Por Rute Pina. Relatos de diversas experiências sobre o parto mostram a necessidade de se repensar a lógica imposta no Brasil.
“Eu estava falando com duas amigas agora, quando você ligou. Que coincidência! É que, depois do nascimento da América, eu virei uma militante do parto humanizado”, disse aos risos a mineira Renata Versiani, de 36 anos.
Ela conta que, há um ano e meio, teve a experiência mais empoderadora de sua vida: a chegada da filha, nascida em um parto domiciliar. A advogada entrou em contato com o parto humanizado, uma proposta de modelo alternativo centrado na autonomia da mulher As intervenções são feitas apenas quando necessárias, durante a gravidez. A princípio, a ideia de ter América em casa assustou seus familiares e foi contra-indicado por seu ginecologista, que a acompanhava há mais de 15 anos.
Mesmo assim, ela procurou equipes que incentivassem o parto humanizado em Florianópolis (SC), onde morava. Foi então que ela conheceu a parteira mexicana Naolí Vinaver, da rede Ama Nascer, que a acompanhou durante a gestação, em cursos, até o pós-parto. “Inicialmente, eu duvidava da minha capacidade de parir naturalmente. Mas o contato com a parteira é empoderador. Ela mudou minha concepção de parto, que antes eu considerava algo perigoso e até mesmo horrível”, disse.
“América quer chegar ao mundo! Venha, ela nunca esquecerá as mãos que a receberam!”, disse Vinaver a Jonathan, companheiro de Renata.
Foram dois dias de trabalho de parto e 30 horas de contrações. Durante todo este período, ela foi auxiliada pela parteira, que participou de maneira ativa, acalmando e acolhendo Renata. Ela também pode contar com o apoio de sua irmã, Cinthia.
“Quando a gente vai no hospital e vemos as mulheres receosas e com medo, não fazemos ideia de quão lindo é um parto. Claro que existe dor, mas, ao mesmo tempo, é um momento de comunhão. E existe toda uma energia, quase sagrada. Nunca vivenciei uma coisa parecida na minha vida”, relembra a advogada.
América só visitou o pediatra depois de um mês. “Se eu tivesse ido para o hospital, que não prioriza a autonomia da mulher, eles teriam me roubado a oportunidade de viver o momento mais bonito da minha vida”, apostou.
Brasil é país “mãe” da cesária
Mas não são todas as mulheres que passam pela mesma experiência transformadora de Renata. Segundo a pesquisa Nascer do Brasil, um inquérito sobre nascimentos conduzido pelo Instituto Fiocruz apontou que mais da metade de todos os partos realizados no país são realizados por meio de cesárias. Foram 1.644.557 de cesárias em 2013, ano do último levantamento disponibilizado pelo Ministério da Saúde. No sistema particular, este índice chega a ser de 88%. Muito acima dos 15% recomendado pela Organização Mundial da Sáude (OMS). Na rede pública, o índice é de 46%.
A doula Maira Pinheiro acredita que a assistência humanizada, como foi a de Renata, leva a experiências mais satisfatórias e melhores desfechos de partos. Segundo ela, a integração maior das parteiras no sistema de saúde é uma forma de combater a altíssima taxa de cesárias no país.
“As parteiras podem, inclusive, integrar a equipe multidisciplinar junto com o obstetra. Deixar o médico obstetra para situações que são fora do risco habitual e deixar a parteira para os outros casos e criar políticas públicas que incentivem o parto extra-hospitalar”.
Para Maíra, há várias causas para a epidemia das cesárias no Brasil. Ela aponta desde a formação dos profissionais da saúde, que considera “intervencionista”, ao aspecto econômico, com o aumento da assistência médica privada.
“O problema vai desde uma formação dos médicos, que não enxerga o parto como um evento fisiológico, mas como algo perigoso que precisa ser controlado pela tecnologia, aos planos de saúde que agendam os partos levando em conta a questão financeira”, disse.
Ela acredita que informações inverídicas e medo do parto também levam muitas mulheres a optar pela cesária. “Há médicos que simplesmente mentem e dão motivos para cesária que não são verdadeiros. E isso é interessante para os planos de saúde porque a cesária gera mais internações”, conclui Maíra.
A alta taxa de prematuridade, que atualmente chega a 12% (quando o esperado é de apenas 6%), está conectada ao número de cesária. O Brasil vivencia um problema sério de prematuridade iatrogênica, ou seja, de bebês que nascem antes da hora que deveriam, mas sem indicação. Dos bebês internados em unidades de tratamento intensivo (UTI) privadas, pelo menos 20% são por causados pela cesariana antes do trabalho de parto. Esse grupo tem um risco quase três vezes maior de morte neonatal.
Curso de obstetrícia: 33 anos de extinção
Maíra acredita que a escolha de um modelo de assistência médica centrada nas maternidades foi feita para privilegiar médicos, faculdades de medicina e criar campos de estudo para os estudantes. “Hoje, esta é uma escolha ativa que desprestigia as parteiras”. Depois de 33 anos de extinção, o curso superior de obstetrícia da Universidade de São Paulo (USP), único no país, foi reaberto em 2005. A carreira é direcionada especificamente para a formação de parteiras.
“A parteira tem uma formação e uma abordagem baseada na autonomia do próprio corpo da mulher e na crença que o parto é um ato fisiológico, sobre o qual só se deve intervir quando houver necessidade”, defendeu.
E foi exatamente o que aconteceu no parto da pequena fortelezense Olga, em julho de 2014. Da aula de yoga ao acompanhamento médico com profissionais especializados em parto humanizado, sua mãe, a advogada Talita Maciel, 34, se preparou para ter um parto natural, na contramão de uma tradição familiar de cesárias. “Fui buscando histórias para me fortalecer nesta decisão”, conta.
Talita começou a participar de um movimento de mulheres que desejam “parir como a gente quer” e que refutam a ideia de que um parto bom seria um parto sem dor. “Eu estava apaixonada por essa possibilidade de empoderamento. E tenho para mim que a cesária é uma violência não só contra as mulheres, mas contra as crianças também. Lamento que a rede pública não dê suporte para que as mulheres tenham acesso a parteiras que fazem essa reflexão”.
Todavia, depois de cinco dias com as dores do parto em casa e mais de 20 horas de trabalho de parto, sua dilatação, que estava quase total, regrediu quando a advogada já havia perdido todo o liquido aminiótico. Com medo de faltar oxigenação à Olga, hoje com 1 ano e 8 meses, a obstetra avaliou que não poderia mais esperar e recomendou a cesária. “Foi uma frustração. Nos primeiros dias, mesmo muito feliz pelo nascimento dela, tive um sentimento forte de incapacidade porque eu me preparei para isso. Mas eu tive segurança de que o diagnóstico da obstetra, por ter essa linha do parto humanizado, foi verdadeiro e que eu fui até onde podia”, comenta.
Algumas ações tomadas pela equipe médica, no entanto, a fazem considerar seu parto humanizado também. Talita pôde amamentar e ficar por mais de uma hora com a bebê, que não passou por procedimentos considerados intrusivos, como aspiração, injeções de algumas vacinas e colírios no ato do nascimento. A sala ficou envolta em uma penumbra, para construir um ambiente mais acolhedor, e ela teve a presença de seu companheiro. “Houve um cuidado que fez muita diferença. Apesar de ter me questionado pelo que aconteceu, hoje eu consigo fazer essa leitura da necessidade da cirurgia daquele momento. E não foi por isso que o nascimento da minha filha deixou de ser lindo e emocionante”, finalizou.
Casos como o de Talita estão entre as razões pelas quais a doula Maíra não gosta de utilizar o termo ‘parto humanizado’. “Gosto mais de falar em assistência humanizada à saúde, porque esse termo [parto humanizado] leva a muitos equívocos. Muitos acabam acreditando que é somente o parto na banheira, natural e sem nenhuma intervenção que pode ser ‘humano’. E não é isso, necessariamente. Você pode ter um parto humanizado com analgesia, por exemplo. A única obrigatoriedade é que autonomia da mulher seja respeitada e que a tomada de decisão aconteça com base em evidências científicas. Mas a palavra final deve ser sempre da mulher”, sentencia.
Ela avalia que é trabalho da equipe médica dar informações para que a usuária possa tomar sua própria decisão, tendo em vista também suas referências culturais e sociais. “A figura da parteira também é importante para pensar em formas não farmacológicas de alívio da dor. E de empatia e sororidade. Isso não encontramos muito na assistência médica, porque hoje a formação separa muito a técnica do cuidado”, disse.
Apesar de bom, elitizado
Hoje, o movimento pelo parto humanizado enfrenta o paradoxo de ser predominante entre mulheres com maior renda, uma vez que a presença de parteiras e doulas é maior no sistema privado.
De acordo com a pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto, seja um exame de toque feito de forma dolorosa ou até mesmo assédio sexual.
“É importante democratizar não só o acesso das parteiras, como das doulas no SUS [Sistema Único de Saúde]”, disse.
Em São Paulo, a assessoria da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informou que as usuárias do SUS têm acesso ao parto humanizado em 10 unidades hospitalares na cidade por meio do programa Parto Seguro, em parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas “Dr. João Amorim” (CEJAM). Os hospitais municipais geridos por organizações sociais também realizam o parto humanizado, segundo o informe.
Além disso, existem no município duas casas de parto conveniadas à prefeitura que oferecem atendimento a mulheres com gestação de baixo risco. De 2013 a 2015, houve um aumento de quase 15% no número de mulheres da rede privada que fizeram parto na unidade. A Casa do Parto Sapopemba, na Zona Leste, atende 12 partos por mês em média. Já o convênio com a Casa Ângela, na Zona Sul, foi firmado em novembro de 2015 e prevê o atendimento de 30 mulheres por mês.
A advogada Talita se diz “grata” ao acompanhamento com a parteira, mesmo que seu caso tenha sido finalizado em cesária. “Quando é bem indicada, a cesária é salvadora. Quando não, é uma violência para a mulher. E só dá para ter indicação da cesária no momento do parto mesmo. Mas, em muitos casos, ela é indicada já na gestação por uma comodidade do médico e para baratear os custos”, avalia.
Hoje em dia, ela se diz militante do parto humanizado. Em Fortaleza, junto com outras mulheres, Talita participa de uma organização que estimula o parto normal e já conseguiu alguns avanços na cidade, onde não existem casas de parto e o atendimento emergencial às mulheres grávidas e a violência obstétrica é “uma realidade muito dura”.
Juntas, as mulheres pressionaram o Hospital Regional da Unimed, onde Olga nasceu, e conseguiram a instalação de uma sala e de uma estrutura adequada para a realização dos partos naturais, que não havia até então. “Nós denunciamos a condição do hospital e, na semana seguinte, anunciaram que iam estruturar uma sala para partos naturais. Foi um vitória nossa”, disse.
Assim como ela, Renata também trabalha na disseminação do parto natural e da importância das parteiras. “Quando sei que alguma mulher que conheço está grávida, já marco uma conversa”, brinca. “Eu já era uma militante de causas sociais, mas nunca havia problematizado toda a lógica capitalista que invadia o nascer e o parir até ficar grávida. Acho que esse movimento faz parte da construção de uma nova sociedade e de um outro mundo”, aposta.
Foto: Reprodução/Brasil de Fato
Fonte: Brasil de Fato