Por Thais Reis Oliveira.
Os estudos de Silvia Federici sobre o passado são frequentemente interrompidos por uma pergunta insidiosa. Por que, apesar dos avanços, os feminicídios parecem crescer no mundo? Parte das respostas está no recém-lançado livro Mulheres e Caça às Bruxas, motivo da visita da pensadora italiana a São Paulo para uma disputada rodada de conferências em setembro. A obra retoma os temas de seu ensaio mais famoso, Calibã e a Bruxa, no qual defende que a perseguição se relaciona com as raízes do capitalismo e com a atual violência contra as mulheres. Federici será uma das estrelas do seminário “Democracia em Colapso”, promovido pela Editora Boitempo e apoiado por CartaCapital. Também esteve na Bahia e no Maranhão.
CartaCapital: Por que, mais de cinco séculos depois, voltar a falar de caça às bruxas?
Silvia Federici: A caça às bruxas não terminou. Ainda hoje na África, na Índia e em partes da Ásia milhares de mulheres acusadas de bruxaria são queimadas vivas. Jamais houve na História uma perseguição tão diretamente organizada para fustigar mulheres. Que as acusou de serem inimigas de Deus, da sociedade, da humanidade. Hoje se recupera o discurso contra as bruxas por existir um feminismo que reivindica essa imagem.
CC: E como essa história se relaciona com o capitalismo?
SF: A caça aos pobres, a conquista da América Latina, a escravidão… Tudo isso foi historicamente reconhecido como processo fundamental da construção da sociedade capitalista. O que ficou de fora é a perseguição às mulheres. A caça às bruxas foi, em linhas gerais, um grande ataque à posição social feminina. Redefiniu a reprodução, a divisão sexual do trabalho. Houve caça às bruxas no Brasil, nos séculos XVI e XVII, sabia? As mães de santo do candomblé foram culpadas pelas revoltas dos escravos.
CC: A senhora diz que seus estudos sobre os feminicídios do passado são frequentemente interrompidos pela incógnita da explosão do presente. A que conclusões chegou?
SF: Hoje não nos queimam, mas nos matam, nos esquartejam. Eu me recordo do trabalho de Rita Segato, antropóloga e feminista argentina, que entrevistou muitos integrantes das maras, gangues da América Central. Esses jovens lhe disseram que matam mulheres para mandar recados a outros homens. Alguns provam sua força matando a mulher que amam. São garotos que viram seu bairro pegar fogo, que viram suas mães serem assassinadas. As mulheres estão no centro dos ataques, institucionais e individuais.
“O capitalismo explora os homens, mas deu a eles uma serva. O que chamam de amor é trabalho não pago”
CC: Por que, apesar de mais e mais gente sofrer de formas inomináveis, uma revolução parece tão distante?
SF: A vida é tão miserável que atravessar um dia após o outro é uma vitória. Muitas vezes, os indivíduos não querem se mobilizar porque pensam: “Bom, vou piorar minha situação”. Nos Estados Unidos, a expectativa de vida diminuiu, cresceram os suicídios. Quem não se mata usa um monte de antidepressivos…
CC: Como o feminismo poderia reagir?
SF: Sabendo que nessa situação não basta apenas dizer não. E também começar a construir, de baixo, outra sociedade. Não seremos capazes de resistir a este ataque sem uma luta que seja também construtora. Quando nos juntamos, nos fortalecemos. O feminismo não te põe como sujeito abstrato. E isso encoraja, torna as mulheres parte de algo maior que elas mesmas, permite superar medos e misérias individuais. Não digo que os homens não possam compreender isso, mas acho que as mulheres entendem melhor.
CC: Quais as suas impressões sobre a nova geração de feministas?
SF: Alegra-me muito ver um novo feminismo que superou as ilusões do movimento dos anos 1970. Grande parte das colegas da minha época foi seduzida pelas Nações Unidas, pelo trabalho mais sociável e criativo fora de casa. Acredito que as jovens têm uma consciência difusa de que a sociedade capitalista não é sustentável. E trazem à mesa um monte de assuntos, todos eles conectados: a violência contra a mulher, a destruição do meio ambiente, a sexualidade binária. Tudo isso é muito rico.
Realismo. Segundo Federici, o atual feminismo tem sido capaz de superar as ilusões do movimento nos anos 1970
CC: O trabalho doméstico ainda é parte da rotina da maioria das mulheres. Quando não, é precariamente remunerado. Como mudar?
SF: O movimento feminista americano e europeu dos anos 70 fez crescer a ilusão de que o trabalho fora de casa era panaceia. Temos visto que não é assim. Isso criou um novo tipo de desigualdade. Acho que a solução é um movimento que una mulheres que trabalham em casa de graça àquelas que o fazem em troca de um salário. Apesar das situações distintas, há um interesse comum: revalorizar esse trabalho. E também reorganizá-lo, criar formas mais coletivas e cooperativas.
CC: E o trabalho sexual? É um tema que divide o movimento…
SF: É claro que o trabalho sexual é um trabalho de exploração, violento. Mas não é o único. O feminismo deve dar mais possibilidades a todas as mulheres, não dizer qual forma de exploração é melhor. É uma visão moralista, míope, e que, no fim, serve para dividir ainda mais as mulheres. Defendo a abolição de todas as formas de exploração. Vender a vagina não é pior do que vender o cérebro.
CC: A senhora tem acompanhado os grupos virtuais de ódio às mulheres, como os incels?
SF: Vou estudar melhor esse movimento, pois sempre me perguntam a respeito. Me parece uma reedição de um grupo dos anos 1980 que reivindicava a retomada de uma posição central do homem, lamentava ter “deixado” a mulher sair de casa… Um horror, uma hipocrisia. Se o capitalismo explora os homens, deu também a eles uma serva. Que serve a três patrões: A eles, às crianças e ao capital. A exploração da mulher envolve todo o seu corpo: os sentimentos, a procriação, a sexualidade. É um modelo de exploração muito mais invasivo do que o masculino. O que chamam de amor é trabalho não pago.
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