Por Elaine Tavares.
A cena está gravada na memória de quem conhece a saga do libertador Simón Bolívar. Depois da pesada derrota da primeira tentativa de libertação, como um soldado de Francisco de Miranda, Simón é desterrado da Venezuela e vai para a Jamaica. De lá, ele busca apoio da recém liberta nação haitiana, comandada pelo valente Petión. Nas conversas com o líder negro, Simón pede armas e dinheiro para voltar à Venezuela e levar à cabo o processo de libertação da metrópole espanhola. Mas, além disso, insiste numa outra contribuição, que considera a mais importante de todas: uma prensa. Como um homem da ilustração, Bolívar acreditava que a batalha, para além do campo das armas, também tinha de ser travada no campo das ideias. E, para isso, o jornal deveria circular por todos os lugares na colônia.
Assim, quando os navios começam sua viagem de regresso para a Venezuela, ele insiste numa parada em uma das ilhas do Caribe. Seus assessores diretos pensam que o que ele quer é estar nos braços de uma anônima dama. Mas não. Quando volta para o navio traz nos braços aquela por quem realmente esperava com profunda ansiedade: a prensa. Com ela, grudada na garupa do cavalo, ele atravessaria as planícies e os Andes, nas suas campanhas de libertação. Dali, sairiam as palavras que incendiaram também todo o continente. “Notícias, Notícias… isso é o que interessa ao povo”, dizia, inflamado.
Não é sem razão que quando instala o Conselho de Estado, em 1817, ele afirma: ” a primeira força para a criação de um Estado é a opinião pública. A consideração popular, que saberá inspirar o Conselho de Estado, será o mais firme escudo do governo”. Ele via como absolutamente necessário cuidar do espírito público e entendia que sem o seu auxílio, a força física apenas produziria um efeito precário. É que naqueles dias, os veículos de imprensa estavam todos nas mãos dos realistas. Por isso, os jornais que criaria se levantariam contra o monopólio e o despotismo.
O primeiro jornal criado por Bolívar é o Correio do Orinoco, instalado na solidão de uma região esquecida, e que, segundo ele, seria o aríete da empresa libertadora. Simón tinha clareza de que era preciso firmar a opinião pública. Sempre citava as palavras de Napoleão: “Quatro jornais hostis fazem mais danos do que 100 mil homens na batalha”. Assim, numa Venezuela tomada pelos realistas, o jornal serviria para abrir uma cunha na cabeça do povo. Apesar do alto nível de analfabetismo, os jornais, naqueles dias, tinham uma aura quase mágica, sempre funcionando como um argumento de autoridade. Se estava no jornal, devia ser verdade. Bolívar usaria isso a favor da causa da integração.
No primeiro número do jornal, lançado em 27 de junho de 1818, um dos decretos de Bolívar, publicados com destaque diz: “Determinar que se instruam três jovens na arte da prensa. Será dada preferência aos que sabem ler e escrever corretamente. Esses jovens serão mantidos pelo Estado e, assim que tiverem instruídos, serão colocados convenientemente”. No editorial, Bolívar anunciava o que considerava as primeiras necessidades da revolução: moral e luzes. “A escravidão é filha das trevas. Um povo ignorante é instrumento cego de sua própria destruição”. Lembrava ainda que estavam num país que não tinha visto mais livros do que os que trouxeram os espanhóis “para dar ao povo lições de barbárie”, e era preciso que houvesse outros pontos de vista para que a nação pudesse pensar por si mesma.
A partir daí Bolívar passou a ser um semeador de jornais, não na Venezuela, mas nas demais repúblicas que iam sendo criadas. Tinha, inclusive, um, que era volante, o “Sentinela em Campanha”, o qual ia imprimindo na sua prensa móvel por todo o território onde andava peleando. Nas folhas, ele contada das batalhas, fazendo a crônica dos acontecimentos e também publicava seus proclamas.
Toda a proposta de mundo que a revolução trazia era impressa nos jornais. Ali, Bolívar defendia a soberania do povo, explicava como seria a divisão dos poderes, a liberdade civil, pregava o fim da escravidão e a liberdade de pensar e escrever. “Conjuro a todos para que não fiquem em silêncio, que escrevam, que difundam as luzes e instruam seus compatriotas”. Bolívar acredita que a imprensa livre era uma espécie de tribunal espontâneo, um órgão capaz de disseminar os pensamentos alheios, livre de preconceitos e coação. “Ao dizer a verdade, a imprensa é fiscal da moral pública e freio das paixões”.
E foi assim que os jornais começaram a nascer em todos os lugares, sempre promovendo a integração entre as repúblicas novas. Era política editorial de Bolívar jamais inflamar república contra república. O projeto visava basicamente promover a unidade, contra os perigos exteriores e contra as oligarquias locais. Por isso são muitas as cartas que ele escrevia para os partidários da libertação no Peru, pois os jornais de lá falavam mal de Bolívar e contra as leis, criadas por ele, que distribuíam terra aos indígenas. E, além das cartas indignadas, escrevia também artigos em resposta, exigindo que fossem publicados. “Não posso deixar que importante fato tenha uma só versão”. Era já o começo da oposição que levaria à derrocada do projeto da Grande Colômbia.
Mas, enquanto estava no comando, Bolívar definia a política de comunicação. E era reconhecido pelos inimigos nessa sua obsessão pela disputa da opinião pública. Tanto que a Gazeta de Caracas, jornal realista, dizia: “A imprensa é a primeira arma de Bolívar, dela sai o incêndio que devora a América e é por ela que ele se comunica com o exterior”. Essa era a mais pura verdade. O Correio do Orinoco, como primeiro e principal veículo da libertação, buscava noticiar os principais fatos que aconteciam em toda a América e era levado, de navio, para a Europa, para que pudesse circular nos mais importantes centros de pensamento. Com o discurso sempre focado na unidade latino-americana, o jornal trazia também textos de publicações estrangeiras que falavam das lutas de outros povos. Os resumos e traduções eram feitos pelo próprio Bolívar, que usava essas informações a favor da independência. Ao mostrar a luta dos demais povos ele incentivava seu povo a unir-se na luta local.
Outra diretiva importante dos veículos comandados por Bolívar era a crítica impiedosa que eles deveriam fazer à administração pública, denunciando qualquer desmando, mesmo nos momentos mais duros da guerra. Ele considerava a corrupção como o delito mais grave que alguém poderia cometer, porque ia contra a fé do povo. Assim, defendia que a imprensa deveria ser a “sentinela contra todo o excesso e omissão”, mantendo a opinião pública sempre em alerta e fiscalizando o governo em cada passo.
Simón era um “escrevinhador” compulsivo e, se não escreveu livros, deixou, nas cartas e artigos de jornais, toda a sua visão de mundo, seus sonhos e seus ideais. No campo do jornalismo ele também fazia questão de fazer circular por toda a América liberta, as suas contribuições. Muitas vezes ficava indignado com a falta de bons jornalistas, porque entendia que o jornal devia informar bem, daí sua preocupação com a formação de jovens para a escrita. Também no campo da estética ele dava seus palpites. Exigia que o jornal fosse bem cuidado no desenho e na impressão. “A forma do jornal deve ser agradável, para encantar”. Tinha uma dedicação especial aos títulos.
Acreditava que era por ali que pegava o leitor. “Há que chamar a atenção e captar a admiração do leitor. Há que ganhar seu interesse com coisas úteis e um estilo simples, mas elegante, de grande dignidade”. Outra de suas invenções, lá pelo ano de 1823, foi a criação do gênero “variedades” nos jornais que comandava, bem como nas folhas volantes que distribuía por onde passava. Nessa seção ele insistia que os textos deveriam ser leves, divertidos, picantes e brilhantes. Faziam sucesso.
Essa faceta de jornalista de Simón Bolívar vem se somar ao gigante que ele foi em todo o processo de libertação, seja como estrategista militar, guerreiro, político, articulador. Um homem capaz de empunhar a espada com a mesma energia com a qual empunhava a pluma. Fazia a guerra nas duas frentes e fazia bem. Não bastasse isso, ainda gastava suas noites, entre um artigo e outro que inflamaria as gentes para a libertação, com ardentes cartas à sua amada Manuela Saenz. Fez da palavra o seu aríete, com o qual enfrentava tudo na vida. Como homem de seus tempo, estava certo de que aquele era o tempo das luzes e que elas só viriam pelo esclarecimento da opinião pública.
Causou inveja e ódio aos inimigos que não suportavam sua política de unidade, integração, moralidade e intensa divulgação dos fatos. Como sempre, quem pensa em dominar não quer saber de opinião pública bem informada. Não era o caso de Bolívar. Tinha a firme convicção que só com as pessoas cientes dos fatos e dos problemas, seria possível construir um bom governo. Sua política de transparência, o desejo de informar e fiscalizar, foram alguns dos pontos que levaram a sua derrocada. Depois de ter incendiado a América com sua espada e com suas palavras, ele foi traído pela maioria dos seus generais, perseguido e finalmente morreu, abandonado e só.
Mas, como fez da palavra o centro do seu mundo, elas sobreviveram a ele e estão aí, até hoje, iluminando seu tempo e inspirando novas gerações. “Como fazem falta bons jornalistas”, dizia, tão atual. “Notícias, notícias, textos úteis. É o que interessa”, conclamava, mais atual ainda. Naqueles dias, como hoje, também há que se travar a luta, intensa, contra o monopólio e o despotismo. E assim, da larga noite da história, Bolívar desperta, chamando para a luta, também nesse campo: o do jornalismo.
* Texto escrito a partir do trabalho de pesquisa de Ignácio de La Cruz, consolidado no texto: Bolívar – su concepción de periodismo. Editado pelo Ministerio del Poder Poder Popular para la Comunicación y la Información; Julío, 2009. Venezuela.
Imagem tomada de: enigmabolivar.wordpress.com