasada e insuficiente, no qual predominava o capital agrário, após quase 400 anos de regime de brutal escravidão. A organização de uma estrutura sindical é registrada em 1903, entidade ligada, claro, à agricultura e pecuária. A normatização do trabalho é muito recente no Brasil. Na revolução de 1930, que teve como líder Getúlio Vargas, o Brasil praticamente não tinha direitos. O Ministério do trabalho foi criado em (1930), o trabalho das mulheres foi regulamentado em (1932) e o salário-mínimo foi criado em 1938 (e começou a ser pago em 1940). Os sindicatos surgem, assim, atrelados ao Estado, com o objetivo, dentre outros, de mantê-los sob “rédea curta”. Dentre outras exigências, inclusive, os sindicatos só eram reconhecidos pelo Ministério do Trabalho, o que fornecia do Estado grande poder de controle das entidades. Não havia liberdade e autonomia sindicais.
Na condição de primeira e mais importante linha de defesa do trabalhador, os sindicatos se movem, historicamente, sob violento fogo cerrado. Além dos ataques patronais, há inúmeras outras dificuldades no trabalho de sindicalização e de arregimentação de pessoas para o trabalho coletivo. No mundo todo há uma mobilização dos trabalhadores que pode ser considerada de baixa intensidade, que impacta bastante o trabalho de sindicalização e ação geral do sindicato.
A sistemática desqualificação dos sindicatos em geral torna muito difícil os trabalhadores na base, enxergarem a importância que exerce o sindicato nas suas vidas. A cultura de valorização do indivíduo, tão cultivada na sociedade a partir da propaganda neoliberal, leva os trabalhadores em geral a achar que conseguem resolver seus problemas solitariamente, sem a ajuda do sindicato ou de outras formas de organização coletiva. Uma parcela dos trabalhadores imagina que se trabalhar muito mais do que a média conseguirá ser reconhecida pela empresa e subir profissionalmente, sem precisar da ação coletiva do sindicato. E isso é verdade. O problema é que a fórmula funciona para um trabalhador em milhares. Analisada a história com atenção, constataremos que não há concessões da burguesia, todos os direitos existentes são frutos das lutas coletivas dos trabalhadores.
A vida duríssima do trabalhador (desemprego, baixos salários, péssimas condições de trabalho etc.), dificulta que ele pare para refletir sobre questões de grande importância. A situação é tão desfavorável que o trabalhador nem quer parar para ouvir os argumentos dos sindicalistas, independentemente do assunto. Dessa forma, textos e materiais em geral produzidos pelo sindicato não são lidos pela maioria dos trabalhadores. Ou por falta de tempo, medo, desinteresse, falta de curiosidade etc. Também o assédio moral e a superexploração dificultam muito o trabalho dos sindicatos.
O trabalhador, pressionado pelo conjunto de dificuldades, muitas vezes espera do sindicato vantagens de caráter assistencialista, as quais a entidade não consegue oferecer, por crescentes limitações financeiras. É certo que o assistencialismo não deve ser praticado pelo sindicato como um fim em si mesmo. A assistência não é função da entidade sindical, que nem dispõe de recursos para praticá-la. Porém, dada a extrema gravidade da crise econômica atual, de desemprego recorde e franco empobrecimento da classe trabalhadora, se o sindicato dispuser de condições, penso que ele deve amparar o trabalhador em suas dificuldades. Normalmente, não existe ação sindical em meio à fome.
Não me refiro à assistência social tradicional, acrítica e como um fim em si mesmo. É uma ajuda que o sindicato pode prestar ao trabalhador desempregado de sua base, se isso não ameaçar a sua própria sobrevivência. Mas sempre vinculando a referida ajuda a um processo de formação básica sobre sindicalismo, deixando claro para o trabalhador que sua situação não é uma fatalidade, e sim resultado direto da exploração que ele sofre.
Uma grave dificuldade da ação sindical é que, historicamente, há uma sonegação à população em geral e à juventude, da história dos direitos e dos sindicatos. Isso ocorre na escola tradicional, nas instituições, nas empresas, nos meios de comunicação etc. A história em geral é desconhecida, mas principalmente a história dos trabalhadores, que são maioria absoluta da população. Em consequência, uma parcela significativa da população, especialmente a juventude, supõe que os direitos existentes “caíram do céu”, ao invés de serem frutos de décadas de muita luta. Essa visão a-histórica dos direitos, por ironia, está sendo violentamente negada pela história recente, a partir do golpe de 2016, quando os direitos foram destruídos em escala e velocidade industriais.
A tarefa de sindicalização requer conhecimento do sindicato e de algumas noções de economia e de política, que a maioria dos trabalhadores não dispõe. Um fenômeno que dificulta a sindicalização também é a política antissindical, com a disseminação de calúnias, associação do sindicato com desemprego, ou com corrupção e, inclusive, demissão em caso de filiação ao sindicato. Esse conjunto de ações dificulta muito o trabalho sindical, porque a empresa exerce grande influência sobre o trabalhador, na medida em que a vida deste e de sua família dependem do emprego.
José Álvaro Cardoso é economista coordenador do DIEESE/SC e colunista do Portal Desacato.