Por Edna Garcia Maciel, para Desacato.info.
O objetivo desta coluna é incentivar a leitura. Uma tarefa impossível? Penso que não. Se conseguir conquistar um ou outro leitor, já valeu a pena. Os escritos apresentados serão escolhidos segundo alguns critérios indicados e, nessa condição, conta a relevância do autor quanto à contribuição ao difícil processo de desvelar o mundo dos homens com seus escritos literários.
Ideias são como plantas. É preciso semeá-las. Às vezes, elas florescem mesmo em condições adversas. Muitas não vingam. As ideias, como as plantas, só criam raízes quando são cultivadas. É trabalhoso ter pensamentos próprios. Mais fácil é adotar ditos alheios, ouvi dizer, ou modernamente, vi na televisão, li sobre o assunto nas mídias que publicam coisas sem cessar. Uma fonte inesgotável de ideias pode ser encontrada na literatura, seja impressa ou eletrônica. Não importa.
Decisivo é a escolha do autor. Como eleger este ou aquele escritor em meio à enorme quantidade de publicações? Penso que livros literários, ou de outra natureza, devem ser selecionados como joias raras, não de um modo qualquer, pois a grandeza de cada escritor está nas respostas que ele dá a questões humanas que a sociedade lhe impõe. “Toda pergunta pode ser feita em qualquer contexto, nem que seja por um ‘par de mulas’. As respostas é que são mais difíceis de encontrar”[1].
Sob esse prisma, a obra não passa de uma espécie de “instrumento óptico oferecido ao leitor a fim de lhe ser possível discernir o que, sem ela, não teria certamente visto em si mesmo[2]. Não foi assim que Galileu Galilei[3], com seu telescópio, demonstrou que a terra girava em torno do sol? E, com isso, quase ardeu na fogueira da Inquisição no século XVIII, porque colocou em questão o conhecimento escolástico e, desse modo, forças sociais que impediam o avanço da ciência. Personagens, paisagens, tragédias humanas, dentre outros procedimentos utilizados em escritos literários, são apreensões de parte do mundo real. Neste sentido, constituem fonte preciosa da arte de pensar.
Por fim, ter ideias próprias pode ser muito perigoso em meio ao obscurantismo que assombra nosso tempo. Elas podem ser caminho de perdição. Brecht[4] diz em seu poema: No nascimento de um filho: “Quando lhes nascer um filho / Façam votos de que seja inteligente./ Eu que pela inteligência arruinei minha vida / Posso apenas desejar / Que meu filho se revele / Parvo e tacanho. Assim terá uma vida tranquila / Como ministro do governo”.
O que há de comum entre Machado de Assis e Bertold Brecht? Embora em formas diferentes – um poema, e um conto -, e de serem escritos em épocas distintas, ambos se referem à pequenez intelectual que comumente constitui a marca de homens bem-sucedidos, sem nenhum esforço, que pertencem ao seleto mundo dos privilegiados que são imitados, copiados e amados pelos frívolos da sociedade.
Machado de Assis: teoria do medalhão
Machado de Assis, em seu irônico e magnífico conto, Teoria do Medalhão[6], narra um diálogo entre pai e filho, no dia em que este completa vinte e um anos. Nesse mesmo dia, o zeloso pai expõe ao seu Janjão, o que ele precisa fazer para ser um homem de sucesso, em meio à elite da sociedade escravocrata do século XIX. Diz que a vida é uma loteria e que os prêmios são poucos. Na vida, filosofa o zeloso pai, há os que se revoltam e praguejam, mas o segredo consiste em aceitar a vida como al é. Desse modo, o pai, protagonista deste conto, expõe ao filho que ele pode, dentre as infinitas carreiras, escolher uma. O mais importante é que se faça grande e ilustre, ou pelo menos, notável. Diante da curiosidade do jovem, o pai explica-lhe que nenhum ofício é mais útil do que o Medalhão. Mas para ser um deles, é imprescindível que ele não tenha ideias próprias. Para vencer esse difícil obstáculo, diz que é necessário submeter a mente e o corpo a um regime debilitante como evitar exercícios físicos, – com exceção do bilhar -, e passar longe das livrarias, fugir da solidão, do terreno propício à criação de ideias. Trata-se de um conto paradoxal[7], que indica um ofício, mas a pessoa não tem que trabalhar. Basta apenas manter as aparências com um discurso visível, porém, vazio. Não é isso que muitos nada fazem, mas têm sucesso sem qualquer mérito?
Com tal regime debilitante, diz o genial Machado de Assis, pode-se reduzir o cérebro, por mais inteligente que seja, ao senso comum e à moderação, características inerentes aos medíocres. Desse modo, o vocabulário precisa ser simples, apequenado e sem tons avermelhados. Instigante! Faz-nos pensar sobre crianças de tenra idade e adolescentes que, nestes tempos, não conseguem ficar longe de smartfones, de games e assemelhados. Os jovens não suportam a solidão. Acham-na tediosa. Tudo lhes parece sem sentido quando não estão plugados, ou melhor, online. Não têm gosto pelo exercício físico, nem pelo ócio e, fogem o quanto podem, dos livros, tal como recomenda o protagonista de Machado de Assis.
Mas, prossigamos. Além das ideias ditadas pelo senso comum, o Medalhão, se for necessário, pode adornar seu morno discurso com o emprego de figuras expressivas como “a hidra de Lerna, a cabeça de Medusa, o tonel de Danaides, as asas de Ícaro e outras, que românticos, clássicos e realistas utilizam sem desar, quando precisam delas”[8]. Diz que sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, máximas e brocardos[9] jurídicos são recomendáveis para discursos de sobremesa, de felicitações e de agradecimentos.
Para Machado de Assis, o Medalhão precisa aprender a arte de pensar o pensado, “ramo dos conhecimentos humanos onde tudo está achado, formulado, rotulado e encaixotado”[10]. Ao invés de fazer um estudo científico, ou um tratado sobre as leis que regem a sociedade, o Medalhão diz em seu discurso retórico: “antes de reformar a sociedade, reformemos as pessoas”, frases consagradas que evitam esforço mental e inútil dos ouvintes. O Medalhão ama a denominação, mas despreza o conhecimento científico. Ao invés de pesquisar sobre criação de ovelhas, por exemplo, ele compra uma e a oferece em forma de jantar aos amigos.
Será que Machado de Assis teve uma intuição sobre o que seria o conhecimento na era digital? Chama especial atenção seus conselhos, principalmente quando se pode verificar que, nas últimas décadas, pode estar ocorrendo uma espécie de simplificação do saber. Tudo pode ser resumido, sintetizado e formatado. Não é por acaso que se alastra a ideia do professor tipo show man. Dizem que um bom professor precisa estimular o aluno, motivá-lo e seduzi-lo como se o longo e trabalhoso processo de aprendizagem não fosse uma obrigação do estudante. Parece que a proposta de que o professor deve ser um facilitador da aprendizagem acabou vingando. Mais fácil e rápido é ler manuais, ao invés de ir às fontes, aos livros clássicos. Mais modernamente, utilizar a internet. Resumos, vídeos, sínteses e lives são muito bem aceitos, sobretudo, os de curta duração.
Também, consta da teoria do Medalhão que, na política, pode-se pertencer a qualquer partido: liberal, conservador, republicano, ou de outros naipes, desde que tenham utilidade, algo próprio do pragmatismo. Na tribuna do parlamento, é recomendado que o discurso do Medalhão seja focado nos negócios miúdos e nos interesses próprios. Tal procedimento, evita a imaginação. Para não perder o prumo, o Medalhão pode, e deve recorrer sempre, à metafísica política. A metafísica é a porção idealista, por conseguinte, muito apreciada. Ela é o adjetivo que adorna as frases. O substantivo, ao contrário, define a dura e cruel realidade. Por isso, precisa ser sempre evitado.
Talvez, a grande maioria dos políticos modernos, tenham aprendido muito com este memorável conto. Ainda assim, ficam aquém do Medalhão machadiano, que em sua vulgaridade, é charmoso, elegante e apreciado por seus pares. Atualmente, a polidez, o respeito e a violência parece que foram banidos do campo de batalha política. Sobraram preconceitos, toda espécie de vilania e avareza que florescem sobre a miserável condição humana.
Por fim, diz o grande escritor: um Medalhão político jamais deve empregar a ironia[11]. Pelo contrário, deve usar “a nossa boa chalaça[12] amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos[13], nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz o sangue pular nas veias e arrebentar de risos os suspensórios”[14]. Em qualquer situação, diz o escritor, Medalhão autêntico não pode jamais transcender os limites de uma invejável vulgaridade. E, assim, o conto termina com o pai dizendo ao filho que o que lhe ensinou no dia de sua maioridade, vale um tratado de Maquiavel[15]. Simplesmente fabuloso!
Um pouquinho da biografia de Machado de Assis (1839-1908)
O escritor nasceu em 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, Rio de Janeiro. Pobre, descendente de escravos, mestiço, gago e epilético. Sai de casa aos 16 anos. É acolhido por uma família aristocrática dos subúrbios do Rio de Janeiro, que lhe proporciona condições para fazer carreira como funcionário público civil, no tempo Imperial. Mas, Machado de Assis, nunca perdeu a ambição de ser um escritor de sucesso. No campo literário, teve apoio de José de Alencar. Casa-se com uma moça acima de sua classe social. José de Alencar (1829- 1887), falece aos 48 anos. Dizem que Machado de Assis é sucessor desse famoso escritor do romantismo brasileiro. Porém, Machado de Assis é considerado o pai do realismo no Brasil, pois ele é defensor de que o escritor deve ser fiel ao sentimento e à realidade de seu país.
Com sua espantosa criatividade, escreve 200 contos antes de completar quarenta anos. Apenas em uma década, de 1877 a 1888, escreve oitenta contos. Além de contos, escreve muitos livros. Seu primeiro romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, foi publicado, em 1880. Nessa época, o conto está se afirmando no Brasil e, também, no mundo.
Machado de Assis, mistura o frívolo, o sério, o local e o universal com humor sofisticado. Mas, é com a ironia sutil e rebuscada que ele mostra, sem dúvida, sua genialidade. Faz da ironia uma aliada insuperável na crítica ao obscurantismo de seu tempo. Ás vezes faz um retrato impiedoso da sociedade brasileira. Seus romances “bem-educados” cedem vez à sátira quase selvagem no romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de 1870, em que o adultério, a prostituição, a escravidão e o tratamento dado aos escravos são temas praticamente proibidos.
Machado de Assis recorre a formas de expressar acontecimentos que não podiam ser ditos no tempo em que ele vive. No entanto, a escravidão é sempre o pano de fundo de seus escritos. Machado de Assis desenvolve uma percepção desiludida da moralidade humana, principalmente da classe dominante. O egoísmo, a vaidade, traição, negócios escusos, prostituição, dentre outros, são temas de seus inimitáveis escritos. Enquanto permaneceu a escravidão, ele não pôde publicar dois contos: O caso da vara e Pai contra Mãe, porque ambos, mostravam a violência, a injustiça e a força destruidora das instituições que mantinham a sociedade escravocrata. Só são publicados entre 1891 e 1906, portanto, após a Abolição. A maioria dos seus contos e crônicas são publicados no Jornal, Gazeta de Notícias, no Rio de Janeiro.
A literatura brasileira no século XIX
Na metade do século XIX, um leitor do Rio de Janeiro, podia receber livros de Portugal em menos de trinta dias, transportados por navios a vapor, o que equivale hoje, praticamente, ao mesmo prazo de entrega de produtos compradas no mercado eletrônico[16]. Nessa mesma época, obras de autores brasileiros eram traduzidas para o francês, italiano, latim e o russo. É o caso de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) e de o Guarani, de José de Alencar (1829-1877).
No período Imperial é proibido imprimir livros no Brasil. Entretanto, escritores brasileiros enviavam seus escritos a muitos livreiros portugueses que os traduziam, imprimiam e os enviavam de volta ao nosso país. Por conseguinte, o Brasil, em termos literários, está em sintonia com países da Europa. O “Dossiê: Escritores Esquecidos do Século XIX”, 2017[17], produzido por pesquisadores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, revelam que o Brasil Colonial possui uma literatura única, valiosa e singular desde a metade do século XIX. A literatura brasileira caminha, passo a passo, com a dos países europeus. Portanto, cai por terra o tradicional paradigma, segundo o qual, o Brasil era um país atrasado e culturalmente dependente da Europa. Escritores brasileiros eram lidos em outros países, assim como, os brasileiros podiam ter acesso aos livros estrangeiros.
Indicações de leitura:
“Machado de Assis: Vida e Obra”. A obra completa de Machado de Assis, revisada, digitalizada e gratuita está disponível no endereço http://machado.mec.gov.br/, Resultado de um trabalho feito em parceria, entre o Portal Domínio Público, a Biblioteca Digital do MEC e o Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística (NUPILL), da Universidade Federal de Santa Catarina.
[1] GLEDSON, John. Prefácio: Uma breve introdução aos contos de Machado de Assis. In: 50 Contos: Machado de Assis. São Paulo, Companhia das Letras, 2007. p.7-16.
[2] PROUST, Marcel (1871-1922). O Tempo Redescoberto. São Paulo, Globo, 2013, p. 256 (Em busca do tempo perdido; v.7).
[3] Galileu Galilei (1564-1624), foi um físico, matemático, astrônomo e filósofo florentino. Criou o telescópio, na Itália, e o utilizou nas suas investigações científicas. Descobriu a Via Láctea e reafirmou o sistema heliocêntrico de Copérnico. Disponível em: Galileu Galilei https://pt.wikipedia.org/wiki/Galileu_Galilei#Telesc%C3%B3pio. Acesso em: 15, set., 2020.
[4] BRECHT, Bertold (1898-1956). Sobre o nascimento um filho. In: Poemas: 1913-1956. 7ª.ed. São Paulo, Editora 34, 2012. p. 190.
[5] ASSIS, Machado. Teoria do Medalhão. In: 50 Contos: Machado de Assis. São Paulo, Companhia das Letras, 2007.
[6] Segundo Dicionário Houaiss: “Pessoa importante; figurão: medalhão da política brasileira [Figurado]; quem recebe destaque sem o merecer ou sem possuir qualificações necessárias para o possuir”. Disponível em: https://www.dicio.com.br/medalhao/. Acesso em: 12, set., 2020.
[7] Vídeo sobre Direito & Literatura – Teoria do Medalhão, de Machado de Assis, de 1881. 4 de dezembro, vídeo enviado por TV e Rádio UNISINOS. Vídeo Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=h-F9kGnu-e8.. Visto em: 9, set., 2020.
[8] Segundo o Dicionário Houaiss, sinônimo de desar: Falta de elegância, de graça; desaire. Disponível em: https://www.dicio.com.br/desar/. Acesso em 13, set, 2020.
[9] Segundo o Dicionário Houaiss, sinônimos de brocardos: sentenças, provérbios, máximas, rifão Disponível em: Dicionário https://www.dicio.com.br/brocardo/. Acesso em:12, set., 2020.
[10] ASSIS, 2007, p. 89.
[11] ASSIS, 2007, p. 90.
[12] De acordo com o dicionário Houaiss: pilhéria, dito zombeteiro e picante. Caçoada grosseira.
[13] No Dicionário Houaiss, o significado de bioco: sem véu ou mantilha com que algumas mulheres cobriam a cabeça e parte do rosto.
[14] ASSIS, 2007, p. 90.
[15] Nicolau Maquiavel (1469-1527), é italiano, natural de Florença. Seu livro mais conhecido é “O Príncipe” (1513), onde expõe seu pensamento político, cujo objetivo de seu personagem é conquistar e manter o poder, no período renascentista. Disponível em: Maquiavel: A política e O Príncipe”. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/maquiavel-a-politica-e-o-principe.htm. Acesso em: 14, set., 2020.
[16] ALISSON, Elton. A literatura brasileira no século 19 circulava pelo mundo. Pulicado em 19/09/1012. Disponível em: https://exame.com/casual/literatura-brasileira-no-seculo-19-circulava-pelo-mundo/. Acesso em: 8, agosto, 2020.
[17] Revista SOLETRAS. Dossiê: Escritores Esquecidos do Século 19. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística – PPLIN, Faculdade de Formação de Professores da UERJ, Número 34 (julho-dez. 2017). Organizadores: Leonardo Mendes, Maximiliano Torres e Peggy Sharpe. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/soletras/article/view/31270. Acesso em: 10, set., 2020.
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