Por Danilo Thomaz.
Fazia seis anos que eu não realizava um exame de HIV e, naquela ocasião, eu estava certo de que o resultado seria positivo e eu seria parte do número crescente de jovens gays (15 a 29 anos) soropositivos em São Paulo. Embora cuidadoso em minha vida sexual, não estava livre do risco da contaminação: havia tido mais de dez parceiros no ano anterior, frequentado festas e clubes de sexo e transado sem camisinha em mais de uma ocasião, ainda que poucas vezes. Para espanto da minha ansiedade – mais que meu próprio –, a amostra, colhida da saliva do alto da minha gengiva por uma espécie de cotonete, deu negativa.
Nunca mais fui o mesmo depois daquele exame que poderia ter mudado minha vida. Estava, na ocasião, em meu sexto mês de análise – lacaniana – e em busca de novas formas de comportamento na minha vida afetiva e sexual. Não estava – como não estou – mais propenso a ambientes de uma sexualidade bruta ou histérica. Queria algo mais verdadeiro – e suave – para mim.
O que eu não percebi, na ocasião, era que parte do meu estilo de vida, do que eu tinha e do que me faltava, não dependia nem fazia parte apenas de mim. Era parte de um contexto em que eu estava – e permaneço – inserido, no qual o preconceito e a violência se inflexionam com a vida social e afetiva dos gays, com graves consequências físicas e psicológicas, sem que haja um debate em torno disso. O mesmo Estado que se ausenta ante 343 assassinatos motivados por homofobia e transfobia – isso apenas no ano passado – é negligente e omisso no desenvolvimento de políticas públicas para a saúde deste setor da população.
A omissão começa pela ausência de dados consistentes, em escala nacional, sobre o impacto da orientação sexual e de gênero no consumo de álcool e drogas, nos transtornos mentais e nas tentativas de suicídio. A exceção é óbvia: o HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis, o que revela per se o estigma que acomete homossexuais e transgêneros. E mesmo nisso o Brasil tem começado a falhar.
País-modelo no combate à aids ao universalizar o acesso ao medicamento antirretroviral, em 1996, o Brasil, na segunda década do século XXI, tem perdido a batalha contra a doença, com o aumento dos casos de infecção, sobretudo entre os mais jovens.
Um levantamento realizado pelo Ministério da Saúde em âmbito nacional, que deve ser divulgado em breve, estima que 23% dos homossexuais masculinos da cidade de São Paulo sejam soropositivos. No Brasil, de 2006 a 2015 a taxa de detecção de casos de HIV positivo entre jovens do sexo masculino com 15 a 19 anos quase triplicou (de 2,4 para 6,9 casos por 100 mil habitantes) e, entre os jovens de 20 a 24 anos, mais do que dobrou (de 15,9 para 33,1 casos por 100 mil habitantes). “Não há campanhas que dialoguem com a população gay”, afirma Ricardo Vasconcelos, médico infectologista da Faculdade de Medicina da USP. “Um menino de 15 anos que começa sua vida sexual não tem onde buscar informação. Então, ele vai encontrá-la no Grindr, no Hornet.”
Fato. Uma rápida visita ao site do Ministério da Saúde leva qualquer um – mesmo heterossexual, branco e cis – a ter certeza de que é soropositivo e pular do exame diretamente para a fila do medicamento antirretroviral. Sexo oral, sexo anal e sexo vaginal são tratados como formas de contaminação equivalentes – ainda que não sejam. Os conteúdos disponíveis em sites e vídeos do YouTube tampouco ajudam: ora transmitem informações vagas e o bordão “Na dúvida, faça o teste e comece logo o tratamento”, ora trazem depoimentos que colocam a vida de um soropositivo no mesmo nível de docilidade de um musical com a Doris Day.
Outro problema apontado por Vasconcelos é a ideia de que a camisinha e a abstinência sexual são a única forma de prevenção ao HIV e às demais DSTs. Mesmo que o SUS, hoje, disponibilize a PEP (Profilaxia Pós-Exposição), que pode ser tomada até 72 horas após uma relação de risco, também há pouca divulgação sobre ela (a única vez que vi um cartaz a respeito foi na entrada na Festa Kevin). Em 1º de dezembro, o SUS disponibilizará em São Paulo e outras capitais a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), que imuniza o corpo ao vírus.
Apesar do avanço que a chegada da PrEP representa, a situação para o tratamento da aids tende a piorar com a PEC 55, que limita os gastos do governo brasileiro em assuntos que não tenham a ver com o pagamento dos juros da dívida pública, que consome 8% do PIB – ante 2,2% da saúde. “O número de pessoas com HIV só aumenta, mas o número de serviços, não. O Brasil tem hoje o mesmo número de ambulatórios para o tratamento do HIV que tinha nos anos 1990. O tempo de espera é de quatro a seis meses”, afirma Vasconcelos. “Nós já vemos o Ministério da Saúde racionando exames de rotina, como o CD4 (células que medem o sistema imunológico do soropositivo).”
O aumento da infecção pelo HIV – e outras doenças sexualmente transmissíveis, como a sífilis – é parte de um estilo de vida presente nos grandes centros que leva ao abuso de álcool, drogas e, portanto, às relações sexuais de risco. Segundo o artigo “Álcool, drogas e violência: implicações para a saúde de minorias sexuais”, publicado em 2015 na revista da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana (SBRH), homossexuais e transgêneros têm até 1,5 mais chance de consumir substâncias psicoativas do que os heterossexuais. De acordo com o psiquiatra Daniel Mori, do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas, esse número pode chegar a ser quatro vezes maior, assim como os índices de depressão e transtorno de ansiedade.
Razões não faltam. Uma delas, em sendo o Brasil o campeão em assassinatos motivados por homofobia, é a violência física e verbal – dentro e fora de casa. “Isso é ainda mais forte entre os transgêneros, por estarem expostos a uma situação de violência e invisibilidade social ainda maior”, afirma Mori, que também vê um déficit na formação de profissionais de saúde para atender esses grupos. “Os profissionais da saúde inferem que as pessoas são heterossexuais e cisgêneros.”
Em ambiente escolar, segundo pesquisa divulgada no ano passado pelo Senado Federal, 73% dos alunos LGBTs foram agredidos verbalmente, 48% ouvem comentários homofóbicos e 27% foram agredidos fisicamente. Ainda que a pesquisa não contemple a questão, o bullying traz também sérias consequências ao desempenho escolar dos estudantes que acabam, por via indireta, tendo seu direito à educação vilipendiado – com consequências futuras. Quem, de fato, vivencia ou vivenciou o bullying – como é meu caso – sabe que se trata de uma pressão semelhante à tortura psicológica, em que cada gesto pode te transformar em alvo e que envergonha muito a vítima – como é comum em casos de abuso. As reações à opressão são seguidas de ameaças – algumas vezes concretizadas; outras, não. Não resta outra opção além de calar-se. Isolar-se. Apagar-se.
Contudo, o programa de combate à homofobia em ambiente escolar, criado em 2012 e taxado pela bancada evangélica e parte da imprensa como “kit gay”, foi arquivado – em nome da governabilidade do primeiro governo Dilma e da campanha de Fernando Haddad à prefeitura de São Paulo. (Faz pensar.)
A chegada à maioridade e à vida adulta representa, para muitos gays, o verdadeiro início da vida – e da liberdade. Raro um gay que não recorde o quanto esperou para completar 18 anos e frequentar baladas gays. Ou, tendo nascido em uma cidade pequena, não tenha riscado cada dia do calendário até a data da mudança para uma cidade grande.
A situação – digo eu que vim de Itu para morar em São Paulo e morei por poucos meses em Madri – de fato é outra. Mas será que o reino de Oz é tão melhor que o provinciano Kansas?
A vida gay nos grandes centros, do Brasil e do mundo, excitante à primeira vista, logo se revela repetitiva – aqui, ali, em qualquer lugar. As festas, depois de um tempo, não são muito diferentes entre si. Os rapazes não são muito diferentes entre si. Nem mesmo o sexo muda muito de um para outro – talvez pela massificação via pornografia virtual.
O natural, com a chegada do tédio, seria o famoso “sossegar”, ou seja, uma vida afetiva estável e adulta. Mas, para a maioria dos gays, essa é uma realidade distante, e a construção de uma vida emocional sólida e adulta é um caminho doloroso – talvez até com mais chances de fracasso do que de sucesso.
Raramente se sabe onde se está pisando: um encontro perfeito é seguido de um desaparecimento sem vestígios, como o da Lila da obra A amiga genial, de Elena Ferrante. Uma série de encontros que se encaminham para o início de um relacionamento não raro acaba em nada – sem nenhuma justificativa. Muitas conversas no Tinder, assim como em aplicativos de sexo – mais comuns entre os gays –, se resumem ao “Oi, tudo bem?”, “Tem foto de rosto?”, “Quantos cm?”, “Ativo ou passivo?”. A depender do rosto, do tamanho do pênis e da posição sexual, podem se encerrar aí mesmo.
Segundo o psicanalista Lucas Charafeddine Bulamah, autor de História de uma regra não escrita: a proscrição da homossexualidade masculina na história do movimento psicanalítico, o universo gay masculino, sobretudo nas classes médias e altas, adota uma tática de grupo que obriga os gays a seguir certo padrão estético. Este é marcado, claro, por físico sarado, determinado corte de cabelo (que varia), roupas justas (quase sempre coloridas) e barba (nos dias de hoje), que geram boas fotos para as redes sociais e aplicativos e alguns olhares nas pistas e dark rooms. “Essa é a forma com a qual o capitalismo inclui os gays, a partir de políticas identitárias, que incluem as pessoas como um produto. Como você tem poucos acessos a outros recursos (por meio do Estado) essa é a única saída para inclusão, uma vez que a exclusão da possibilidade de uma vida relacional é aterrorizante”, afirma. “Você adota um padrão de comportamento que visa mostrar que é ‘mais macho’ do que aquele que o discrimina e acaba, assim, dando razão a ele.”
A resposta a essa falta de vínculo afetivo e conflito identitário é dada por meio do uso abusivo de álcool, drogas e comportamentos sexuais de risco, verificáveis também em outros países do mundo.
Uma pesquisa realizada em outubro de 2016 pelo National Center for Biotechnology Information (NCBI), de Nova York, mostrou que 75% dos homens gays e bissexuais recém-chegados à cidade sofriam de ansiedade, depressão e abuso de álcool e drogas.
Na Inglaterra, um levantamento feito em 2014 pela Public Health England mostrou que homossexuais masculinos são duas vezes mais propensos a sofrer de depressão e ansiedade em comparação com os heterossexuais masculinos.
Segundo amostra da Organização Mundial da Saúde realizada com 172 países, incluindo o Brasil, homossexuais e transgêneros têm até cinco vezes mais chances de cometer suicídio. Na Suécia, um dos primeiros países do mundo a reconhecer o casamento homossexual, o índice de suicídio entre homens casados com homens é três vezes maior que entre homens casados com mulheres.
Os dados mostram uma verdadeira epidemia ignorada até mesmo pelos homossexuais, cuja agenda, no caso brasileiro, ainda permanece circunscrita ao casamento igualitário, à criminalização da homofobia e ao “beijo gay” na novela das nove – conquistado, enfim, há três anos na novela Amor à vida. A realidade de países mais avançados nessa área – como as citadas Inglaterra e Suécia – mostra que possibilitar aos homossexuais ter uma vida comum não basta. “A questão não é se sabem salvar a própria vida”, disse um profissional da saúde de um centro clínico nos Estados Unidos, citado na reportagem “Together alone”, publicada no Huffington Post. “A questão é se eles sabem que sua vida vale a pena.” E isso tem de começar na infância.
*Danilo Thomaz é jornalista formado pela Universidade Metodista de São Paulo. Trabalhou na revista Época, na cobertura política, e em publicações especializadas em economia e na área de comunicação e imprensa de alguns dos principais festivais de literatura e arte do país. Traduziu para o português a peça Six dance lessons in six weeks [Seis aulas de dança em seis semanas], de Richard Alfieri, e participa da coletânea Bicho de 15 cabeças, pela [e]editorial. Ganhou os prêmios Editora Globo de Grande Reportagem e CNI de Reportagem do Ano.
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Fonte: Le Monde Diplomatique.