Por Pedro Rafael Vilela.
A catadora de material reciclável Ana Carolina, de 20 anos, vive há mais de cinco em uma ocupação num terreno na Asa Sul, uma das regiões mais ricas de Brasília, a menos de 10 quilômetros da Praça dos Três Poderes. Ela conta que saiu do interior do Ceará para tentar uma vida melhor na capital do país e fugir de um destino fatal: a fome
“Lá, não tinha a quem recorrer, era ficar e morrer de fome. Aqui pelo menos a gente consegue alguma doação para sobreviver“, diz.
No lugar onde mora, que fica numa área próxima ao Parque da Cidade, ela convive com cerca de 30 pessoas, a grande maioria da mesma família. “Meu avô viveu aqui”. Seu filho, agora com três anos de idade, já nasceu morando na ocupação. O marido, sem emprego, também trabalha como catador.
A expectativa de uma vida melhor ainda não se concretizou, mas Ana Carolina não imaginava que a situação poderia piorar ainda mais desde o início da pandemia. O material reciclável, especialmente o papelão, perdeu valor no mercado. Se antes ela conseguia faturar até R$ 600 por mês, agora a renda não chega a R$ 400. Combinada com a inflação dos alimentos e de produtos básicos, a fome passou a ser uma ameaça diária.
“A pessoa tem que pedir doação, porque não é toda hora que tem arroz ou comida pra fazer. Muitas vezes é cuscuz no almoço e na janta, e sendo feliz”.
No Brasil, há quase 20 milhões de pessoas passando fome, segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), divulgados no início do ano. A extrema pobreza quase triplicou, passando de 4,5% da população para 12,8%.
Segundo a pesquisa, nos últimos três meses de 2020, 19,1 milhões de pessoas estavam passando fome no Brasil e cerca de 116 milhões de pessoas não tinham acesso pleno e permanente a alimentos.
Sobre o DF, um estudo recente do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV) mostrou que o percentual famílias que vivem na pobreza passou de 12,9% para 20,8% da população. Já a extrema pobreza passou de 3,2% para 7,3%. Foi o pior desempenho entre todas as capitais do país. Somados, esses dois grupos formam um contingente de mais de 860 mil pessoas em situação de vulnerabilidade social na capital do país.
O Banco Mundial considera que alguém está em situação de pobreza quando tem uma renda de US$ 5,50 por dia (cerca de R$ 28,60). Na extrema pobreza, a renda é de US$ 1,90 por dia (R$ 10,45).
Refugiados da pobreza
“Olha o número de pessoas que estão vivendo na rua, pessoas que estão saindo de suas casas e deslocam para a região central da cidade. O fato é que a pobreza se alastra no Brasil inteiro. Houve um salto vigoroso que empurrou a população para a pobreza numa escala jamais vista”, aponta Newton Gomes, professor do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB).
Gomes explica que as pessoas estão sendo expulsas pela miséria que se abate em outras cidades, especialmente no interior do Brasil, e afluem para os grandes centros urbanos por razões de sobrevivência. Na prática, conclui o professor, as grandes metrópoles, como Brasília, funcionam como um verdadeiro campo de refugiados da pobreza.
“No caso dos refugiados, a diferença é que uns são expulsos na guerra, outros por causa das intolerâncias religiosas. No Brasil, são expulsos pela miséria. São nômades do capital, pessoas que o capital mantém em permanente movimento, desocupados, explorados, para poder se servir na hora da necessidade”.
Em Brasília, cuja economia é baseada principalmente no setor de serviços, a pandemia causou um verdadeiro extermínio de renda, já que pessoas que dependiam da venda ambulante e prestação de pequenos serviços simplesmente viram a demanda desaparecer.
“O setor de serviços ficou enfraquecido e o fato do contingente de servidores públicos, que representam uma porção de maior da renda, terem passado a trabalhar de forma remota acabou mudando o perfil do consumo. Parte imensa da sociedade que vivia da prestação de serviço para esse segmento que podia pagar deixaram de ter essa renda”, argumenta o professor.
Preocupados com os efeitos da crise sobre a população mais vulnerável, um grupo de amigos criou o Projeto Dividir, uma organização não-governamental (ONG) que busca desenvolver uma rede de solidariedade e atender comunidades do DF, principalmente a população em situação de rua, com doação de alimentos e itens básicos.
Como relata Sofia Anouk, uma das mentoras do projeto, no início a expectativa era que a pandemia durasse alguns meses e a atividade econômica se recuperasse, mas o cenário se agravou.
“A gente achou que ia acabar em poucos meses, mas, como toda crise, os problemas sociais se intensificam e o que a gente pode observa hoje é uma quantidade imensa de famílias inteiras que não tem só dificuldade de acessar uma alimentação básica, mas também vivem em situação de insegurança alimentar. Ou seja, elas não têm acesso a alimentos que compreendam suas necessidades de subsistência, de nutrientes, etc.”.
Com produção diária de marmitas, a partir de compras de pequenos produtores assentados da reforma agrária organizados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), o Projeto Dividir recolhe e distribui doações e organiza a compra de mantimentos destinados às famílias vulneráveis.
Além disso, acompanha a luta das pessoas que vivem em ocupações e estão sob permanente ameaça de expulsão. O projeto mantém perfis nas redes sociais para divulgar o trabalho e pessoas interessadas podem contribuir, não apenas com ajuda material, mas também com doação de tempo e trabalho para ajudar nas tarefas de assistência às famílias.
Remoções na pandemia
Há pouco mais de quatro meses, a catadora de material reciclável Ivânia Souza Santos, de 38 anos, foi expulsa, junto com outras 24 famílias, de uma ocupação nas imediações do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), que fica a poucos quilômetros da zona central de Brasília. Na época, uma mobilização popular tentou impedir as remoções, que ficaram proibidas durante meses por força de uma decisão judicial que impedia desocupações durante a pandemia. Mas após derrubar a liminar na Justiça, o governador Ibaneis Rocha (MDB) determinou a remoção forçada das famílias.
“Eram 24 famílias, o que correspondia a 79 pessoas, incluindo adultos, crianças, adolescentes, idosos e até cadeirantes. A polícia foi muito violenta e as pessoas ficaram desamparadas”. Na época, para justificar, o GDF informou que todas as famílias recebiam o Bolsa Família e teriam sido incluídas na lista de habitação da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do DF (Codhab). Porém, a perspectiva de conseguir uma moradia popular parece distante. Outras remoções também ocorreram no contexto da pandemia, em ocupações do Riacho Fundo e de Taguatinga, por exemplo.
Ivânia também se mudou para o DF, vinda do interior da Bahia, na busca de um futuro melhor. Ela, que já tinha atuado em movimentos de luta pela terra, chegou à capital com o objetivo de ajudar outras famílias a conseguir o direito à moradia. A ocupação, mesmo com todas as dificuldades, garantia pelo menos a possibilidade de se alimentar melhor.
“As coisas estão muito caras, ainda mais tendo que pagar aluguel. Na ocupação, a gente tinha ajuda da cesta básica, uma cesta de verdura, de doações. Quando o Bolsa Família chegava, a gente conseguia comprar carne. As pessoas se ajudavam e tinha solidariedade. Agora, estamos no esquecimento”.
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