Por Luísa Pécora.
Em um cena do longa-metragem Os Pobres Diabos, a personagem de Silvia Buarque, Creuza, faz um desabafo: “Artista precisa de aplauso, artista precisa de público”. Ela se se refere ao decadente circo do qual faz parte, após mais uma apresentação vazia que mal paga a conta de eletricidade. Mas o comentário parece se aplicar, também, ao próprio cinema nacional. Afinal, para muitos lançamentos, chegar às salas e aos espectadores ainda é tarefa difícil.
Certamente foi o caso de Os Pobres Diabos, que estreia nesta quinta-feira (6), quase quatro anos após receber o prêmio do júri popular no Festival de Brasília. Dirigido por Rosenberg Cariry, o filme acompanha a difícil vida da trupe do Gran Circo Teatro Americano durante uma parada pela cidade cearense de Aracati.
E se a espera para chegar às salas foi difícil para a equipe, também teve um lado positivo: “Acho que o filme está mais atual do que quando foi rodado”, disse Silvia, em entrevista ao Mulher no Cinema, traçando um paralelo entre a trama e a dificuldade de se produzir arte no Brasil. “Há uma melancolia por trás deste filme. E a gente está vivendo um momento muito mais do que melancólico: a gente está vivendo um momento de desmonte cultural trágico.”
Filha da atriz Marieta Severo e do cantor Chico Buarque, Silvia começou a atuar aos 16 anos, marcando presença mais frequente nos palcos do que nas telas. O convite para interpretar Creuza lhe pareceu uma chance não apenas de fazer cinema, mas também de interpretar uma personagem diferente das que costumam lhe oferecer: “Ela é uma mulher com um shortinho jeans curtíssimo, com uma vulgaridade, um mau humor. Ela é muito diferente de mim, em todos os aspectos.”
Na entrevista a seguir, a atriz fala sobre a preparação para o papel, sua ligação pessoal com o circo e sobre como Os Pobre Diabos alerta para a necessidade de se valorizar o artista no Brasil.
Os Pobre Diabos mostra a importância do circo na cultura nacional. Você tinha relação afetiva com esse universo?
Tinha. Quando era criança, nos anos 1970, havia um circo que volta e meia chegava a um terreno baldio perto da minha casa, na Zona do Sul do Rio de Janeiro, coisa inimaginável hoje em dia. Meu pai gostava de levar a gente, devo ter ido umas três ou quatro vezes. Me lembro, por exemplo, de que não ria do palhaço, mas era apaixonada pela corda bamba, pela parte mais acrobática. Tenho lembranças nítidas [dessa época].
E como foi entrar nesse universo para fazer o filme e se preparar para o papel?
Não tive a oportunidade de ir ao circo de novo, adulta, pois tivemos cinco semanas muito intensas [de filmagem] em Aracati. Como [no filme] há uma peça [que se passa durante a apresentação circense], além de filmar a gente [a equipe] se encontrava para passar umas duas horinhas estudando o número teatral dentro do circo. Também vi e revi Bye Bye, Brasil[filme de Cacá Diegues lançado em 1979] e me inspirei muito na personagem da Betty Faria. Mas a preparação foi no set.
Em uma entrevista ao jornal O Povo você disse que ficou feliz em ser convidada para interpretar a Creuza porque era uma personagem “fora do seu padrão”. O que você quis dizer com isso?
Quis dizer que muitos atores têm alguns estigmas. E não é culpa deles – existem coisas muito aprisionadoras nos castings. Por sorte, não tenho nenhum estigma: posso fazer pobre, posso fazer rica… Mas, de qualquer jeito, acredito muito no chamado temperamento do ator. Pessoalmente, sou mais para extrovertida. Mas como atriz, acho que tenho um temperamento mais contido. [Talvez] por acaso, não sei dizer o motivo. E se tem um lugar por onde nunca passeei, é por uma mulher “vulgarérrima”. Também nunca tinha sido chamada para fazer uma nordestina, embora tenha ascendência pernambucana. Mas [é uma personagem fora do padrão] principalmente por esse lado de ser uma mulher com um shortinho jeans curtíssimo, com uma vulgaridade, um mau humor. Ela é muito diferente de mim, em todos os aspectos. Acho que foi uma escolha corajosa do Rosenberg. Foi [uma personagem] bem difícil.
Por quê?
No primeiro dia de filmagem, fui até exagerada. [Foi preciso] equalizar. O Rosenberg me puxou para um canto, a gente bateu um papo e aí a coisa andou. Em relação ao sotaque, também. Ele queria que eu falasse um sotaque puxado para o nordestino, mas ao mesmo tempo você não sabe de onde [a personagem] é. O circo tem essa coisa de ir arregimentando as pessoas por onde passa, e teoricamente ela poderia até ser carioca – mas isso seria muito preguiçoso da minha parte. Então ela não é necessariamente cearense, o sotaque às vezes puxa para o baiano, mas também não é muito carregado…
Há uma cena em que sua personagem diz que artista precisa de público e de aplauso. Me pareceu um comentário sobre o próprio cinema nacional, que muitas vezes tem dificuldade de chegar às salas. Você vê esse paralelo?
Vejo esse paralelo cada vez mais. Acho até que o filme está mais atual do que quando foi filmado, há quatro anos. Sou uma atriz que faz mais teatro, e esse filme é sobre resistência, sobre teimosia. É assim que me sinto fazendo teatro: somos uns teimosos. Tem uma frase, que me contaram que é da Margaret Tatcher [a reportagem não conseguiu confirmar a autoria], que [diz que] não precisa dar dinheiro para esse povo da arte, não, porque eles fazem de qualquer forma, não deixam de fazer [por falta de financiamento]. Isso é verdade, mas não é uma verdade bacana. Não é para a gente ficar se vangloriando disso, porque pagamos as contas como qualquer cidadão. Tem uma melancolia por trás deste filme. E a gente está vivendo um momento muito mais do que melancólico: a gente está vivendo um momento de desmonte cultural trágico. Pelo menos no Rio de Janeiro. Aqui [em São Paulo] também, eu acho.
Em tempos politicamente acirrados há reações como, por exemplo, as de quando o Ministério da Cultura foi extinto. Muita gente disse “do que estão reclamando?”, “artista é vagabundo”, “vive de Lei Rouanet”…
Sim, e a Lei Rouanet, por exemplo…existe uma má vontade em relação a ela que é pura falta de conhecimento. E a imprensa tem muita responsabilidade nisso, porque faz as pessoas acreditarem que a Lei Rouanet é dinheiro do governo entregue para o artista, quando não é isso. É uma lei de incentivo que aliás tem muitas deficiências, na minha opinião, exatamente por colocar o artista no mercado. Levar o carimbo da Rouanet é a coisa mais fácil do mundo: a gente faz aqui nós duas um projeto bonitinho, honesto, e ele vai ser aprovado. Mas a gente vai passar um ano, dois, cinco [buscando financiamento], talvez nunca [consiga]. Então existe uma desmoralização do artista, que é muito perigosa. Fora as coisas que a gente tem visto por aí: artistas sendo achincalhados, o desejo de ver o artista falhar. [O clima] está muito pesado.
O filme é melancólico, mas também é uma valorização do artista?
É, super. É uma homenagem.
E que conselho você daria para as mulheres que querem ser atrizes?
Fazer faculdade de teatro. Eu não fiz, mas se voltasse aos meus 16 anos, que foi quando comecei – e lá se vão quase 32 anos…sinto falta de base teórica. Hoje a gente vê as pessoas querendo ser atrizes porque, com todas as contradições, ainda é uma profissão de muito glamour. E as pessoas querem estrear na Globo, né? Então daria o conselho de estudar.
Veja o trailer de Os Pobres Diabos:
Fonte: Mulheres no Cinema.