Por Rubens Valente, para Agência Pública.
BOA VISTA — Um ofício assinado por Chico Rodrigues (PSB-RR), Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e “Dr.” Hiran (PP-RR), três senadores pró-garimpo de Roraima, ao qual a Agência Pública teve acesso, mostra que eles pediram a diversas autoridades de Brasília que os garimpeiros eventualmente flagrados dentro da Terra Indígena Yanomami não sofram “persecução penal”, ou seja, que não respondam a processo criminal. São muitos os crimes atribuídos a garimpeiros que invadem e destroem terras indígenas. Segundo a ANM (Agência Nacional de Mineração), por exemplo, um garimpo do gênero configura “crime ambiental e usurpação de bens públicos” – a terra Yanomami é registrada em cartório como propriedade da União, sobre a qual os povos indígenas têm “sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.
O ofício descreve uma reunião que os senadores mantiveram com comandantes militares e ministros do governo federal após um sobrevôo ocorrido em 9 de fevereiro. “Os Parlamentares ressaltaram às autoridades do Poder Executivo presentes a importância de o Governo Federal implementar, o mais rápido possível, uma operação de emergência para promover o resgate dos trabalhadores que se encontram retidos em áreas de garimpo na Reserva Yanomami, assegurando-lhes a ausência de repressão ou persecução penal no momento de sua retirada, uma vez que foram enredados na atividade de mineração premidos para garantir o próprio sustento e o de suas famílias”, diz o ofício.
O documento em papel timbrado do Senado foi assinado pelo advogado do Senado Edvaldo Fernandes da Silva, “coordenador do núcleo de processos judiciais” do Senado, e pelos senadores Chico Rodrigues (PSB-RR), Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e “Dr.” Hiran (PP-RR), que se apresentam no papel como membros e coordenador, respectivamente, de uma “Comissão Externa do Senado Federal criada para acompanhar a situação dos ianomâmis e a saída dos garimpeiros de suas terras”. O papel é datado de 10 de fevereiro. A citada Comissão foi instalada uma semana depois, em 17 de fevereiro.
O papel teve como destinatários o procurador-geral da República, Augusto Aras, os ministros José Múcio (Defesa), Flávio Dino (Justiça) e Rui Costa (Casa Civil) e os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira. A PGR encaminhou o ofício para sua 6ª Câmara de Coordenação, em Brasília, que por sua vez enviou o ofício ao MPF (Ministério Público Federal) do Amazonas e de Roraima. No documento, no qual anexou o relato dos senadores, a subprocuradora-geral da República Eliana Peres Torelly de Carvalho, coordenadora da 6ª Câmara, escreveu ao MPF dos dois Estados “para conhecimento e providências cabíveis, solicitando a gentileza de nos manter informados acerca das diligências adotadas”.
O ofício produzido pela Advocacia do Senado diz que o pedido dos parlamentares sobre a não persecução penal ocorreu após um sobrevôo na terra indígena ocorrido em 9 de fevereiro. Além dos três senadores, participaram da viagem, “uma operação”, segundo o Senado, o governador de Roraima, Antonio Denarium (PP-RR), os ministros José Múcio (Defesa), Silvio Almeida (Direitos Humanos) e José Juscelino (Comunicações), os comandantes militares Tomás Paiva (Exército), Marcelo Kanitz Damasceno (Aeronáutica), o comandante do Estado-Maior das Forças Armadas, Renato Rodrigues Aguiar Freire, e os deputados federais Duda Ramos (MD-RR), Albuquerque (Republicanos-RR) e Zé Haroldo Cathedral (PSD-RR).
O documento diz que o senador Hiran “destacou extrema preocupação com a situação degradante dos cerca de 20 mil garimpeiros e suas respectivas famílias que ainda não conseguiram sair da Reserva Yanomami”.
Os senadores por diversas vezes denominam a terra indígena como “Reserva Yanomami”, o que é falso – a mesma expressão “reserva” foi transcrita no ofício produzido pela PGR. O território foi homologado em 1992 pelo então presidente Fernando Collor como “Terra Indígena Yanomami” em todos os documentos oficiais sobre o assunto. A troca da expressão “terra indígena” por “reserva” opera para relativizar o pertencimento cultural e jurídico do território ao povo indígena Yanomami, reconhecido pelo Executivo e pelo Judiciário e previsto na Constituição.
A presença de Chico Rodrigues, Hiran e Mecias de Jesus numa comissão do Senado para acompanhar a emergência Yanomami já foi repudiada pelas principais organizações indígenas e indigenistas, que pedem a saída desses parlamentares da comissão. O CIR (Conselho Indígena de Roraima), que representa 261 comunidades indígenas no Estado, disse em nota que os senadores Chico Rodrigues e Hiran “jamais se posicionaram a favor do povo Yanomami e dos povos indígenas de Roraima” durante todo governo de Jair Bolsonaro (2019-2022).
Em maio de 2022, lembrou o CIR, Rodrigues participou de uma diligência promovida pela Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal na terra Yanomami. Ela teve o objetivo de “acompanhar as medidas adotadas pelas autoridades acerca da situação da comunidade Yanomami”. Na ocasião, disse o CIR, o senador Rodrigues “negou que houvesse qualquer violação de direitos dos povos indígenas na TI Yanomami, negando o genocídio em curso”.
“É de se questionar até onde estão infiltrados na estrutura do Estado Brasileiro os representantes dos crimes e interesse dos garimpeiros ilegais no Estado de Roraima. Não aceitamos que grupos políticos usem o Senado para atender interesses escusos. É dever constitucional da referida casa legislativa garantir a proteção aos direitos constitucionais dos povos indígenas. Mas nesse caso da comissão, com a atual presidência da comissão, há claro conflito de interesse”, disse o CIR.
Também em nota, a HAY (Hutukara Associação Yanomami) mencionou que Rodrigues “era dono de avião que circulava no garimpo ilegal na terra indígena Yanomami”. Em 2020, o senador foi “flagrado pela Polícia Federal com R$ 33 mil na cueca”. “Com ele foi apreendida uma pedra que se suspeitava ser uma pepita de ouro, durante uma operação para apurar um suposto esquema criminoso de desvio de recursos públicos para o combate à Covid-19 em Roraima.”
Sobre Mecias de Jesus, a Hutukara mencionou que ele foi denunciado por uma empresa de táxi aéreo, que presta serviços para transporte da saúde indígena na terra Yanomami, por “cobrança de propina, achaque e fraude em licitação”. Durante o governo Bolsonaro, Mecias fez as indicações dos gestores do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami. “A corrupção se instalou no distrito e a nossa saúde foi negligenciada e muitas mortes aconteceram, um verdadeiro plano de genocídio e extermínio do nosso povo”, disse a Hutukara na nota.
Uma terceira organização indígena, a UAY (Urihi Associação Yanomami) lembrou que o senador Hiran votou, quando era deputado federal, a favor do projeto de lei (490/2007) “que inviabiliza demarcações de terras indígenas” e do projeto de lei (191/2020) que tentava autorizar a mineração em terras indígenas. O filho do senador Mecias, Jhonatan de Jesus, também votou a favor do PL 191.
“Vale lembrar que, como povo Yanomami, temos o direito de negar a presença de pessoas que desrespeitem a nossa cultura e nossos saberes ancestrais. Não aceitaremos parlamentares favoráveis à mineração ilegal participando das decisões e ações humanitárias dentro da Terra Indígena Yanomami”, diz a nota assinada pelo presidente da UAI, Júnior Hekurari Yanomami. Ele foi autor de inúmeras denúncias nos últimos quatro anos sobre a degradação da saúde na terra Yanomami.
Na manhã do dia 20 de fevereiro, Chico Rodrigues apareceu na comunidade Surucucu, levado por um avião militar, sem prévia comunicação com as lideranças indígenas Yanomami e sem consultar dois colegas que hoje integram a comissão, Eliziane Gama (PSD-MA) e Humberto Costa (PT-PE). Júnior Hekurari, da UAI, disse aos indígenas na ocasião que Rodrigues representava interesses dos garimpeiros. Mais tarde, Júnior disse, em nota, que o senador surpreendeu com sua “visita indesejada e desrespeitosa”. “Não aceitamos a presença destes transgressores dentro do nosso território sagrado. Nosso protocolo de consulta deve ser consultado e respeitado, mediante ações, decisões e visitas que podem afetar os direitos da população Yanomami.”
No dia seguinte, Rodrigues postou no Twitter que visitou a área “para acompanhar de perto a evolução da situação”. “Em Surucucu, estive no pelotão do Exército e sobrevoei áreas com presença de garimpos.”
Reunião da comissão para acompanhar a situação dos Yanomami e a saída dos garimpeiros
Governo demonstra não ter ainda uma definição sobre prisão ou liberação de garimpeiros
A questão sobre prender ou abrir processo criminal contra os garimpeiros flagrados dentro da terra Yanomami ainda está aberta no governo federal. Numa entrevista à Pública, por exemplo, a ministra dos Povos Indígenas Sonia Guajajara disse que os garimpeiros que não saírem do território serão presos. Já o ministro da Justiça, Flávio Dino, dá sinais de que concorda com o argumento dos senadores pró-garimpo de Roraima. Numa entrevista à TV CNN, por exemplo, Dino disse que tem “duas linhas de trabalho”, a operação da desintrusão e a investigação sobre as pessoas “que coordenam, que financiam” o garimpo. Ou seja, não sobre os garimpeiros, mas sobre os financiadores. Na entrevista, ele alegou que haveria problema para prender os garimpeiros em flagrante dentro do território.
“Nós temos portanto duas linhas de trabalho. […] A desintrusão, tirar as pessoas do território yanomami. […] Isso é uma questão emergencial. Às vezes as pessoas perguntam, ‘mas como?’ Bom, nós vamos prender 10, 15 mil pessoas? E como nós vamos algemar 15 mil pessoas umas nas outras e conduzir exatamente para onde? Então obviamente há uma coordenação, um planejamento, na ação da Polícia Federal, da Força Nacional, das Forças Armadas, cada uma dentro das suas competências constitucionais, e evidentemente os responsáveis serão punidos.”
O tema da prisão ou não dos garimpeiros pela Polícia Federal, contudo, deverá ganhar corpo só a partir de 6 de abril, quando acabará o prazo dado pelo governo para a saída aérea autorizada das áreas de garimpo. Até essa data estão abertos “corredores aéreos”, pelos quais os garimpeiros ainda podem entrar e sair de avião e helicóptero, desde que informem antes aos militares. Depois dessa data, o governo deverá desencadear uma segunda etapa na operação de desintrusão, mais incisiva para a retirada dos garimpeiros. Por enquanto, esse trabalho está sendo feito quase exclusivamente pelas equipes do Ibama e da Funai.