O documentário Sembene! é um retrato do contador de histórias senegalês Ousmane Sembene, considerado o Pai do Cinema Africano.
Como contador de histórias Sembene sempre procurou trazer ao centro alternativas ao discurso dominante, que até então encontravam-se à margem da sociedade.
São estas histórias alternativas as suas musas, mas o filme não é só sobre isso.
O entrelaçar da sua biografia, com o panorama geopolítico internacional e as suas produções, oferece-nos uma ideia do compasso moral e daquilo que Sembene pretendia ao escrever e realizar cada um dos seus filmes.
É promíscua e até certo ponto pornográfica a relação entre política e o seu trabalho. Sembene não tem o privilégio de contar histórias de amor, ele traz-nos guerras; massacres; mutilação genital; corrupção. É daí que vem a sua força criativa.
Ousmane Sembene nasceu em 1923 no Senegal, em Ziguïnchor, filho de um pescador, profissão que abraçou na adolescência ao abandonar a escola.
Decidiu depois sair da sua vila, realizando vários trabalhos manuais e por fim chegou a França aos 24 anos. Foi nas docas de Marselha, como estivador, que conheceu a vida como operário e se envolveu no movimento trabalhista.
Após uma grave lesão na coluna durante o trabalho, passou vários meses no hospital e aí começou a ler bastante.
Foi nesse período que se acorda nele a consciência do seu lugar no mundo.
Passa a activista sindical e autodidacta compulsivo, procurando conhecimento sobre tudo um pouco, mas especialmente sobre a vivência da Negritude.
“It’s a long-term job to change ideas held for centuries. My aim is to make a film for Africans. And, if it’s done well, people will like it everywhere else too./ Mudar ideias centenárias é um trabalho a longo prazo. O meu objectivo é fazer um filme para Africanos. E, se for bem feito, pessoas de outras partes do mundo também vão gostar”.
Começou por escrever pequenos contos e romances, mas rapidamente apercebe-se das limitações da escrita no Senegal, onde a taxa de alfabetização era muito baixa. É assim que surge a sua paixão pelo cinema: a necessidade de contar as suas histórias a pessoas como ele, numa linguagem que percebessem.
Durante os seus 40 anos de carreira, Sembene explorou destemidamente temas como o colonialismo, a corrupção dos movimentos de libertação no período pós-independência; o Islão e o racismo.
Foram filmes como “La noire de…” (1966) e “Moolaadé” (2004) que colocaram o cinema Africano no radar dos grandes festivais internacionais de cinema como o de Cannes e Berlim.
Mas com essa atenção, vieram também algumas punições. Em França, por exemplo, o seu filme “Camp de Thiaroye” (1988) foi banido e no Senegal, vários trabalhos dele foram banidos e/ou censurados como é o caso de “Ceddo” (1977) e “Emitaï” (1971).
O filme Sembene! tenta ser um retrato fiel do realizador que sacrificou as suas relações na indústria; com a sua família; com os seus amigos e até amantes pela sua causa.
Sembene aparece no filme como um artista que nunca quis – ou talvez nunca pôde – respirar, comer, dormir e amar outra coisa senão a própria arte. E é esta humanização, que serve ao mesmo tempo de demonização que coloca o espectador como juiz.
A dada altura Sembene confessa que seria capaz de atropelar certos princípios e mesmo valores em nome da sua arte. E que nós, os juízes, devíamos julgar a sua arte e não os processos que permitiram que tal arte fosse feita.
Ao enfrentar a câmara, Sembene olha-nos com uma certa arrogância e prepotência, mas atrás dela, o seu olhar capta compaixão, gentileza e procura sempre o mais puro e verdadeiro.
É por isso irônico que através do seu trabalho tenha sempre criticado a forma absoluta como o poder dominante era uma força intolerante, no entanto, ele fez o mesmo.
Mas apesar das contradições que o filme nos mostra entre o homem e o seu ego, Sembene! é ainda um retrato amável do realizador. Nele, nos é pintado um rebelde com uma causa nobre.
Para um homem que entregou a sua vida à arte de contar histórias à moda Africana, nenhum filme seria suficiente, contudo o documentário Sembene! fica bem perto.
Somos obrigados a aceitar os limites da humanidade deste grande senhor, Ousmane Sembene pois nem ele tem todas as respostas. Quando confrontado com as suas provocações, ele também treme.
Ficam claras as suas intenções: o contador de histórias não tem respostas, apenas perguntas.
Fonte: Escreve Eliane Escreve.