Sessão na Câmara de Vereadores homenageou Movimento Negro, mas a Consciência Negra ainda não existe

Por Claudia Weinman e Pedro Pinheiro, para Desacato. info. 

A sessão realizada na Câmara de Vereadores, na noite de quinta-feira, dia 17 de novembro de 2016, teve como objetivo homenagear o “Dia da Consciência Negra”, uma proposição feita pela Vereadora Maria Tereza Capra. Um tema não muito comum para este espaço que normalmente não comporta o número de pessoas quando trata-se de homenagens referentes a outras etnias. Como na história, a questão da negritude, dos indígenas, dos/as caboclos/as não é colocada para discussão, muito menos, para homenagens. Nesta semana inclusive, alguns meios de comunicação locais, questionaram o fato de se estar promovendo uma ‘sessão solene’ para os negros.

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Sessão realizada na noite de quinta-feira, dia 17.

Nas falas dos Vereadores, embora a intenção fosse ‘homenagear’ negros/as pela dívida histórica que a sociedade possui também com os negros e negras, dizeres como: “Essa gente de cor”, ou então, uma poesia lida por uma das Vereadoras que reforçou o pensamento de preconceito contra a população negra empobrecida, dizia que “Todo mundo tem oportunidades, basta esforço”, acabam mostrando que o ser humano ainda precisa fazer muita discussão e estudo para entender que para a manutenção do sistema capitalista, há necessariamente, que existir a divisão de classes, os que passam fome e não tem os mesmos privilégios que pessoas brancas favorecidas por outros fatores.

Milton Santos já dizia que na sociedade capitalista que vivemos, existem os que tem fome e os que de fato não dormem por medo da revolução que os que tem fome podem fazer. Nesse sentido, cabe destacar que historicamente movimentos como o que surgiu em São Miguel do Oeste, por meio da Associação Afrodescendentes (Afrodesmo), possuem um sentido de ‘ameaça’ para a ordem local e do país.

Nas falas da Presidente da Afrodesmo, Isete Carmen Lourenço, uma contextualização sobre a importância de levar para a Câmara de Vereadores, um debate um pouco mais aprofundado sobre a negritude no Brasil. Ela também ressaltou sobre a conjuntura brasileira e quem serão os mais afetados com os projetos que tramitam em nível nacional. “Você não negro e não negra, comece a estudar. Não é luta partidária o que está acontecendo no Brasil, mas é uma forma de dizer: ‘não te quero aqui pobre, não te quero aqui negro’. Gostaria de saudar os/as estudantes secundaristas, quem está ocupando o espaço das escolas e universidades, que por direito é nosso, é do povo”, destacou.

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‘Boate Kiss’, 242 pessoas mortas. Jovens negros assassinados no Brasil: 30 mil, corresponde a 124 ‘boates kiss’ por ano. Porque isso não ‘comove’?

Isete também falou sobre os fatos que são selecionados para ‘comover’ a sociedade. “Lembram do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria? Foram 242 pessoas mortas. E sobre os 30 mil jovens assassinados no Brasil? Sendo 77% negros e negras, correspondendo a 124 ‘boates kiss por ano’. Se isso não te choca, algo está errado naquilo que você aprendeu do que é ser gente”, questionou.

O Jovem Wesley de Souza Padilha, militante da Pastoral da Juventude Rural (PJR) e Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), também falou desconstruindo a ideia de que ‘todos e todas têm a mesma oportunidade’. “A juventude negra e periférica de todo o Brasil não tem as mesmas oportunidades porque vivemos no sistema capitalista. Esse momento de hoje é mais do que importante, é um espaço que temos para dizer que raça é humana, e que nós somos povos mestiços, de outras etnias, somos essa mistura bonita desses povos, somos brasileiros. E antes que eu esqueça: Fora Temer”.

A Vereadora Maria Tereza Capra, também agradeceu a presença da Afrodesmo, dos movimentos, pastorais, grupo de capoeira, Cras do município de São José do Cedro e todas as organizações presentes. Os Vereadores questionaram a falta da comunidade que não participou da sessão da Câmara, já que, em outros momentos, durantes as homenagens para outras etnias, o plenário sempre é preenchido por um grande número de pessoas.

Acompanhe alguns depoimentos feitos durante a sessão:

“Todo mundo tem as mesmas oportunidades”

A desconstrução desse discurso que remete a pensar que todos e todas possuem as mesmas oportunidades é relevante, para entendermos que na sociedade classista que vivemos, os indígenas, negros/as, caboclos/as por exemplo, sempre sofreram com a expropriação de suas terras, como no Oeste Catarinense também se fez. Embora muitas pessoas digam que não possuem ‘culpa’ sobre o passado, é importante evidenciar que os privilégios que muitos e muitas de nós possuímos hoje, foi conseguido por meio de muito massacre, genocídio, extermínio de populações inteiras. Por isso, a dívida histórica com os indígenas, caboclos/as, negros/as, existe e deve ser discutida. Neste espaço, vamos trazer um dos elementos que legitima o que estamos afirmando, baseado também, no estudo científico, para quem cabe considerá-lo.

A lei de terras e a legitimação da propriedade privada

A Questão Agrária brasileira sempre foi um reflexo do Latifúndio. Após a chegada portuguesa, o território colonial foi dividido em 15 capitanias hereditárias, e cada uma delas foi entregue como concessão a nobres que deveriam administrá-las e pagar impostos para a coroa. Esse primeiro capítulo da história do Brasil aponta conflitos de portugueses contra indígenas. “Os poucos colonos que aqui chegavam iam logo tomando as terras dos indígenas e tentando escravizá-los. Lógico que os índios reagiram, mas muitos eram tomados como cativos. Ou quando não podiam enfrentar o inimigo, embrenhavam-se cada vez mais no interior” (MORISSAWA, 2001, p. 58).

Os conflitos entre indígenas e não indígenas estiveram ligados principalmente a questão da terra. De um lado estavam os que viam a terra como fonte de recurso econômico e de outro, os que tiravam dela o sustendo para sobrevivência. No caminhar da história do Brasil ainda surgiram mais personagens, os negros/as. Os mesmos foram trazidos do continente Africano a força, para alimentar a mão-de-obra na colônia, assim como acontecera com os indígenas no início da colonização portuguesa. Ambos os povos não aceitaram pacificamente suas condições, e durante o processo histórico, houveram revoltas e manifestações. Além desses fatores comuns com negros e nativos, no século XIX implantou-se a Lei de Terras, que excluía ambos de sua posse.

Percebendo ser inevitável o fim da escravatura, e também diante dos conflitos por terra em várias regiões […], a Coroa brasileira estabeleceu uma lei restringindo o direito de posse da terra. Isso para que os ex-escravos, os brasileiros pobres, os posseiros e os imigrantes não pudessem se tornar proprietários, mas sim constituíssem a mão-de-obra assalariada necessária nos latifúndios. Por essa lei só poderia ter terra quem as comprasse ou legalizasse as áreas em uso nos cartórios, mediante o pagamento de uma taxa para a Coroa. Portanto a Lei de Terras significou o casamento do capital com a propriedade da terra. Com isso a terra foi transformada em uma mercadoria à qual somente os ricos poderiam ter acesso (MORISSAWA, 2001, p. 70-71).

É importante salientar que a Lei foi instaurada pós independência do Brasil, portanto, foi uma lei brasileira e não mais portuguesa. A partir disso, todo o princípio de relação do indígena, do negro com a terra, foi mais de exploração do que propriamente vida, como cultivavam na sua essência.

A nova Lei de Terras teve seu Regulamento aprovado pelo Decreto nº. 1318, de janeiro de 1854, e as exigências legais e de recursos para regularização das posses, então existentes, estavam longe das possibilidades dos sertanejos agricultores (caboclos) e dos próprios índios. Favoreciam apenas os setores dominantes da sociedade, com acesso à informação e as círculos do poder, que acabam titulando para si enormes extensões de terras (que nem chegavam a conhecer) com o fim único de lucrar com a revenda a empresas colonizadoras ou diretamente a colonos. (D’ANGELIS, 2006, p. 299).

Assim, a terra tornou-se mercadoria, cujos participantes de sua compra, eram pessoas que tinham poder econômico para obtê-la. Diferentemente das populações nativas, que passaram a ter a sua força de trabalho explorada pelos imigrantes europeus e muitos se afugentaram. A Lei de terras definiu um novo momento na história.

O processo de ocupação do território Oeste Catarinense, historicamente foi conflituoso e pode ser citado aqui para esclarecer ainda mais o processo de extermínio de indígenas, negros/as, caboclos/as. Se atualmente verifica-se conflitos de indígenas e não indígenas, anteriormente existiram uma série de disputas entre países europeus e posteriormente nações latinas. Após o “descobrimento” da América, Portugal e Espanha rivalizavam uma disputa territorial por tudo o que hoje é o Sul do Brasil, e portanto, o Oeste de Santa Catarina não ficou de fora. Depois dos processos de independência nos países Latinos, Argentina e Brasil novamente travaram lutas por essa região, tendo ganho de causa ao Brasil.

A região oeste de Santa Catarina foi, de fato, uma área de muitas disputas. Inicialmente, entre Portugal e Espanha; num segundo momento, entre Brasil e Argentina e, num terceiro momento, entre Paraná e Santa Catarina, originando, inclusive, a Guerra do Contestado (1912-1916), quando só então se definiu que o território pertencia ao estado de Santa Catarina. Para manter o território conquistado do Paraná era preciso “povoá-lo”, para tanto, investiu-se num intenso processo de colonização. […] (PAIN, 2006, p. 125).

A Guerra do Contestado foi outro capítulo de disputa pela terra. Nesse conflito envolveram-se, além dos estados do Paraná e Santa Catarina, fazendeiros e empresas multinacionais que disputavam a terra com a população cabocla e indígena, pessoas que habitavam a região, mas que não tinham o registro da terra. Quando findou os conflitos do Contestado, tendo em vista o massacre da população cabocla, era preciso “povoar” a região. Nessa época também os municípios de Chapecó e Cruzeiro (Joaçaba) foram emancipadas, conquistando seu poder político-administrativo.

Mesmo após a emancipação político-administrativa de Chapecó e Cruzeiro (atualmente, município de Joaçaba) ocorrida em 1917, a Região Oeste de Santa Catarina era considerada praticamente “despovoada”, pois os indígenas e caboclos, por possuírem modos de vida diferente, não produzir excedentes para comercialização, e não possuir títulos de propriedade, eram desconsiderados pelas autoridades. Para “povoar” o Oeste e garantir a posse das terras, o governo estadual de Santa Catarina distribuiu glebas de terras “aos que dominavam política e economicamente a região, e que tinham prestígio suficiente para influenciar essas concessões”. Os beneficiados com as concessões montaram empresas colonizadoras para comercializar as terras. (PAIN, 2006, p. 125-126)

As empresas colonizadoras e também fazendeiros pressionavam o estado para a retirada dos indígenas e caboclos, que mesmo após os conflitos do contestado, habitavam a região. Essas ações se justificavam pela relação desses povos com a terra, afinal, eles não produziam excedentes para comercialização e não tinham a posse documental da terra.

Apesar disso, os fazendeiros continuaram pressionando os Kaingáng, principalmente após o fim da Guerra do Contestado, quando as fronteiras foram definitivamente delimitadas entre os estados do Paraná e Santa Catarina. As Companhias Colonizadoras também pressionavam e, após acordos com agentes do governo como do Serviço de Proteção ao Índio, mais terras foram retiradas dos Kaingáng e colocadas à mercê das madeireiras e, após o desmatamento as mesmas áreas eram vendidas para colonos que se deparava com os indígenas que ainda permaneciam nas matas mais fechadas, chamadas fronteiras agrícolas. Para ‘limpar’ as áreas da presença Kaingáng, os imigrantes contrataram os chamados bugreiros, que atuaram até, pelo menos, a década de 40 no oeste do estado (GOULART, 2006, p. 45).

Para barrar o “atraso” que os indígenas causavam para o progresso, o Estado passou a trabalhar em conjunto com as companhias colonizadoras na liberação das terras para os colonos, criando a companhia de pedestres e mais tarde entraram em cena os bugreiros, ambos tendo como atividades caçar indígenas. […] (GOULART, 2009, p. 42).

Os caboclos e indígenas eram povos indesejados na região. Por questões raciais ou culturais, ou mesmo os dois, os antigos habitantes da região eram coagidos a se retirarem do espaço. Surgiram então os bugreiros, pessoas responsáveis pela caçada aos indígenas. Um termo condicionado a presença dos indígenas na região, era a “limpeza”, ou seja, se comprava as terras sujas ou limpas, com indígenas ou sem indígenas.

Os colonos que compravam as terras no Oeste Catarinense queriam que elas estivessem limpas, ou seja, sem moradores. Para a limpeza da terra os caboclos e os poucos indígenas que ainda viviam foram expulsos de suas terras, pois eram considerados improdutivos. Esses povos, ou foram sendo empurrados para áreas distantes nas matas, ou foram para as cidades, quando não foram literalmente eliminados (PAIM, 2006, p. 126).

As empresas colonizadoras responsáveis pelo “povoamento” da região propagandearam e venderam as terras para os descendentes de alemães e italianos que moravam no Rio Grande do Sul. Houve uma grande migração para o Oeste de Santa Catarina.

[…]Para ocupar as terras foram montadas várias empresas colonizadoras, as quais mandavam agentes de propaganda para o Rio grande do Sul, nas regiões de colonização italiana e alemã, para vender as terras catarinenses. Com esse movimento de vendas de terras, várias famílias de descendentes de italianos e alemães começaram a migrar para a região Oeste Catarinense. (PAIM, 2001, p. 99-100)

A partir de então, oficialmente a posse da terra estava nas mãos de migrantes e considerada como propriedade privada. A prática da agricultura ganhou uma conotação comercial mesmo baseado na agricultura familiar.

Com a vinda dos colonos, estabeleceu-se um sistema produtivo calcado na pequena propriedade, com predomínio da mão-de-obra familiar e de cultivos diversos para comercialização. Os colonizadores dedicaram-se principalmente ao cultivo de milho, cuja comercialização era difícil, uma vez que a fertilidade do solo e consequentemente a produção eram grandes. Para absorver o excedente, os colonizadores iniciaram a criação de suínos que, aos poucos, passaram a serem comercializados em Curitiba e São Paulo, constituindo-se a base para a agroindústria de carnes. Nos anos de 1940 foi instalado em Chapecó o primeiro frigorífico para o abate e industrialização de suínos, com produção modesta e pequeno número de trabalhadores. (PAIM, 2006, p. 126).

Um novo cenário é evidenciado com o desenvolvimento dessas novas formas de produção. A marca da expansão do setor econômico representou a extinção de uma forma de vida baseada apenas na subsistência. Cada vez mais, os indígenas, caboclos/as, negros/as, foram sendo excluídos dessa ‘nova vida’ e nós não podemos desconsiderar a história quando falamos do presente e do futuro.

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